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Sobre a questão da transição para o socialismo (6) Ernest Mandel sobre o fim da economia mercantil e monetária e a abolição do trabalho


O funcionamento do modo de produção comunista (2): Ernest Mandel sobre o fim da economia mercantil e monetária e a abolição do trabalho


Nessa postagem, eu vou traduzir uma parte do capítulo "A economia socialista", do Tratado de Economia Marxista, do Ernest Mandel (1962). Eu estou usando a edição em castelhano da Série Popular da Editora Era, do México, que foi publicada em 1969.





Mas desde a época do capitalismo dos monopólios, e desde a aparição de um poderoso movimento operário nos países industriais avançados, o salário individual não constitui a forma exclusiva da remuneração do trabalho individual. Ao seu lado aparece o dividendo social ou salário social. Ou seja, o conjunto dos serviços que a sociedade assegura ao indivíduo, independente do que este deu individualmente em troca: instrução primária (e, mais tarde, secundária) gratuita; alimentação escolar gratuita; saneamento; serviços hospitalares e até produtos farmacêuticos gratuitos; parques, museus e instalações esportivas gratuitas; serviços municipais gratuitos ou quase gratuitos, como a iluminação pública etc.

É preciso, naturalmente, esclarecer o significado dos termos "ensino gratuito" ou "saneamento gratuito". A gratuidade só existe para o indivíduo; evidentemente, a sociedade deve "pagar" esses serviços, ou seja, dedicar uma parte dos seus recursos (e do seu tempo de trabalho globalmente disponível) para a satisfação dessas necessidades. O "salário social" é, então, a socialização dos custos de satisfação de um certo número de necessidades para todos os cidadãos.

Este "salário social" prefigura, ao menos em potência, o modo de distribuição de amanhã, ou seja, a economia orientada para a satisfação das necessidades de todos os indivíduos. A economia baseada na satisfação das necessidades se opõe à economia de mercado, na medida em que satisfaz as necessidades a priori, em que efetua uma distribuição independente de uma contraprestação medida exatamente (a troca!) oferecida pelo indivíduo. Inclusive na sociedade capitalista, a gratuidade do ensino primário funciona independentemente de se saber se os pais da criança pagam osa seus impostos, se efetuam um trabalho útil ou não à sociedade, se são "cidadãos de bem" ou perigosos criminosos de direito comum.

(...)

O prodigioso desenvolvimento das forças produtivas na época da transição do capitalismo ao socialismo permite assegurar dois processos que modificarão radicalmente o modo de distribuição: por um lado, o "salário social" se aproxima cada vez mais da sua norma "ideal", a da abundância; por outro, um número cada vez maior de bens e serviços deve passar progressivamente da categoria de bens distribuídos pela troca (a compra) à categoria de bens repartidos segundo as necessidades.

As condições que presidem a esta transformação do modo de distribuição ainda estão ligadas aos imperativos de uma sociedade fundada na semipenúria. Antes de se libertar da pesada carga milenar do cálculo econômico, a sociedade deve calcular de maneira mais concreta e precisa do que até hoje. Os primeiros bens e serviços sobre os quais podem se aplicar as novas normas de distribuição são , portanto, os que

1) são muito homogêneos

2) para os quais a demanda se tornou inelástica tanto à queda dos preços como ao aumento dos rendimentos

3) dificilmente podem ser utilizados como produtos ou serviços de substituição para outros produtos e serviços que ainda se distribuem segundo as normas de troca da economia mercantil

4) a sua distribuição contra pagamento em dinheiro implica em injustiças manifestas (reduz, na prática, a renda nacional), enquanto a distribuição gratuita aumenta consideravelmente o bem-estar social (é fonte potencial de um crescimento da renda nacional).

Em suma, a sociedade socializa primeiro os custos de satisfação das necessidades em condições tais que essa socialização não cause um aumento considerável desses custos. Quando a demanda de um produto se tornou inelástica a toda queda de preços ou a todo aumento da renda, a socialização dos custos de produção desse produto não causa nenhuma carga suplementar para a sociedade como um todo. Este é, por exemplo, o caso do sal em todas as sociedades industrialmente avançadas, cujo consumo não varia - em tempos normais - nem com o preço do produto nem com a renda dos cidadãos.

A lei econômica que preside à extinção da economia de mercado pode ser formulada da seguinte maneira: à medida que a sociedade enriquece, que a economia planificada assegura um desenvolvimento prodigioso das forças produtivas, essa sociedade adquire os recursos necessários para socializar os custos da satisfação de um número crescente de necessidades para todos os cidadãos. E, à medida em que o nível de vida dos cidadãos aumenta, uma quantidade cada vez maior de bens e serviços adquire uma elasticidade da demanda próxima a zero ou até negativa em relação à queda dos preços e ao aumento da renda. Em outras palavras: por ambos os motivos, o progresso da economia planificada permite incluir cada vez mais bens e serviços na categoria dos que podem se distribuir segundo as necessidades.

(...)

O trabalho é a característica fundamental do homem. Graças ao trabalho, a espécie humana se apropria da sua subsistência indispensável; o trabalho é, ao mesmo tempo, a primeira razão de ser, o produto e o cimento dos laços sociais. Assim o homem só se converte em um ser social no sentido antropológico do termo, só adquire o seu sistema fisiológico normal, graças a uma fase de "socialização ativa" que se estende desde o seu nascimento até a puberdade, quando não até à sua maioridade física e intelectual.

Mas quando a necessidade de trabalhar para a produção de subsistência desparece, porque as máquinas efetuam sozinhas este trabalho, o que resta do trabalho como característica fundamental do homem? A antropologia precisa a noção de trabalho. De fato, o próprio do homem é a práxis, a ação: "O homem é um ser fisicamente constituído de tal forma que só pode sobreviver agindo" (A. Gehlen).

O trabalho, no sentido histórico do termo, o trabalho como tem sido praticado até hoje pela humanidade sofredora e indigente, condenada a trabalhar com o suor do rosto, só é a forma mais miserável, a forma mais "inumana", a mais "animal" da práxis humana. Assim como, para Friedrich Engels, toda a história da humanidade dividida em classes sociais não é mais que uma pré-história humana, assim também o trabalho tradicional não é mais que a forma pré-histórica da práxis humana criadora universal, que já não produz coisas, e sim personalidades desenvolvidas harmoniosamente. Depois da extinção da mercadoria, do valor, do dinheiro, das classes, do Estado e da divisão social do trabalho, a sociedade socialista plenamente desenvolvida provocará a extinção do trabalho no sentido tradicional do termo.

 O fim do socialismo não pode ser a humanização do trabalho, assim como também não pode ser a melhora do salário ou da instituição salarial; uma e outras não são mais que etapas transitórias, expedientes e paliativos. Uma fábrica moderna nunca constituirá um ambiente de vida "normal" ou "humano" para o homem, seja qual for a redução das horas de trabalho ou a adaptação dos locais e das máquinas às necessidades do homem. O processo de humanização do homem só se concluirá quando o trabalho for extinto e der lugar à práxis criadora, orientada unicamente à criação de homens desenvolvidos universalmente.

Comentários

Clessio disse…
Acabou? rs
Senti falta de uma conclusão/comparação das teorias e a (arriscada) opinião sobre qual o caminho mais promissor. Podemos assumir que a traducao ipsis literis do Mandell sugere que é o mais acertado e sem ressalvas relevantes?
Parabéns pela série.
rodrigodoo disse…
Oi, Cléssio!

Acabou não hahahaha ainda vai ter mais duas partes que eu devo escrever no começo do ano (mas eu vou contar que eu gosto desses modelos híbridos que têm alguns mecanismos de mercado provisórios).

Um abração!