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Algumas palavras sobre "Da Natureza Humana", do E. O. Wilson, e a psicologia evolutiva



Esse livro é de 1979, eu tinha lido um pedaço muito tempo atrás, e fui reler. Pra quê? Pra ter uma visão de conjunto da sociobiologia e entender um pouco a psicologia evolutiva, que é uma análise da psicologia baseada em premissas parecidas com as que a sociobiologia usa pra analisar sociedades.

No pensamento marxista, o pressuposto é de que existe determinismo social no comportamento humano. É possível fazer várias citações ("o homem é o conjunto das relações sociais" etc), mas o que importa é que esse pressuposto é usado pra garantir a possibilidade de, mudando as relações sociais, os seres humanos agirem de forma solidária e pacífica, o que é uma tentativa de resposta à visão hobbesiana de "homem lobo do homem" que tem sido historicamente usada pelo pensamento burguês para dizer que a emancipação humana é uma utopia.

Por causa disso, os poucos autores marxistas que tentaram se engajar com a sociobiologia ou a psicologia evolutiva, tipicamente, vão dizer que se trata de duas ideologias burguesas, que usam o determinismo biológico pra justificar a agressividade, a dominação masculina etc. 

O problema é que realmente tem como identificar padrões comuns entre os seres humanos e os grandes primatas e, na antropologia, alguns universais, ou seja, traços encontrados em todas as sociedades humanas, foram identificados. Isso significa que existe um componente biológico, sim, no comportamento humano - o que seria de se esperar, já que somos parte da natureza, com 99% de semelhança no DNA com os chimpanzés, e tendo evoluído por mais de 95% da existência da nossa espécie num ambiente natural semelhante ao dos nossos primos primatas. 

A questão, então, não é negar dogmaticamente que existam traços do nosso comportamento e da nossa organização social que sejam de raiz biológica, defendendo uma tese insustentável de determinismo social completo, e sim ver qual o peso deles, como eles agem e o quanto eles podem ser separados dos traços criados pela organização social. É isso que o Wilson faz nesse livro, e que outros autores fazem de forma que acaba servindo realmente como uma justificativa para a sociedade atual, como é o caso do Steven Pinker, que eu vou falar mais à frente. A metáfora que ele usa é a seguinte:

Os canais do desenvolvimento mental humano, ao contrário, são sinuosos e variáveis. Ao invés de especificar uma única característica, os genes humanos determinam a capacidade de desenvolver um certo conjunto de características. Em algumas categorias de comportamento esse conjunto está limitado e o resultado só pode ser alterado, quando muito, pelo treinamento exaustivo. Em outras, o conjunto é vasto e o resultado é facilmente influenciado. 

Eu não quero, aqui, escrever uma resenha do livro (por isso que o título da postagem é Algumas palavras...), só quero falar de alguns temas que são mais importantes nesse assunto, e de como ele trata esses temas, até onde ele acha que vai a determinação, e o que é possível alcançar.

Pra começar, ele fala das sociedades em si. Assim como eu quero falar numa postagem que eu planejo escrever sobre economia, aqui também acontece de as determinações mais fortes serem as mais gerais (o que faz sentido, diante da grande variedade de formas de sociedade humanas): por exemplo, o tabu sobre o incesto, a existência de famílias (ele fala rapidamente sobre o fracasso das tentativas de acabar com a criação das crianças pela família nos kibutzim israelenses), os grupos sociais imediatos serem formados por algumas dezenas de pessoas, no máximo cem ou duzentas. 

Acho que ele dá uma escorregada determinista, falando que a escravidão é tratar o ser humano como se fosse um inseto social e que, por ser incompatível com a natureza humana, ela dura pouco e só aparece raras vezes historicamente (o Pinker fala a mesma coisa). É, aí sim, o caso de pegar uma tendência histórica de duzentos anos e generalizar pra natureza humana, até porque existiram várias formas de escravidão e, a não ser nas mais extremas (campos de concentração, plantagem para exportação etc), não se tratava de tentar anular completamente a autonomia do ser humano escravizado. É até irônico que alguns antropólogos marxistas usem o mesmo tipo de argumento pra dizer que o capitalismo é incompatível com a natureza humana, ou que a natureza humana é comunista, por causa do longo período de sociedades sem classes (nem vou botar link pra não dar ideia). 

O tema que talvez seja o mais importante nessa discussão é o da violência, já que o egoísmo e a violência sempre são a justificativa pra existência do Estado. Bem, como todo mundo sabe, o ser humano é um animal violento e que tende a pensar numa lógica tribal "nós x outros".
O uso da violência pra resolver conflitos é um dos universais humanos, e o Wilson tenta fazer uma ligação entre o território necessário pra alimentar uma população e a violência, quando esse território entra em disputa (ele dá o exemplo dos mundurucus). O que ele traz de mais interessante é uma crítica à tese do Konrad Lorenz, de que existe uma dose de agressividade que precisa ser descarregada: o Wilson mostra estudos que mostram que, sim, existe a agressividade, mas que as formas de canalizar essa agressividade são construídas socialmente.

Por exemplo, os períodos de guerra não diminuem a violência fora da guerra, como seria de se esperar de acordo com a tese da "descarga". Pelo contrário, as formas de violência são aprendidas e reforçadas.  

O ponto que talvez seja o mais polêmico desse tipo de pesquisa seja a procura por influências comportamentais relacionadas ao sexo. Aqui, é bom já citar essa advertência dele no começo do livro, pra gente ter ideia do que é razoável esperar:

É improvável que esses genes determinem padrões particulares de comportamento; não haverá mutações para uma prática sexual específica ou para o modo de vestir. Muito provavelmente os genes do comportamento influenciam a amplitude da forma e intensidade das respostas emocionais, os limites de estimulação, a prontidão para aprender certos estímulos em vez de outros, e o padrão de sensibilidade a fatores ambientais adicionais que dirigem a evolução cultural numa direção e não em outra. 

Apesar de muitas pesquisas ruins mesmo, que podem ser criticadas metodologicamente, existe sim um consenso crescente sobre as influências genéticas em diferenças de comportamento entre homens e mulheres. Algumas críticas feministas ao viés inconsciente nessas pesquisas se baseiam na neuroplasticidade, ou seja, a capacidade do cérebro se adaptar além das suas funções "normais", mas essas críticas só são válidas dentro de certos limites, como diz essa resposta coletiva de neurologistas à neurobióloga Catherine Vidal. 

O Wilson diz que existe, sim, um pequeno componente biológico, mas que a cultura é responsável pela grande variação na intensidade das diferenças sociais entre os sexos. Diante disso, ele vê três possibilidades: reforçar as diferenças, tentar eliminar as diferenças ou proporcionar oportunidades e acessos iguais, mas sem tentar chegar à igualdade absoluta. 

Como todo "leque de opções" feito dessa forma, o objetivo é chegar num "meio-termo" entre os dois "extremos". Acho que a melhor formulação seria tentar impedir as diferenças sociais entre os sexos. Se, por exemplo, numa sociedade com uma grande igualdade social entre os sexos, as mulheres espontaneamente tenderem a escolher mais carreiras médicas e de enfermagem, por causa de tendências biológicas para o cuidado, e os homens, mais carreiras que exijam um comportamento mais agressivo, não acho que isso, em si, seria um problema.  

Finalmente, como bom positivista que ele é, depois de especular sobre fontes biológicas do comportamento religioso, ele vai dizer que tem esperança que a ciência utilize esse comportamento para aumentar a busca pelo conhecimento, e que, pra isso, é necessário criar uma visão épica sobre a vida e a evolução. Lembra muito o Comte (ou, lá atrás, o culto do Ser Supremo na revolução francesa), o que me parece muito característico, o pensamento cientificista querer se transformar numa religião laica, certamente achando que a ciência tem respostas pra todas as questões humanas, inclusive as existenciais, políticas, éticas etc. 

Claro que não pode faltar a tradicional polêmica positivista contra o marxismo (o Jacques Monod, que tem uma posição bem mais interessante filosoficamente, também faz isso em O Acaso e a Necessidade), dizendo que o marxismo é uma forma incompleta do materialismo científico e que virou uma forma de religião... e, depois disso, dizendo que é a sociobiologia que tem que fazer isso, só que, dessa vez, direito! Que o marxismo-leninismo teve vários aspectos religiosos, e que existe uma tendência dogmática pra transformar o marxismo numa coisa parecida com a filosofia escolástica, explicando o universo inteiro, isso é um fato. O marxismo tem os seus problemas teóricos, de alguns eu tenho falado nesse blog, e eu acho mais produtivo pensar nas contribuições teóricas marxistas como fazendo parte de uma visão de mundo iluminista radical. Ou seja, não existe "visão de mundo científica" em si, as diferentes filosofias é que têm que elaborar sobre o papel e os limites das ciências.

Então, isso coloca de novo o que ele chama no primeiro capítulo de segundo dilema: dados esses condicionamentos biológicos, quais devem ser reforçados, quais devem ser deixados livres e quais devem ser enfraquecidos (e como? e até que ponto?). Pra isso, é necessária uma filosofia da sociedade, senão...

Senão você fica como o Steven Pinker ou o Yuval Harari, acreditando que os fatos que as ciências conseguem explicar através das teorias são capazes, sozinhos, de dar "recomendações" sobre a sociedade. 

Pro Harari, esses fatos vão dizer que a cooperação é a chave da nossa sobrevivência. Sim, mas qual forma de cooperação, em quais condições? Isso vai exigir escolhas políticas que não são dadas pelos fatos. 

Steven Pinker
Já o Pinker tem um pensamento mais complexo. O livro mais importante dele, Tabula Rasa, mostra os resultados das pesquisas de psicologia evolutiva da época em que foi lançado (2002), e ele depois fala sobre como essas pesquisas poderiam contribuir no contexto político em Os anjos bons da nossa natureza (2011) e O Novo Iluminismo (2018). 

Dois tipos de críticas podem ser feitas ao Pinker. Um amigo meu que é liberal me mostrou essa crítica aqui, de um ponto de vista meio liberal conservador. O foco é na diferença entre o Pinker reconhecer as limitações causadas pela natureza humana (no Tabula Rasa), e passar a defender que existe uma possibilidade (que o crítico considera utópica, em vez de trágica, retomando as duas visões que são contrastadas no livro, seguindo a formulação do Thomas Sowell) da racionalidade científica resolver grandes problemas da sociedade (nos livros seguintes).  

Já o Kenan Malik tangencia essa crítica, mas de um ponto de vista bem diferente, falando sobre o Tabula Rasa

A psicologia evolutiva certamente jogou luz sobre muitos aspectos do comportamento humano. Mas ela não revelou que os humanos são naturalmente etnocêntricos ou egoístas, nem que o crime e a pobreza são aspectos inerradicáveis da condição humana. Não é a ciência da natureza humana que destruiu as visões utópicas. Em vez disso, foi o fim do utopismo político que deu credibilidade a certas interpretações da psicologia evolutiva. 

Foi essa mudança no clima político que fez o Pinker sair da visão trágica pra utópica, se colocando como defensor das instituições da sociedade capitalista atual, que ele considera como frutos do iluminismo. A visão trágica já era um tipo de apologia indireta (pra usar o conceito do Lukács) do mundo existente, já que a sociedade teria que se limitar a contornar os problemas mais graves da natureza humana, então qualquer outra forma de sociedade deveria ser automaticamente classificada como uma utopia, essa visão sendo reforçada com uma "amostra" de a que ponto a crença na tabula rasa poderia levar, como a revolução cultural chinesa ou o regime do Pol Pot, como se qualquer mudança mais profunda na sociedade fosse contrária à natureza humana, e tão extrema como esses processos históricos. Após a crise de 2008, pela necessidade de defender o progresso até então existente contra as críticas de esquerda e de direita, a filosofia do Pinker se revelou abertamente como apologia. Por isso, todo o esforço dele em mostrar que tudo está melhorando, que o discurso contrário é emocional e baseado em impressões superficiais. 

De reconhecer as limitações da natureza humana (que são reais), ele faz uma transposição direta, para reconhecer supostas limitações da sociedade que seriam tão intransponíveis quanto as da natureza. Quer dizer, por não ter uma filosofia da sociedade, resta a ele aceitar a sociedade capitalista na forma atual como um dado, e pensar dentro dos limites dela. 

Eu queria terminar com mais um trecho da resenha do Malik, mostrando o quanto o Pinker cruza a fronteira entre a avaliação da influência biológica e um determinismo que, muitas vezes, é arbitrário e até pessoal:

Para Pinker, o ponto de vista da tabula rasa não é somente uma visão incorreta sobre o comportamento humano, e sim um bicho-papão pra todos os propósitos, responsável por todas as ideias ruins do século XX - ou, pelo menos, todas as de que o Pinker não gosta. Entre os horrores que estão nessa conta, estão o totalitarismo, o relativismo, a educação progressista, a arte moderna, a literatura pós-moderna, a música atonal, as habitações públicas ruins, a criminologia liberal, práticas inaceitáveis de cuidar das crianças e a hostilidade à biotecnologia. A ideologia do bom selvagem, enquanto isso, "convida ao desprezo pelos princípios da democracia" e,aos bizarro ainda, é considerada responsável pelo surgimento da cultura das celebridades. As únicas coisas que parecem estar faltando na lista são o fundamentalismo islâmico e os atentados de 11 de setembro. 

Comentários

Cristian disse…
Te escrevi no facebook mas não sei se foi apropriado...
O que você acha do Stephen Jay Gould e de sua crítica à seleção natural de Darwin? Ouvi dizer que o equilíbrio pontuado (sua tese) tem inspiração marxista...

Gostei do seu comentário. O Pinker foi o primeiro autor de sociobiologia que eu li, com uns quinze anos. Quase fiz biologia por causa disso. Eu achava muito satisfatório saber da determinação do comportamento humano hahaha
rodrigodoo disse…
Oi, Christian, tudo bom?

Eu nunca li nenhum livro inteiro do Jay Gould, só uns textos menores. O que eu sei é que ele era de esquerda, e que a teoria do equilíbrio pontuado é uma divergência sobre como funciona a seleção natural, que é bem parecida com a ideia do salto dialético que existe no marxismo (as espécies ficam mais ou menos do mesmo jeito, até que tem um período curto (em termos evolutivos) onde acontecem várias mudanças.

Quem eu vi publicar um artigo sobre isso foi a revista teórica do PSTU: http://marxismovivo.org/revista-marxismo-vivo-n6/

Eu prefiro os comentários aqui do que no facebook, porque aqui é mais fácil de localizar depois.

Um abração, cara!
rodrigodoo disse…
Esse texto aqui sobre o Dawkins e o neoateísmo reforça algumas coisas que eu falei, usando o Pinker como exemplo. Eles partem de uma posição cientificista, que acha que as pessoas acreditam em Deus porque são idiotas e, são consequentes com essa posição, achando que a organização atual da sociedade é a melhor possível (a única científica e, portanto, qualquer outra possibilidade é uma utopia), portanto, cala a boca quem estiver reclamando, daí cair a máscara do Dawkins com essa declaração antidemocrática no Twitter. Por quê o governo deveria ser eleito por esse monte de idiotas e, ainda por cima, sem conhecimento técnico?

https://overland.org.au/2020/02/what-happened-to-richard-dawkins/
rodrigodoo disse…
Aqui tem um artigo interessante sobre Big History, que são as narrativas sobre a história da humanidade do tipo que o Wilson propõe nesse livro

https://aeon.co/essays/we-should-be-wary-about-what-big-history-overlooks-in-its-myth