Sadiq Al-Azm (1934-2016) foi o maior teórico marxista sírio. Essa obra é fundamental para a crítica ao conceito culturalista de orientalismo, que tem sido uma barreira para a compreensão da história e da sociedade dos países orientais. Para conhecer melhor o pensamento dele, recomendo essa entrevista aqui. Eu traduzi a partir do texto em inglês aqui
Orientalismo e orientalismo invertido
Parte 1: Orientalismo

Edward Said também fala do orientalismo no sentido mais restrito de uma
tradição em desenvolvimento de conhecimentos disciplinares cuja função
principal é “estudar cientificamente” o oriente. Naturalmente, esse orientalismo acadêmico cultural faz a
sua profissão de fé na “busca desinteressada pela verdade” sobre o oriente, e
nos seus esforços para aplicar métodos científicos imparciais e técnicas
neutras para estudar os povos, culturas, religiões e línguas do oriente. O
principal do livro de Said, previsivelmente, é devotado ao orientalismo
acadêmico cultural, numa tentativa de mostrar os laços que o ligam ao
orientalismo institucional.
Dessa forma, Said esvazia as declarações autocomplacentes do
orientalismo acadêmico cultural sobre traços como independência acadêmica,
neutralidade científica, objetividade política etc. Deve ficar claro, porém,
que em momento nenhum o autor procura diminuir as verdadeiras conquistas acadêmicas,
as descobertas científicas, e contribuições criativas feitas pelos
orientalistas e pelo orientalismo ao longo dos anos, particularmente no nível
técnico2. A sua principal preocupação
é passar a mensagem de que a imagem geral do oriente construída pelo
orientalismo acadêmico cultural, do ponto de vista das suas próprias conquistas
técnicas e contribuições científicas ao campo, é completamente permeada por
pressupostos racistas, interesses mercenários precariamente camuflados,
explicações reducionistas e preconceitos antihumanos. Pode-se mostrar facilmente
que essa imagem, quando devidamente escrutinada, dificilmente é o produto de
uma investigação científica verdadeiramente objetiva e de disciplinas acadêmicas
neutras.
Crítica
do Orientalismo
Um dos aspectos mais viciosos dessa imagem, como é cuidadosamente
apontado por Said, é a crença profundamente arraigada – tanto do orientalismo
acadêmico cultural como do institucional – na existência de uma diferença ontológica
fundamental entre as naturezas essenciais do oriente e do ocidente, com vantagem
decisiva para o ultimo. As sociedades, culturas,
línguas e mentalidades ocidentais são imaginadas como essencial e inerentemente
superiores às orientais. Nas palavras de Edward Said, “a essência do orientalismo
é a distinção inerradicável entre a superioridade ocidental e a inferioridade
oriental” 3. De acordo com essa leitura
da tese inicial de Said, dificilmente se poderia dizer que o orientalismo
(tanto na sua forma institucional como na acadêmica cultural) existiu, como fenômeno
estruturado e movimento organizado, antes da ascensão, consolidação e expansão
da Europa burguesa moderna. Coerente com isso, o autor, em um momento, data a
ascensão do orientalismo acadêmico no Renascimento europeu4. Mas, infelizmente, o
estilista e polemista em Edward Said muitas vezes passa por cima do pensador
sistemático. Como resultado disso, ele não adere consistentemente à abordagem
acima, seja em datar o fenômeno do orientalismo, seja em interpretar as suas
origens e sua ascensão histórica.
Num ato de projeção histórica retrospectiva, vemos Said traçar as
origens do orientalismo diretamente em Homero, Ésquilo, Eurípedes e Dante5. Em outras palavras, o
orientalismo não é, na verdade, um fenômeno completamente moderno, como
pensamos antes, e sim o produto natural de uma tendência mental europeia,
antiga e quase irresistível, a distorcer a realidade de outras culturas, povos,
e suas línguas, a favor da autoafirmação ocidental, da sua dominação e
ascendência. Aqui o autor parece estar dizendo que a “mente europeia”, de
Homero a Karl Marx e A.H.R. Gibb, tende por sua natureza a distorcer todas as
realidades humanas diferentes da sua, em nome do seu próprio engrandecimento.
Me parece que essa maneira de construir as origens do orientalismo
simplesmente fortalece as categorias essencialistas de “oriente” e “ocidente”,
que representam a distinção inerradicável entre Leste e Oeste, que o livro de
Said aparentemente pretende demolir. Da mesma forma, ele dá à distinção
ontológica entre Europa e Ásia, tão característica do orientalismo, o tipo de
credibilidade e respeitabilidade normalmente associados com a continuidade,
persistência, difusão e raízes históricas distantes. Esse tipo de credibilidade
e respeitabilidade é, claro, sem merecimento e sem lugar. Porque o
orientalismo, como tantos outros fenômenos e movimentos modernos
caracteristicamente europeus modernos (notavelmente o nacionalismo), é uma
criação verdadeiramente recente – produto da história europeia moderna – buscando
adquirir legitimidade, credibilidade e apoio ao reivindicar raízes antigas e
origens clássicas para si. Certamente, Homero, Eurípides, Dante, São Tomás e
todas as outras autoridades que alguém quiser mencionar tinha a visão padrão mais
ou menos distorcida prevalecente no meio sobre outros povos e culturas. Entretanto,
também é certo que as duas formas de orientalismo construíram os seus repertórios
relativamente modernos de sabedoria convencional sistemática retomando os pontos
de vista e preconceitos dessas figuras de prestígio, assim como buscando em
mitos antigos, lendas, imagens, folclore e preconceito puro e simples. Embora
muito disso seja bem documentado (direta e indiretamente) no livro de Said,
mesmo assim a sua obra continua dominada por uma concepção unilateral de
orientalismo como algo que veio direto de Homero até Grunebaum. Além disso,
essa apresentação unilinear, quase essencialista, sobre as origens e o
desenvolvimento do orientalismo presta um grande desserviço às preocupações
vitais do livro de Said, a saber, preparando o terreno para abordar a difícil
questão de como podemos outros povos e culturas numa perspectiva libertária ou
não-repressiva e não-manipulativa, e eliminar, em nome da nossa humanidade
comum, tanto o “ocidente” como o “oriente” como categorias ontológicas e
conceitos classificatórios que trazem as marcas de superioridade e
inferioridade raciais.
Me parece que a consequência lógica da tendência de Said em ver as origens e o desenvolvimento do orientalismo em termos de tal constância unilateral é que a tarefa de combater e transcender as suas categorias essencialistas, em nome da nossa humanidade comum, se torna ainda mais difícil.
Me parece que a consequência lógica da tendência de Said em ver as origens e o desenvolvimento do orientalismo em termos de tal constância unilateral é que a tarefa de combater e transcender as suas categorias essencialistas, em nome da nossa humanidade comum, se torna ainda mais difícil.
Outro resultado importante dessa abordagem pesa sobre a interpretação de
Said sobre a suposta relação entre o orientalismo acadêmico cultural como
representação e disciplina acadêmica de um lado, e o orientalismo institucional
como movimento de expansão e força socioeconômica, por outro.
Em outras palavras, quando Said se apoia com mais força na sua concepção unilateral de orientalismo, ele cria uma visão em que este aparato cultural conhecido como orientalismo é a verdadeira fonte do interesse político do ocidente pelo oriente, ou seja, que é a verdadeira fonte do orientalismo institucional moderno. Assim, para ele, o interesse político europeu, e depois americano, pelo oriente foi criado realmente pelo tipo de tradição cultural ocidental conhecido como orientalismo 6. Além disso, de acordo com uma das suas interpretações, o orientalismo é a difusão da consciência de que o mundo é feito de duas metades desiguais – Oriente e Ocidente – em textos estéticos, acadêmicos, econômicos, sociológicos, históricos e filosóficos. Essa consciência não só criou toda uma série de “interesses” ocidentais (políticos, econômicos, estratégicos etc) no oriente, como também ajudou a mantê-los7. Portanto, para Said a relação entre o orientalismo acadêmico como aparato cultural e o orientalismo institucional como interesse econômico e força política é visto em termos de uma “transição desproporcional” de uma “apreensão, formulação ou definição meramente textual sobre o oriente para a colocação disso tudo em prática no oriente” 8 De acordo com essa interpretação, a frase de Said, “O orientalismo substituiu o Oriente” 9 só pode significar que o orientalismo institucional que invadiu e subjugou o Leste era o filho legítimo e produto do outro tipo de orientalismo, tão intrínseco, ao que parece, às mentes, textos, estéticas, representações, lendas e imagens dos ocidentais desde Homero, Ésquilo e Eurípedes! Para entender propriamente a subjugação do Leste nos tempos modernos, Said continua a nos referir aos tempos antigos, em que o oriente não era mais do que uma consciência, uma palavra, uma representação, uma peça de aprendizado do ocidente10:
Em outras palavras, quando Said se apoia com mais força na sua concepção unilateral de orientalismo, ele cria uma visão em que este aparato cultural conhecido como orientalismo é a verdadeira fonte do interesse político do ocidente pelo oriente, ou seja, que é a verdadeira fonte do orientalismo institucional moderno. Assim, para ele, o interesse político europeu, e depois americano, pelo oriente foi criado realmente pelo tipo de tradição cultural ocidental conhecido como orientalismo 6. Além disso, de acordo com uma das suas interpretações, o orientalismo é a difusão da consciência de que o mundo é feito de duas metades desiguais – Oriente e Ocidente – em textos estéticos, acadêmicos, econômicos, sociológicos, históricos e filosóficos. Essa consciência não só criou toda uma série de “interesses” ocidentais (políticos, econômicos, estratégicos etc) no oriente, como também ajudou a mantê-los7. Portanto, para Said a relação entre o orientalismo acadêmico como aparato cultural e o orientalismo institucional como interesse econômico e força política é visto em termos de uma “transição desproporcional” de uma “apreensão, formulação ou definição meramente textual sobre o oriente para a colocação disso tudo em prática no oriente” 8 De acordo com essa interpretação, a frase de Said, “O orientalismo substituiu o Oriente” 9 só pode significar que o orientalismo institucional que invadiu e subjugou o Leste era o filho legítimo e produto do outro tipo de orientalismo, tão intrínseco, ao que parece, às mentes, textos, estéticas, representações, lendas e imagens dos ocidentais desde Homero, Ésquilo e Eurípedes! Para entender propriamente a subjugação do Leste nos tempos modernos, Said continua a nos referir aos tempos antigos, em que o oriente não era mais do que uma consciência, uma palavra, uma representação, uma peça de aprendizado do ocidente10:
“Temos que saber que é por um longo e lento processo de apropriação que a Europa, ou a consciência europeia sobre o oriente, se transformou, de textual e contemplativa, em administrativa, econômica e até militar”11
Portanto, Edward Said vê a “ideia do Canal de Suez” muito mais como a “conclusão
lógica do pensamento e do esforço orientalistas” 12 do que
como resultado dos interesses e rivalidades imperiais franco-britânicos (embora
ele não os ignore).
Não temos como escapar da impressão de que, para Said, a emergência de
tais observadores, administradores e invasores do oriente como Napoleão, Cromer
e Balfour, de alguma forma, se tornou inevitável por causa do “orientalismo”, e
que as orientações políticas, carreiras e ambições dessas figuras são melhor
compreendidas com referência a d’Herbelot e Dante do que a interesses mundanos
mais imediatamente relevantes. De acordo com isso, não surpreende que vejamos
Said, ao falar do papel das potências europeias em decidir a história do
Oriente Próximo no começo do século XX, escolha destacar “a referência
epistemológica peculiar pela qual as potências viam o oriente” 13, que foi
construída pela longa tradição do orientalismo. Ele, então, afirma que as potências
agiram no oriente da maneira que agiram por causa dessa referência epistemológica
peculiar. Presumivelmente, se a longa tradição do orientalismo acadêmico cultural
tivesse formulado uma referência epistemológica menos peculiar, mais simpática
e verdadeira, então as potências poderiam ter agido no oriente mais
generosamente e o visto numa luz mais favorável!
Ele até acha que “não há nada especialmente controverso ou repreensível na domesticação de uma cultura exótica e estrangeira nos termos de referência de outra cultura” porque “tais domesticações do exótico acontecem entre todas as culturas, e certamente entre todos os homens”.15 Na verdade, Said eleva isto a um princípio geral que emana da “natureza da mente humana”, e que governa invariavelmente a dinâmica da recepção de uma cultura por outra. Assim “todas as culturas impõem correções sobre a realidade bruta, mudando-a de objetos em voo livre para unidades de conhecimento” porque “é perfeitamente natural para a mente humana resistir ao assalto da estranheza não-tratada”.16
Agora, a questão para a qual não tenho respostas
prontas é: como o crítico contemporâneo mais agudo e versátil do orientalismo
elogia tanto um orientalista que obviamente reivindica todo o aparato dos
dogmas desacreditados do orientalismo?
A realidade bruta e seus representantes
Quando Said está pensando e escrevendo nessas linhas, é difícil escapar
da forte impressão de que, para ele, as representações, imagens, palavras,
metáforas, idiomas, estilos, universos discursivos, ambientes políticos,
sensibilidades culturais, peças de conhecimento altamente mediadas, verdades
extremamente rarefeitas são, senão o próprio estofo da realidade, certamente
muito mais importantes e informativos que a própria realidade bruta. Se o
orientalismo acadêmico transmuta a realidade do oriente na substância dos
textos (como ele diz na página 86), então parece que Said sublime as realidades
terrenas da interação entre o ocidente e o oriente na substância eterna do
espírito. Detecta-se, assim, um viés anticientífico geral forte e injustificado
no seu livro. Esse fato fica mais claro na sua invectiva constante contra o
orientalismo acadêmico cultural por ter categorizado, classificado, tabulado,
codificado, indexado, esquematizado, reduzido e dissecado o oriente (e,
portanto, por haver distorcido a sua realidade e desfigurado o seu modo
particular de ser), como se essas operações fossem de alguma forma más por si
mesmas, e inadaptadas à compreensão correta das sociedades, culturas e
linguagem humanas.
Ainda assim, o próprio Said admite prontamente que é impossível uma
cultura, seja oriental, ocidental ou sulamericana, entender muito sobre a
realidade de outra cultura estrangeira, sem recorrer à categorização,
classificação, esquematização e redução – com as necessárias distorções e
representações erradas que as acompanham. Se, como Said insiste, o exótico
não-familiar e estrangeiro são sempre apreendidos, domesticados, assimilados e
representados em termos do já familiar, então tais distorções e más
representações se tornam inevitáveis. Para Said:
“…as culturas sempre se inclinaram a impor transformações completas
sobre outras culturas, recebendo essas outras culturas não como elas são mas,
para o benefício da recebedora, como deveriam ser”.14
Ele até acha que “não há nada especialmente controverso ou repreensível na domesticação de uma cultura exótica e estrangeira nos termos de referência de outra cultura” porque “tais domesticações do exótico acontecem entre todas as culturas, e certamente entre todos os homens”.15 Na verdade, Said eleva isto a um princípio geral que emana da “natureza da mente humana”, e que governa invariavelmente a dinâmica da recepção de uma cultura por outra. Assim “todas as culturas impõem correções sobre a realidade bruta, mudando-a de objetos em voo livre para unidades de conhecimento” porque “é perfeitamente natural para a mente humana resistir ao assalto da estranheza não-tratada”.16
Na verdade, em um momento Said chega ao ponto de negar inteiramente a
possibilidade de se alcançar a “verdade objetiva” sobre outras culturas,
especialmente se elas parecerem exóticas, estranhas e estrangeiras. O únicos
meios de abordá-las e recebê-las são os da redução, representação e
esquematização, com todas as distorções e falsificações esperadas que tais
operações implicam e impõem. De acordo com Said:
‘…a grande questão é se, de fato, pode haver uma representação verdadeira sobre uma coisa, ou se toda e qualquer representação, por ser representação, está enquadrada primeiro na linguagem e depois na cultura, nas instituições e no ambiente político do representador. Se a última alternativa é a correta (e eu acredito que é), então devemos nos preparar para aceitar o fato de que a representação é eo ipso implicada, misturada, enquadrada, entrelaçada com muitas outras coisas além da “verdade”, que é, em si mesma, uma representação” 17.
Se, como o autor, continua a repetir (como forma de censura e castigo),
o oriente estudado pelo orientalismo não é mais do que uma imagem e uma
representação da mente e da cultura do ocidente (o representador em questão),
então também é verdade que o ocidente, ao fazer isso, está agindo de forma
perfeitamente natural e de acordo com a regra geral – declarada pelo próprio
Said – que governa a dinâmica da recepção de ma cultura por outra. Dessa forma,
o ocidente, ao tentar lidar (através do orientalismo) com a realidade bruta do
oriente, faz o que todas as culturas fazem nessas circunstâncias, a saber:
- Domesticar o estrangeiro e representá-lo através dos seus próprios termos e padrões de referência familiares;
- Impor sobre o Oriente as “transformações completas” que Edward Said diz que as culturas tendem a efetuar umas sobre as outras, para assim receber o estranho não como ele é, e sim como ele deveria ser para o benefício do recebedor;
- Impor sobre a realidade bruta do oriente as correções necessárias exigidas para transformá-lo de “objetos em voo livre em unidades de conhecimento”; e
- Seguir a tendência natural da mente humana em resistir ao “assalto da estranheza não-tratada”.
A representação do Islã pelo ocidente
Um dos exemplos dados por Said é de particular interesse:
“A recepção do Islã no ocidente é um caso perfeito em vista, e foi estudada admiravelmente por Norman Daniel. Uma barreira que agiu sobre os pensadores cristãos que tentaram entender o Islã foi analógica; já que Cristo é a base da fé cristã, se assumia – bem incorretamente – que Muhammad era para o Islã o que Cristo era para o cristianismo. Daí o nome polêmico “maometanismo” dado ao Islã, e o epíteto automático de “impostor” aplicado a Muhammad. A partir dessa e de muitas outras concepções erradas “se formou um círculo que nunca foi quebrado pela exteriorização imaginativa... o conceito cristão sobre o Islã era integral e autossuficiente”; o Islã se tornou uma imagem – a palavra é de Daniel mas, para mim, parece ter implicações notáveis para o orientalismo em geral – cuja função não era tanto representar o Islã em si como representá-lo para o cristão medieval”18.
O significado do argumento acima está no fato de que Said nunca o leva à
sua conclusão lógica à luz do que disse ser geralmente verdadeiro sobre a
dinâmica redutiva da recepção de uma cultura por outra. Como ele sabe muito
bem, a recepção do cristianismo pelo Islã difere pouco do relato dado acima. Para
argumentar isso, vou apresentar a essência da passagem citada acima com as
seguintes alterações:
“Uma barreira que agiu sobre os pensadores muçulmanos que tentaram entender o cristianismo foi analógica: como Muhammad não era mais que o Mensageiro de Deus, se assumia – bem incorretamente – que Cristo era para o cristianismo o que Muhammad era para o Islã, a saber, um simples Mensageiro de Deus ou um profeta comum. Daí as polêmicas contra a sua encarnação, filiação a Deus, divindade, crucificação, ressurreição, e o epíteto automático de “falsificadores” aplicado aos primeiros guardiões das Escrituras Sagradas. A partir dessa e de muitas outras concepções erradas “se formou um círculo que nunca foi quebrado pela exteriorização imaginativa... o conceito muçulmano sobre o cristianismo era integral e autossuficiente”; o cristianismo se tornou uma imagem – a palavra é de Daniel mas, para mim, parece ter implicações notáveis para como uma cultura recebe outra em geral – cuja função não era tanto representar o cristianismo em si como representá-lo para o muçulmano medieval”.
À luz desses comentários críticos, deve ficar claro: (a) por que Said
lida tão duramente com as tentativas de Marx de entender e interpretar as
sociedades orientais; (b) por que ele lida tão mais suavemente com a visão de Macdonald-Gibb
sobre o Islã; e (c) por que ele lida tão caridosa e simpaticamente com as
extrapolações místico-teosóficas que floresceram a partir do ramo do
orientalismo de Massignon.
Said critica e expõe a falsidade do tipo de asserções declarativas
feitas pela variedade de orientalismo de Macdonald-Gibb sobre o Islã e os
muçulmanos. Ele as ataca por serem abstratas, metafísicas e inverídicas. Aqui
está uma amostra de tais asserções:
- “É simples, penso eu, e admitido por todos, que a concepção do Invisível é muito mais imediata e real para o oriental que para os povos ocidentais.”
- “A diferença essencial da mente oriental não é a credulidade em coisas invisíveis, e sim a incapacidade de construir um sistema para ver as coisas.”
- “A diferença do oriental não é essencialmente a religiosidade, e sim a falta de senso da lei19. Para ele, não há ordem imutável na natureza.”
- “É evidente que tudo é possível para o oriental. O sobrenatural é tão próximo que ele pode tocá-lo a qualquer momento.”
- “Até recentemente, o cidadão muçulmano comum e cultivado não tinha interesses ou funções políticas, e nenhuma de literatura de fácil acesso a não ser a literatura religiosa, não tinha festivais nem vida comunitárias a não ser em conexão com a religião, via pouco ou nada do mundo exterior a não ser através de lentes religiosas. Para ele, consequentemente, a religião significava tudo”20.
O
problema com afirmações assim não está somente na sua falsidade, caráter
abstrato e metafísico. Certamente, nem Macdonald nem
Gibb foram simples vítimas, ao fazer essas declarações, do “padrão
epistemológico” construído pelas tradições do orientalismo, como Said acusa. Na
verdade, pode-se argumentar convincentemente que, num certo sentido bem
significativo:
- É verdade que, em geral, o Invisível é muito mais imediato e real para os cidadãos comuns do Cairo e de Damasco do que para os habitantes atuais de Nova Iorque e Paris;
- É verdade que a religião “significa tudo” para a vida dos camponeses marroquinos, de uma forma que é incompreensível para os fazendeiros americanos de hoje;
- É verdade que a ideia de uma ordem natural independente e inviolável é, em muitos aspectos, mais real, concreta e firmemente estabelecida nas mentes dos estudantes da Universidade de Moscou do que nas mentes dos estudantes da Universidade de Al-Azhar (ou qualquer outra universidade do mundo muçulmano).
O que Said falha em perceber é o fato de que as afirmações do ramo de
orientalismo de Macdonald-Gibb são realmente declarativas somente num sentido
muito específico. Elas se mascaram como declarações de fatos só para ocultar um
grupo de diretivas e instruções amplas sobre como os ocidentais devem lidar e
se relacionar com o oriente e os orientais, aqui e agora. Essas diretivas são,
necessariamente, de natureza geral e, portanto, exigem uma variedade de “definições
operacionais” para transformá-las em passos práticos úteis para grupos tão
diferentes como missionários ocidentais, professores, administradores, homens
de negócios, oficiais do exército, diplomatas, peritos em inteligência, formuladores
de políticas etc. Por exemplo, essas pessoas são guiadas por essas diretivas e
instruções implícitas para permiti-los tirar vantagem do fato de que as crenças
religiosas, lealdades tribais, explicações teológicas e assim por diante ainda
desempenham um papel muito mais decisivo na vida das sociedades orientais
contemporâneas do que nas ocidentais modernas.
A própria limitação do escopo declarativo do tipo de afirmações de Macdonald-Gibb
trai não só a sua função prática e relevância imediata em situações reais, mas
também o padrão mental e de pensamento profundamente ahistórico de que elas
emanam. Elas fingem que o Invisível sempre foi (e sempre será) mais imediato e
real para os orientais do que para os povos ocidentais do passado, presente e futuro.
Da mesma forma, elas fingem que a ideia de uma ordem de leis naturais
independente sempre foi e sempre será mais real e firmemente estabelecida para
a mente e para a vida ocidentais do que jamais o será na consciência dos seres
humanos orientais. Ao simples fato histórico de que numa época, digamos antes
da crise da cristandade, o Invisível era tão imediato e real quanto para os
ocidentais, não é permitido que perturbe a serenidade factual aparentemente
olímpica dos pseudodeclarativos de Macdonald-Gibb.
Se for possível falar de um heroi em livro como Orientalismo, então
Massignon aparece como o melhor candidato para o papel. Este grande
orientalista francês é elogiado por ter ultrapassado todos os outros na tarefa
quase impossível de entender verdadeira e simpaticamente a cultura, a religião
e a mentalidade orientais muçulmanas. Devido ao seu profundo humanismo e
compaixão, ele diz que Massignon, foi capaz de se identificar com as “forces vitais”
que informam a cultura oriental, e de entender a sua “dimensão espiritual” como
ninguém mais fez, antes ou depois dele, no ocidente21.
Mas, em última análise, a identificação presumida de Massignon com as “forças
vitais” e a “dimensão espiritual” da cultura oriental não são simplesmente uma
versão personalizada, idealizada e reiterada da representação orientalista
clássica de um oriental “supervalorizado pelo seu panteísmo, espiritualidade,
longevidade e primitividade” 22, uma
representação que Said refutou com tanta maestria? Além disso, inferimos da
discussão sobre o significado e importância de obra de Massignon que ele em
nenhum momento abandonou o pressuposto cardeal (e pecado original, de acordo
com Said) de todo o orientalismo, a saber, a insistência na separação
essencialista do mundo em duas metades, cada uma com sua natureza e seus traços
inerentemente diferentes. Então, é evidente que, para Massignon, assim como na
obra de qualquer outro orientalista atacado por Said, o oriente e o ocidente
continuam a ser as categorias ontológicas e esquemas classificatórios
fundamentais, como todas as implicações e aplicações envolvidas.
Aprendemos com o livro de Said que: (a) o oriente de Massignon é
completamente consoante com o mundo dos Sete Adormecidos e com as orações
abraâmicas23; (b) que
“os seus esforços repetidos para entender e se relacionar com o conflito
palestino, apesar de todo o seu profundo humanismo, nunca conseguiram
ultrapassar realmente a querela entre Isaque e Ismael24; (c) que,
para ele, a essência da diferença entre Leste e Oeste é entre modernidade e tradição
antiga25; (d) que,
no seu ponto de vista, o oriente islâmico é sempre espiritual, semita, tribal,
radicalmente monoteísta e não ariano26; (e) que
ele era amplamente procurado como especialista em questões islâmicas pelos
administradores coloniais27 e (f) que
ele tinha convicção de que era obrigação da França se associar ao desejo dos
muçulmanos de defender a sua cultura tradicional, a ordem da sua vida dinástica
e o patrimônio dos fieis28.
Karl Marx
e o Oriente
A imagem que se forma no livro de Said sobre a atitude de Marx em
relação ao oriente é mais ou menos a seguinte29: Através
das suas análises sobre o domínio britânico na Índia, Marx chegou à “noção de
um sistema econômico asiático” (ou seja, o famoso modo de produção asiático)
“que agia como o sólido fundamento do tipo de poder político conhecido como
‘despotismo oriental’”. Inicialmente, a destruição violenta e transformação da
organização social tradicional da Índia horrorizaram Marx e o chocaram como ser
humano e pensador. A sua humanidade foi afetada, e a sua simpatia se engajou
por causa das misérias humanas e o sofrimento causados por esse processo de
transformação. Nesse momento do seu desenvolvimento, Marx ainda se identificava
com a Ásia espoliada e sentia alguma empatia pelas suas massas condenadas. Mas,
então, Marx caiu sob a influência do ensino orientalista, e a imagem mudou
rapidamente. Os rótulos do orientalismo, o seu vocabulário, suas abstrações e
definições começaram a dominar a sua mente e as suas emoções.
De acordo com Said, Marx – que no começo reconheceu a individualidade da
Ásia - se tornou cativo da formidável censura criada pelo vocabulário, ensino e
lendas do orientalismo. Ele cita o que supostamente aconteceu com o pensamento
de Marx como um exemplo de como os “engajamentos humanos ‘não-orientalistas’
são dissolvidos [e] então usurpados pelas generalizações orientalistas”. A
simpatia inicial e o sentimento expressos por Marx desapareceram conforme ele
encontrou as definições inabaláveis construídas pela ciência orientalista e
apoiadas pelas lendas orientais que supostamente seriam apropriadas para ela. Em
resumo, o caso de Marx mostra como “uma experiência foi desalojada por uma
definição de dicionário”
30.
É assim que Said vê a metamorfose que levou Marx à visão (altamente
contestável para Said) de que a Grã-Bretanha estava tornando possível uma
verdadeira revolução social na Índia, agindo como um instrumento inconsciente da
história ao trazer a revolução. Assim, a Grã-Bretanha é vista por Marx como
simultaneamente uma agência de destruição e regeneração na Ásia. Said traça,
sem ambiguidade, essa visão madura de Marx diretamente vindo do pseudoensino e
das fantasias orientalistas sobre o Leste, especialmente na sua variedade
messiânica e romântica do século XIX.
Para ele, Marx não é uma exceção a todos
os europeus que lidaram com o Leste em termos da categoria orientalista básica
da desigualdade entre Leste e Oeste. Além disso, ele declara diretamente que as
análises econômicas de Marx cabem perfeitamente no empreendimento orientalista
padrão.
Penso que esse balanço das visões e análises de Marx sobre processos e
situações históricos altamente complexos é uma fraude. Sem dúvida, Marx, assim
como qualquer outro gênio criativo, foi muito influenciado pelo ensino lexicográfico,
definições de dicionário, abstrações, representações, generalizações e normas
linguísticas prevalecentes na sua época e no seu meio. Mas só a fascinação excessiva
de Said pelo verbal, o textual e o linguístico poderia levá-lo a retratar a
mente de Marx como algo usurpado e tomado (contra os seus sentimentos e o seu
melhor julgamento) pelo vocabulário, a lexicografia e as definições de
dicionário da tradição orientalista no ocidente! Com Said, fica-se, às vezes, à
beira da regressão à crença na eficácia mágica das palavras.
A maneira de Marx de analisar o domínio britânico na Índia em termos de
um instrumento inconsciente da história – tornando possível uma verdadeira revolução
social ao destruir a velha Índia e criar as bases de uma nova ordem – não pode ser
remetida em nenhuma circunstância à usurpação da mente de Marx pela verborragia
orientalista convencional. A explicação de Marx (independente de concordarmos
ou discordarmos dela) testifica a sua consistência teórica em geral, e o seu
aguçado realismo ao analisar situações históricas específicas. Isso fica
evidente pelo fato de que Marx sempre tendia a explicar os processos históricos
em termos de agência social, lutas econômicas, movimentos políticos e grandes
personalidades que desempenhavam simultaneamente o papel de destruidores e
criadores. Eles eram muitas vezes elencados por ele como “instrumentos
inconscientes”da uma história se desenrolando em etapas e, algumas vezes, em
formas imprevisíveis e inescrutáveis. Não existe nada específico sobre a Ásia
ou o oriente nas interpretações teóricas amplas de Marx sobre o passado,
presente e futuro. Nisso, as suas fontes são de referência completamente “europeia”
e não devem nada ao ensino orientalista. Basta lembrar as vívidas passagens do Manifesto Comunista em que Marx retrata
a burguesia europeia moderna no duplo papel de destruidora e criadora:
destruidora da antiga Europa herdada, criadora do seu presente liberal e
condutora do seu futuro proletário. Assim como a classe capitalista europeia, o
domínio britânico na Índia era o seu próprio coveiro. Não há nada
particularmente “orientalista” nessa explicação. Além disso, o chamado de Marx
a uma revolução na Ásia é mais historicamente realista e promissor do que
quaisquer nobres sentimentos que ele possa ter acalentado sobre as formações
socioeconômicas necessariamente evanescentes.
Citarei outro exemplo, não relacionado nem com o orientalismo, nem com a
Ásia nem com o reino da política. É assim que Marx descreveu o duplo papel do
capital usurário na destruição da “pequena
produção camponesa e burguesa” e na formação da moderna Europa industrial31.
Por um
lado:
“O capital usurário empobrece o modo de produção, paralisa as forças produtivas, em vez de desenvolvê-las... Ele não altera o modo de produção, e sim se prende firmemente a ele como um parasite, e o condena. Ele suga o seu sangue, o enerva e força a reprodução a acontecer sob condições cada vez piores. Daí o ódio popular contra os usurários...”
Por outro lado:
“A usura, em contradição ao consumo da riqueza, é importante historicamente, porquanto ela é em si mesma, um processo de geração de capital... A usura é uma ponderosa alavanca para desenvolver as precondições para o capital industrial e, nessa medida, ela desempenha o seguinte duplo papel, primeiro, de construir, em geral, uma riqueza monetária independente, ao lado da mercantil e, em segundo lugar, de criar condições próprias para o trabalho, ou seja, arruinar os proprietários das antigas condições de trabalho.”
A acusação de Said de que Marx aderiu à ideia orientalista básica sobre
a superioridade do ocidente sobre o oriente parece derivar a sua plausibilidade
apenas da ambiguidade subjacente à sua própria discussão sobre o assunto. Que a
Europa do século XIX era superior à Ásia e à maioria do resto do mundo em
termos de capacidade produtiva, organização social, ascendência histórica,
poder militar e desenvolvimento científico e tecnológico é incontestável como
fato histórico contingente. O orientalismo, com a sua tendência mental
ahistórica burguesa, fez o melhor que pôde para eternizar esse fato mutável,
para torná-lo uma realidade permanente, no passado, presente e futuro. Daí a
ontologia essencialista do orientalismo sobre o ocidente e o oriente. Marx,
como qualquer um, sabia da superioridade da Europa moderna sobre o Oriente. Mas
acusar um pensador radicalmente historicista como Marx de tornar esse fato
contingente uma realidade necessária para todos os tempos é simplesmente
absurdo. O fato de que ele utilizava termos relacionados ou derivados da tradição
orientalista não o torna um partidário da ontologia essencialista sobre o ocidente
e o oriente, tanto quanto o seu uso constante de epítetos pejorativos como “crioulo”
ou “judeu” (para descrever adversários, inimigos de classe, pessoas que ele
desprezava, e assim por diante) não o tornava um racista e antissemita
sistemático. Sem dúvida, a típica visão messiânica romântica era uma parte
essencial do historicismo de Marx. Mas Said erra muito ao atribuir essa visão à
influência posterior do orientalismo. Porque o aspecto messiânico e romântico
da interpretação de Marx sobre a história humana esteve com ele desde o começo,
e abrangia o Ocidente bem antes de ele tê-lo estendido para o Oriente.
Orientalismo e dependência
Gostaria de terminar essa seção da minha crítica chamando atenção para
uma visão bem curiosa e uma passagem enigmática perto do final do livro de
Said, logo depois da sua aguda crítica dos Programas de Estudo de Área
contemporâneos, que substituíram os departamentos e disciplinas tradicionais do
orientalismo nas universidades ocidentais, e particularmente nos Estados Unidos
da América. Said faz a seguinte observação e julgamento:
“O mundo árabe hoje é um satélite intelectual, político e cultural dos Estados Unidos. Isso, em si, não é algo a ser lamentado, a forma específica desse relacionamento de satélite, contudo, é sim.32"
Se estou compreendendo essa passagem corretamente, Said acha a
dependência intelectual, política e cultural do mundo árabe em relação aos
Estados Unidos bem aceitável; o que ele deplora é apenas a maneira pela qual
essa dependência se manifesta atualmente. Existem basicamente dois pontos de
vista pelos quais podemos ver essa posição. O primeiro emana de uma interpretação
“soft” e liberal sobre o significado e as implicações da dependência, enquanto
o segundo vem de uma compreensão “hard” e verdadeiramente radical sobre a
natureza e as consequências dessa relação.
De acordo com a interpretação “soft”, Said parece estar: a) simplesmente
tomando nota do fato bem conhecido da superioridade e supremacia dos Estados
Unidos sobre os seus satélites; e b) esperando que, através de uma maior
compreensão e apreciação por parte dos Estados Unidos sobre as realidades do
mundo árabe, os aspectos lamentáveis da relação de satélite possam ser
melhorados. Tal desenvolvimento melhoraria muito as chances de haver uma
maturidade política maior, independência cultural e originalidade intelectual
no mundo árabe. Em outras palavras, o objetivo não é que os árabes se livrem da
dependência, e sim que alterem e melhorem as suas circunstâncias, seus termos e
modus operandi, na direção de uma relação mais equilibrada e
verdadeiramente igual. Como resultado, Said culpa os Estados Unidos - e não o
satélite – pela condição insatisfatória e deplorável ligada à “forma específica
do relacionamento de satélite”. Mais precisamente, ele culpa os especialistas
americanos em Oriente Médio que aconselham os formuladores de políticas, porque
nem uns nem outros conseguiram se libertar do sistema de ficções ideológicas
criado pelo orientalismo. Ele até mesmo
alerta esses especialistas e os seus senhores que, a menos que eles olhem para o
mundo árabe de forma mais realista e tentem entendê-lo sem as abstrações e
construções fantasiosas do orientalismo, o investimento dos EUA no Oriente Médio
não terá fundamentos sólidos que o sustentem. Ele diz:
“O sistema de ficções ideológicas que eu chamei de orientalismo tem sérias implicações, não só porque não tem credibilidade intelectual. Como os Estados Unidos hoje são pesadamente comprometidos com o Oriente Médio, mais do que com qualquer outro lugar do mundo: os conselheiros sobre o Oriente Médio que aconselham os formuladores de políticas são imbuídos de orientalismo quase até os ossos. A maior parte desse comprometimento, bem a propósito, é edificada na areia, já que os especialistas dão instruções políticas se baseando em abstrações que vendem, como “elites políticas”, “modernização” e “estabilidade”, a maior parte das quais são simplesmente os velhos estereótipos orientalistas disfarçados de jargão político, e a maioria das quais tem sido completamente inadequada para descrever o que aconteceu recentemente no Líbano ou, antes, na resistência popular palestina a Israel33.”
No final, a posição de Said aqui pouco difere da sabedoria convencional
dos establishments liberais do
ocidente em geral, e dos Estados Unidos em particular.
A interpretação “dura” e radical sobre o significado e as consequências
da dependência foi desenvolvida e amplamente publicizada por estudiosos e
pensadores sociais como Paul Baran, Andre Gunder Frank, Pierre Jaleé, Claude
Julien, Samir Amin e Arghiri Emmanuel. De acordo com eles, a dependência é
estruturalmente incapaz de gerar qualquer tipo de laços que não os da exploração
intensificada, da pilhagem e da subjugação do satélite pelo centro.
De acordo com esse ponto de vista, os vagos pensamentos de Said sobre a
questão só podem criar mais ilusões sobre a natureza do relacionamento de satélite,
e gerar expectativas perigosamente falsas sobre as suas possíveis implicações e
aplicações. A essência da ilusão está no perigoso pressuposto de Said, de que
os aspectos e manifestações lamentáveis do relacionamento de satélite podem ser
reformadas satisfatoriamente e melhoradas em benefício tanto do mundo árabe como
do grande comprometimento americano no Oriente Médio, porque a visão radical
sobre a dependência defende que o relacionamento de satélite leva ao maior
desenvolvimento do já profundo subdesenvolvimento do satélite. Daí a sua
conclusão inevitável de que a salvação do mundo árabe será impossível sem que a
relação de dependência seja definitiva e claramente esmagada. Disso também
deriva a crítica inevitável a Said por terminar o seu livro numa nota
classicamente orientalista:
- Não considerando o relacionamento de satélite entre oriente (o Oriente Médio) e ocidente (EUA) lamentável em si;
- Dando bons conselhos aos formuladores de políticas americanos e os seus especialistas em Oriente Médio sobre como fortalecer as bases dos seus compromissos na região e sobre como melhorar as condições do “relacionamento específico de satélite”, se livrando das ficções e ilusões orientalistas desorientadoras; e
- Esquecendo que, se os especialistas americanos e os seus senhores seguirem os seus conselhos, o oriente terá no imperialismo americano um inimigo ainda mais formidável do que já tem.
Parte 2: Orientalismo invertido
Um dos maiores e mais interessantes sucessos do livro de Said, como já
mencionado, é o de desnudar a crença persistente do orientalismo de que existe
uma diferença ontológica radical entre as naturezas do oriente e do ocidente –
ou seja, entre as naturezas essenciais das sociedades, culturas e povos
orientais e ocidentais. Essa diferença ontológica cria imediatamente outra, epistemológica,
que defende que os instrumentos conceituais, categorias científicas, conceitos
sociológicos, descrições políticas e distinções ideológicas usados para
entender e lidar com as sociedades ocidentais são, por princípio, irrelevantes
e inaplicáveis às orientais. Esse pressuposto epistemológico é epitomizado pela
declaração de H.A.R. Gibb de que aplicar “a psicologia e a mecânica das
instituições políticas ocidentais em situações asiáticas ou árabes é puro Walt
Disney.34” Isso
também é aparente na crença declarada de Bernard Lewis de que “o recurso à
linguagem de esquerda e direita, progressista e conservador, e o resto da
terminologia ocidental... para explicar os fenômenos políticos muçulmanos é
quase tão preciso e esclarecedor como uma narração de um jogo de críquete feita
por um comentarista de beisebol.35 ” Em outras palavras, as
diferenças vastas e facilmente discerníveis entre as sociedades e culturas
islâmicas, por um lado, e as europeias, por outro, não são nem uma questão dos
processos complexos da evolução histórica da humanidade nem uma questão de
fatos empíricos a serem reconhecidos e assimilados. Elas são,
além disso tudo, uma questão de emanações de uma certa essência cultural,
psíquica ou racial (dependendo do caso) oriental (ou islâmica), portadora de
atributos fundamentais imutáveis e identificáveis. Essa doutrina ahistórica,
antihumana e até mesmo antihistórica eu chamo de orientalismo ontológico.
Obviamente, o orientalismo ontológico é completamente ideológico e metafísico
no sentido mais pejorativo dessas palavras. Além disso, Said não poupou nenhum
esforço em seu livro para expor esse fato.
O orientalismo ontológico é o fundamento da imagem criada pela Europa
moderna sobre o Oriente. Como Said mostrou, essa imagem faz revelações mais verdadeiras
e instrutivas sobre o estado de certos negócios europeus, principalmente sobre
os projetos expansionistas e desígnios imperiais, do que sobre o seu suposto
objeto. Mas, mesmo assim, essa imagem deixou a sua impressão profunda sobre a
consciência moderna e contemporânea do oriente sobre si mesmo. Daí o importante
alerta de Said aos sujeitos e vítimas do orientalismo sobre os perigos e tentações
de aplicar as estruturas, estilos e preconceitos ontológicos facilmente
disponíveis sobre si mesmos e sobre os outros.
Eu gostaria de argumentar que essas aplicações não só já aconteceram,
como continuam a acontecer em grande escala. Além do mais, cair na tentação
contra a qual Said alertou engendra o que pode ser chamado de orientalismo invertido.
Na parte que se segue, discutirei esse argumento nos termos de um
exemplo específico desse orientalismo invertido, a saber, o orientalismo ontológico invertido, como eu proponho
chamá-lo.
Para explicar, vou me referir a dois exemplos: o primeiro tirado do
fenômeno bem conhecido do nacionalismo árabe laico, o segundo do movimento
recente de revivescência islâmica.
Nacionalismo árabe e orientalismo invertido
Um destacado nome do pensamento e da política da Síria publicou, há
cerca de dois anos, uma série de artigos em que propôs estudar algumas palavras
“básicas” da língua árabe, como forma de chegar a um “conhecimento verdadeiro”
sobre algumas das características essenciais da “mentalidade árabe” primordial
subjacente a essas palavras36. Ao
notar que a palavra “homem” em árabe (insân), implica “companheirismo”, “sociabilidade”,
“amizade” e “familiaridade” (anisa, uns, anîs etc), ele concluiu
triunfantemente que a visão implícita da “mente árabe primordial” diz que o
homem tem uma tendência natural a viver com outros homens ou, como ele
explicou: “a mente árabe primordial possui inatamente a ideia filosófica de que
o homem é, por natureza, um ser social”. Então o nosso autor faz a seguinte comparação
reveladora:
“A filosofia de Hobbes é baseada no seu famoso dito: “o homem é o lobo
do homem” enquanto, ao contrário, a filosofia interior implícita na palavra insân
prega que “o homem é o irmão do homem.”
Eu argument que essa peça, por assim dizer, de análise e comparação
contém, numa forma altamente condensada, todo o aparato de abstrações
metafísicas e mistificações ideológicas tão características do orientalismo ontológico
e denunciadas de forma tão hábil e justa no livro de Said. O único elemento
novo é o fato de que a ontologia essencialista orientalista foi invertida a favor
de um povo específico do oriente.
Deveria ser evidente que um dos traços significativos do orientalismo
ontológico invertido é a típica obsessão orientalista com a linguagem, os
textos, a filologia e assuntos relacionados. Ele simplesmente imita os grandes
mestres orientalistas – uma imitação pobre – quando tenta revelar os segredos
da “mente”, “psique” ou “caráter” árabe primordial através das palavras. Em
outros termos, ele adotou obediente e acriticamente o que Said chama
pejorativamente de atitude “textual” 37 dos
orientalistas em relação à realidade. No exemplo acima da assim chamada análise
e comparação que eu citei, se pode ver facilmente o caráter panglossiano e
quixotesco da tentativa de capturar alguma coisas sobre um fenômeno histórico
tão complexo como a vida cultural, mental e psíquica dos árabes, no passado e
no presente, literalmente aplicando o que foi aprendido em livros orientalistas
e análises filológicas.
Esse orientalismo invertido peca duplamente, por tentar capturar a
essência da “mente” árabe aprendendo como analisar palavras e textos árabes com
as palavras e textos dos mestres orientalistas. Como uma obra de arte platônica,
a sua atitude textual se afasta duplamente da realidade original.
Assim, o orientalismo invertido nos apresenta variações do tema racista
de Renan, derivadas das suas análises filológicas e especulações linguísticas. Mas
o elemento novo é que a conclusão do orientalismo invertido é que estudos comparativos
filológicos e linguísticos provam a superioridade ontológica da mente oriental
(a “mente árabe”, no caso) sobre a ocidental. Porque, não mostramos que a ideia
sublime da “irmandade entre os homens” é inata e originária da “mente árabe
primordial”, e a ideia básica de Hobbes da “guerra de todos contra todos” é
inata e originária da “mente europeia primordial”?
De uma forma classicamente orientalista, a essência da “mente árabe” é
explorada por um pensador árabe somente através da linguagem, e em isolamento
hermético de intrusões desagradáveis de infraestruturas socioeconômicas,
política, mudança histórica, conflitos de classe, revoluções, e assim por
diante. Essa “mente”, “psique” ou “essência” árabe primordial supostamente
revela a sua potência, gênio, e características distintivas através do fluxo
dos acontecimentos históricos e acidentes do tempo, sem que nem a história nem
o tempo mexam na sua natureza intrínseca. Por outro lado, a série de
acontecimentos, circunstâncias e acidentes que formam a história como tal de um
povo como o árabe nunca pode ser verdadeiramente compreendida a partir desse
ponto de vista, sem a redução, através de uma série de mediações e passos, às
manifestações primárias da natureza imutável original da “mente, “psique” ou “essência”
árabe.
Citarei outro exemplo. Said aponta corretamente que:
“O valor exagerado dado ao árabe como língua permite ao orientalista tornar a língua o equivalente da mente, sociedade, história e natureza. Para o orientalista, a língua fala o oriental árabe, e não o contrário38”.
O orientalismo invertido segue isso – não só fielmente, como mais imprudente
e cruamente. Assim, outro autor sírio escreveu o seguinte sobre o status único
da língua árabe e as maravilhas que ela revela sobre a “primitividade” do árabe
e da sua língua:
“Depois de estudar as características vocais de cada letra da língua árabe, eu apliquei as duas conotações emocionais e sensoriais ao significado das palavras, começando com tais letras, ou às vezes terminando por elas, através de tabelas estatísticas baseadas nos dicionários da língua árabe. Depois de examinar cuidadosamente os maravilhosos resultados obtidos por esse estudo, me pareceu que a originalidade da língua árabe transcende os limites das potencialidades humanas. Então, eu pensei que não existe nenhuma explicação desse milagre de língua, a não ser em termos da categoria da primitividade do árabe e da sua língua39”.
A conclusão crucial dessa linha de raciocínio é a seguinte:
“Assim, as letras árabes aqui se transformaram, de contêineres vocais preenchidos como sensações e emoções humanas, na quintessência do árabe, da sua ‘asabiya, do seu espírito e até dos elementos constitutivos da sua nacionalidade40”.
De forma perfeitamente renaniana, essa noção de primitividade do árabe e
da sua língua define um tipo humano primário como os seus traços essencialistas
inimitáveis, dos quais formas mais específicas de comportamento fluem
necessariamente. Isso é bem explicita e grosseiramente – portanto candida e
honestamente – declarado por ainda outro ideólogo sírio da seguinte forma: “A
essência da nação árabe goza de certas características absolutas e essenciais,
que são: teísmo, espiritualismo, idealismo, humanismo e civilizacionismo41”.
Não é inesperado que se siga que essa essência absoluta da nação árabe
também seja a portadora implícita de uma missão civilizadora que afeta o mundo
inteiro. Dado o declínio do Ocidente no fim do século XX, se supõe que o
Oriente vá ascender sob a direção da nação árabe e sob a bandeira da sua mission
civilisatrice para guiar a humanidade para longe do estado de decadência a
que a sua direção ocidental a levou. Porque a “essência ocidental” produziu
tantos signos inconfundíveis de decadência como: “mecanicismo, darwinismo,
freudismo, marxismo, malthusianismo, secularismo, realismo, positivismo, existencialismo,
fenomenologia, pragmatismo, maquiavelismo, liberalismo e imperialismo”, que
são, todos, doutrinas mundanas que manifestam “uma essência puramente
materialista42”.
Em contraste, o “universo humano” (ou seja, o homem, a humanidade, a
vida, a civilização) está esperando, hoje, o seu encontro marcado com “a nação
que porta essa missão, escolhida para tirá-lo do seu impasse. Além disso, “Não
importa o quanto possa ser trágica a condição nação árabe possa ser no momento,
não há sombra de dúvida de que só ela é a nação prometida e esperada, porque só
ela adquiriu perfeitamente, há eras, todos os constituintes, características e
traços de uma nação. Assim, ela conseguiu, de uma forma unicamente profunda,
todos os vários traços humanos ideais, excelências e virtudes, que a tornam
capaz e merecedora de realizar a alta missão para a qual foi escolhida... 43”.
Agora, vou para o segundo exemplo do que foi definido como orientalismo
ontológico invertido.
Beirute, Outono de 1980
Revivescência islâmica e orientalismo
invertido
Sob o impacto do processo revolucionário iraniano, uma linha de
pensamento revisionista árabe surgiu. Os seus protagonistas principais vêm, na
maioria, da esquerda: antigos radicais, ex-comunistas, marxistas heterodoxos e
nacionalistas desiludidos de um tipo ou de outro. Essa linha política nebulosa
encontrou uma resposta entusiástica da parte de alguns reconhecidos
intelectuais e escritores árabes, como o poeta Adônis, o pensador progressista Anwar
‘Abd al Malek e o jovem e talentoso crítico libanês Ilias Khoury. Também
acrescentaria que os seus partidários se mostraram muito prolíficos, usando
vários fóruns no Líbano e na Europa Ocidental para tornar os seus pontos de
vista, análises e ideias conhecidos do público leitor. A sua tese central pode
ser resumida assim: A salvação nacional buscada tão ansiosamente pelos árabes
desde a ocupação napoleônica do Egito não será encontrada nem no nacionalismo
secular (seja radical, conservador ou liberal), nem no comunismo
revolucionário, no socialismo ou o que seja, e sim em um retorno à
autenticidade do que eles chamam de “Islã político popular”. Por motivo de
distinção, vou me referir a essa nova abordagem como a tendência islamânica.
Não desejo contestar a tese dos islamânicos acima nessa apresentação. Em
vez disso, gostaria de apontar que as análises, crenças e ideias produzidas
pela tendência islamânica em defesa da sua tese central simplesmente reproduzem
todo o aparato desacreditado da doutrina orientalista clássica sobre a
diferença entre o oriente e o ocidente, o Islã e a Europa. Essa reiteração
acontece tanto no nível ontológico como no epistemológico, só que invertida a
favor do Islã e do oriente em seus juízos de valor implícitos e explícitos.
Um traço importante da literatura política produzida pela tendência
islamânica é a sua insistência em substituir a oposição familiar entre
libertação nacional e dominação imperialista pela oposição mais reacionária de
Oriente contra Ocidente44 . No ocidente, os processos históricos podem se mover
por interesses econômicos, lutas de classes e forças sociopolíticas. Mas, no
oriente, o “primeiro motor” da história é o Islã, de acordo com uma declaração
recente de Adônis45.
Adônis se explica, admitindo abertamente que, ao estudar a sociedade
árabe e as suas lutas internas:
“Eu atribuí o primado ao fator ideológicorreligioso porque, na sociedade
árabe, que é completamente baseada na religião, os modos e meios de produção
não se desenvolveram de maneira a levar à ascensão da consciência de classe. O
fator religioso continua a ser o seu primeiro motor. Consequentemente, o seu
movimento não pode ser explicado através de categorias como classe, consciência
de classe, economia, muito menos economicismo. Isso significa que a luta na
sociedade árabe tem sido principalmente de natureza ideologicorreligiosa46.”
A conclusão demolidora de Adônis, então, naturalmente é “esquecer a luta
de classes, o petróleo e a economia47, a fim de chegar a uma compreensão correta
da dinâmica social oriental (muçulmana, árabe, iraniana).
Em outras palavras: as ideias, crenças, sistemas filosóficos e
superestruturas ideológicas são suficientes para explicar as “leis de
movimento” das sociedades e culturas orientais. Assim um islamânico entusiasmado
anunciou que “a Revolução Iraniana nos revela com a maior ênfase possível...
que as leis da evolução, da luta e da unidade dos nossos países e do oriente
são outras, diferentes das da Europa e do ocidente48.” Um terceiro islamânico nos assegura que
“tudo isso permite a Khomeini traduzir as suas ideias islâmicas simples em um
terremoto sociopolítico que os sistemas teórico/filosóficos mais perfeitos e
sofisticados não conseguiram detonar49.” Assim, o ultimo conselho dos islamânicos
para a esquerda árabe é rearrumar as suas prioridades de forma a colocá-las no
topo: “dar importância suprema aos fatores culturais e ideológicos que movem as
massas e reformular as verdades científicas, econômicas e sociais sobre esta
base50.”
De acordo com um orientalista como H.A.R. Gibb (e outros), essa
totalidade islâmica estável, única, idêntica a si mesma, regula o trabalho de
todos os fenômenos humanos, culturais, sociais e econômicos subsumidos a ela,
em seus detalhes. Além disso, a sua coerência, placidez e força interior são
colocadas em perigo, primariamente, por intrusões estrangeiras como as lutas de
classes, interesses econômicos, movimentos nacionalistas seculares, ideias
democráticas, intelectuais “ocidentalizados”, partidos comunistas etc. Então, não surpreende vermos
Adônis fazendo duas coisas:
Primeiro, se opondo ao “nacionalismo, secularismo, socialismo, marxismo
comunismo e capitalismo51 à la Gibb et al., porque a
fonte dessas ideias é ocidental, e por causa das suas influências corrosivas
sobre as estruturas internas do Islã que o mantém oriental52.
Em segundo lugar, interpretando a Revolução Iraniana em termos de uma
simples forma enfática: “O Islã é simplesmente o Islã”, “independente e apesar
da política, da luta de classes, do petróleo e da economia”. Aqui, Adônis está
apresentando como se fosse a sabedoria suprema a tautologia estéril do
orientalismo ontológico, tão bem apresentada na crítica de Said: “O Oriente é o
Oriente”; “O Islã é o Islã”; e, seguindo os passos de orientalistas ontológicos
como Renan, Macdonald, Von Grunebaum e Bernard Lewis, Adônis e os outros
islamânicos imaginam que podem compreender a sua essência, isolando-a da
economia, da sociologia, do petróleo e da política dos povos islâmicos. Como
resultado, eles estão ansiosos em assegurar o status ontológico orientalista do Islã não só como “primeiro motor”
da história islâmica, mas também como o alfa e o ômega do “oriente islâmico”. No
mundo islâmico nada conta realmente, a não ser o Islã.
É digno de nota que a metáfora preferida dos islamânicos é derivada do
ciclo dos oceanos, basicamente fixo, sem progressos, sem inovações. Eles dizem
que o Islã está novamente em mare alta, depois da maré baixa das gerações (e até
séculos) passadas. Eu assinalo que essa visão islamânica do Islã não é, em
essência, e à luz das suas consequências lógicas, diferente da pregação
metafísica do orientalismo ontológico. Em outras palavras, o Islã é mostrado a
nós da mesma forma que H.A.R. Gibb o via, uma totalidade monolítica única
oriental, inerradicavelmente distinta, em sua natureza essencial, da Europa, do
ocidente e do resto da humanidade.
Assim, de uma forma classicamente orientalista (apesar de invertida),
Adônis reafirma condescendentemente que a característica peculiar à essência
ocidental é o “tecnologismo, e não a originalidade”. Ele até começa a enumerar
os maiores traços que distinguem o pensamento ocidental, a partir daquela
característica inerente. De acordo com ele, são: sistema, ordem, método e
simetria. Por outro lado, “a peculiaridade do oriente” para ele “está em sua
originalidade”, e é por isso que a sua natureza não pode ser capturada, a não
ser através “do profético, do visionário, do mágico, do milagroso, do infinito,
do interior, do além, do fantástico, do extático” etc53.
De acordo com isso, não surpreende que as lutas e sacrifícios
revolucionários do povo iraniano consistem, aos olhos dos islamânicos, em nada
mais que ou “um retorno ao Islã” (a metáfora da maré alta), ou a uma
manifestação da oposição islâmica inata aos povos e influências não-islâmicos
(a contradição Leste-Oeste), como Bernard Lewis queria que acreditássemos54. Da mesma forma, os islamânicos pareceriam
estar de pleno acordo com a conclusão de Morroe Berger, de que “para o Islã
moderno, nem o capitalismo nem o socialismo são rubricas adequadas55. Mas por quê? A razão, conforme apontada por
Said, é que, de acordo com os orientalistas ontológicos (tanto na sua forma
invertida como na versão original), não faz nenhum sentido, na verdade, falar
em Islã clássico, medieval ou moderno, porque o Islã sempre é o Islã. O Islã
pode ir embora, retornar, estar na maré baixa ou alta, mas não muito mais do
que isso. E, já que o assim chamado “Islã moderno”, de acordo com o
orientalismo ontológico invertido, não é mais do que a versão reafirmada do
velho Islã, Adônis não vê problemas em aconselhar a revolução iraniana sobre os
seus problemas presentes e futuros no seguinte jargão arcaico e teológico:
“É autoevidente que a política da profecia estabeleceu as bases de uma
nova vida e de uma nova ordem. Também é autoevidente que a política do imamato
ou wilâya é a guia correta da política da profecia, ou melhor, é a mesma
política da profecia , por inspiração e sem identificação total. Porque todo
imamato ou wilâya pertence a uma era particular, e cada era tem os seus
problemas particulares. Assim, a importância da política do imamato, e até a
sua legitimidade, estão na extensão em que ela é capaz de ijtihâd para
compreender a mudanças de modos e as novas realidades que surgem, sob a guia
correta da política da profecia56.”
Da mesma forma, não é esse tipo de lógica conservadora orientalista que
está pressuposta no debate iraniano recente sobre se a “república islâmica”
pode ser descrita como democrática? A linha oficial islâmica, que prevaleceu,
argumentou que “Islã” não pode aceitar nenhum qualificativo adicional, já que não
pode ser nada mais que o Islã. Em outras palavras, assim como não faz sentido
falar em Islã clássico, medieval ou moderno – considerando que o Islã é sempre
o Islã – também não faz sentido falar sobre uma república islâmica ser
democrática, considerando que a república islâmica sempre é islâmica e não pode
ser mais nada além disso. Daí, a declaração de Khomeini em uma de sua muitas
entrevistas sobre a república islâmica: “O termo Islã não precisa de adjetivo,
como democrático, que seja atribuído a ela.. O termo Islã é perfeito, e ter que
colocar outra palavra do lado dele é, na verdade, uma fonte de tristeza57.”
O orientalismo ontológico invertido não é, no final, menos reacionário,
mistificador ahistórico e antihumano que o próprio orientalismo ontológico.
- Orientalism, Pantheon Books, New York, 1978. ↩
- Said recapitula os sucessos do orientalismo acadêmico na p96. ↩
- Orientalism, p42. ↩
- Ibid, p50. ↩
- Ibid, pp 56, 62, 68. ↩
- Ibid, p12. ↩
- Ibid. ↩
- Ibid, p96. ↩
- Ibid. ↩
- Ibid, p202–203. ↩
- Ibid, p210. ↩
- Ibid, p91. ↩
- Ibid, p221. ↩
- Ibid, p67. ↩
- Ibid, p60. ↩
- Ibid, p67. ↩
- Ibid, p272. ↩
- Ibid, p60. ↩
- Em outras palavras, uma ordem natural governada por leis invariáveis. ↩
- Ibid, pp276–279. (grifo de Edward Said.) ↩
- Ibid, pp265–270. ↩
- Ibid, p150. ↩
- Ibid, p267. ↩
- Ibid, p270. ↩
- Ibid, p269. ↩
- Ibid, p271. ↩
- Ibid, p210. ↩
- Ibid, p271. ↩
- Ibid, pp153–156. ↩
- Ibid, p155. ↩
- Capital, vol III, Capítulo 36. ↩
- Orientalism, p322. ↩
- Ibid, p321. ↩
- Ibid, p107. ↩
- Ibid, p318. ↩
- Georges Saddikni, ‘Man, Reason and Synonyms‘, al-Ma’rifa, Damascus, Outubro de 1978, pp7–17. Mr Saddikni foi até há pouco tempo membro do Comando Nacional (Panárabe) do Baath, e líder do seu Birô de Assuntos Culturais. Ele foi o Ministro da Informação da Síria por muitos anos. ↩
- Orientalism, p92. ↩
- Ibid, p321. ↩
- Hasan Abbas, ‘The Arabic Letters and the Six Senses‘, al-Ma’rifa, Outubro de 1978, pp140–141. ↩
- Ibid, p143. ↩
- Isma’il ‘Arafi, Qital al-‘Arab al-Qawmi, publicado pelo Ministério da Cultura e Orientação Nacional, Damasco, 1977, p70. ↩
- Ibid, p145. ↩
- Ibid, pp147–148. ↩
- Anwar ‘Abd al-Malek enfatizou novamente, há pouco tempo a sua convicção de que o traço principal do nosso tempo é o continuo “confronto civilizacional entre o Oriente e o Ocidente” (Arab Studies Quarterly, vol I, no.3, Verão de 1979, p180). ↩
- ‘Islam and Political Islam’, An-Nahar Arabe et Internationale, Paris,22 de janeiro de 1979, p64. Republicado in Mawâqif, Beirute, no. 34, Inverno de 1979, pp149–160. ↩
- Mawâqif, No. 34, p155. ↩
- Ibid, p152. ↩
- WaIid Nuwayhed, al-Safir, jornal diário, Beirute, 19 de dezembro de 1979, Editorial. ↩
- Suhail Kash, al-Safir, 3 de janeiro de 1979. ↩
- Sa’d Mehio, al-Safir, 20 de janeiro de 1979. ↩
- Mawâqif, no. 34, pp47–48. ↩
- Orientalism, p263. ↩
- Mawâqif, no. 36, Inverno de 1980, pp150–153. ↩
- Orientalism, p107. ↩
- Ibid, p108. ↩
- An-Nahar Arabe et Internationale, Paris, 26 de fevereiro de 1979, p24. Ver também Mawâqif, 34, p 158. ↩
- Al-Safir, 10 de outubro de 1979. ↩
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