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Mostrando postagens de 2012

Provai todo espírito

Carla tinha conseguido terminar de se arrumar. No meio do calor de janeiro, ela teve que cobrir o seu corpo rechoncudo todo com aquelas roupas de grife, quando a maior vontade dela era andar de short e camiseta. Mas não podia dar mole, o que ela ia fazer era perigoso demais pra ela piorar tudo criando outros problemas com a polícia. Então, depois de uma bem planejada desculpa esfarrapada, em coautoria com a Bruna, a garota foi pegar o ônibus velho e lotado que ia para a praia. Não exatamente para a praia, porque o que aquele monte de gente ia ver era mais uma Concentração de Fé e Milagres. Ela tinha acabado de perceber que tinha esquecido a Bíblia, mas teve a sorte de passar por uma das banquinhas em que a prefeitura distribuía de graça. Sem a bíblia e a roupa vermelha e azul, na frente do Marriot, seria impossível encontrar o Ahmed e pegar o livro que ela ia buscar. Só encontrar o Ahmed já foi uma miniaventura. Não que as proibições fossem tão rígidas assim, afinal das contas

Guerra nas Estrelas (Slavoj Zizek)

O Luther Blisset, leitor do blog, mandou esse artigo do Zizek sobre Guerra nas Estrelas, já que ele gosta da série (que eu acho muito ruim, além de ser de fantasia muito maldisfarçada de ficção científica), enão concorda comigo. O artigo é muito bom, deem uma lida: Eis o interesse   ideológico da saga de Guerra nas Estrelas – mais exatamente, de seu momento central: a inversão do ”bom”   Ken Anakin no “mau” Darth Vader. Aqui, Guerra nas Estrelas aproveita o paralelo explícito entre os níveis individual e político. No nível individual, a “explicação” refere-se a um clichê budista pop: Ele se transforma em Darth Vader porque começa a se apegar às coisas. Não consegue se separar da mãe; não consegue se separar da namorada. Não consegue se separar das coisas. Isso o torna ganancioso. E quem se torna ganancioso envereda pelo caminho do lado negro, porque teme perder suas coisas. (George Lucas, citado em “Dark Victory”, Time, 22/4/2002). A Ordem Jedi, portanto, é apresentad

A decadência da ficção científica (parte 2)

VII. Alguém pode argumentar: ah, mas isso de imaginação regressiva só vale pra ficção espacial, você não foi pras áreas mais "técnicas" da FC. Nada disso! Apesar desse tema de viagem no tempo ser chato pra caramba (porque tudo se resume à uma disputa física e filosófica sobre o que é a linha de tempo, ou seja, se ela pode se alternar ou se tentar alterar o passado cria um universo paralelo), vamos lembrar que nenhum livro interessante pode ser escrito em cima dos aspectos puramente técnicos. Um livro que é considerado o primeiro da FC por muitos, A Máquina do Tempo , de H. G. Wells, por exemplo, consegue usar o tema da viagem no tempo para falar das contradições sociais no capitalismo (o Wells era socialista, ou mais especificamente, socialdemocrata, e tem uma entrevista famosa dele com o Stálin). A civilização do futuro é dividida entre os Morlocks, que vivem em máquinas nos subterrâneos, e são os descendentes dos operários, e os Elois, incapazes de traba

Fatwas

I. 1634 HJ Pergunta: Como devemos jejuar no Ramadã se estivermos em viagem espacial? Resposta: Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso "Disse o Profeta Muhammad (saws) 'Não é um ato de virtude jejuar em viagem'" [Al-Bukhari e Muslim]. Pergunta: Como saber a qibla depois da Nuvem de Oort? Resposta: Em Nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso Por questão de praticidade, deve-se procurar a direção do Sol. "Deus deseja facilitar, e não dificultar" (2:185). Pergunta: A alimentação intravenosa semanal para os colonos transsolares deve ser suspensa durante o Ramadã? Resposta: Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso Para o Islã, somente é haram a modificação genética para permitir a fotossíntese em seres humanos, porque é uma mudança na natureza humana, que foi criada e evoluída nas mãos de Deus, Senhor do Universo. Mas nem toda bid'ah em ciência é bid'ah em religião. Seria suicida suspender a alimentação seman

Algumas frases de Bayazid Al-Bastami

Gente, estou postando essas frases porque a única coisa que eu vi em português sobre Al-Bastami foi um site esotérico e uma citação minha aqui do blog! O sufismo é a corrente mística e panteísta do Islã, surgida na luta contra o legalismo e a contaminação com o poder na época do califado, e busca a lembrança (dhikr) da presença de Deus no mundo. Bayzaid Al-Bastami (804-87?) foi um dos primeiros a falar do estado de fana (aniquilação), em que a personalidade do místico se dissolve em Deus. Por causa disso, ele (e depois Mansur Al-Hallaj, que foi crucificado por isso) ficou conhecido por várias das suas frases que expressavam a unidade com Deus, que parecem blasfêmias para os que não entendem o seu significado. A "loucura" dessas frases foi o que motivou o apelido por que ele é conhecido até hoje, "O sufi bêbado": "A Tua obediência a mim é mais que a minha obediência a Ti" "Eu vi a Caaba dando voltas em torno de mim" "Moisés desejou

A decadência da ficção científica (parte 1)

O futuro não é mais o que era antigamente Renato Russo Onde se tenta provar que a ficção científica acabou porque o futuro acabou I. Não acredito que algum fã de ficção científica em sã consciência ache que o gênero não está em crise há quase trinta anos. Os clássicos foram morrendo, e ninguém veio depois deles. A FC hoje se resume a comentários, pastiches e paródias dos clássicos, ou se degradou em literatura infantojuvenil. Ela ainda sobrevive em alguns roteiros de cinema ( Matrix ou Distrito 9 , só pra falar de dois), mas a literatura está estagnada e sendo lentamente sugada pela fantasia. Eu acredito que exista um contexto maior determinando isso, que é o fim da literatura, desde a década de 1970. O que o estilo pós-modernista expressa é justamente o esgotamento do conteúdo especificamente literário, que determinaria as novas formas. Em vez disso, o pós-modernismo é um milk shake de formas antigas, quando não é uma "radicalização" experimental que fica bem aq
Década de Zero O meu nome é Paulo. Estou falando isso não porque eu exista (eu não existo), mas porque, já que eu sou um personagem, as pessoas cobram esse tipo de coisa. Todo mundo lê as coisas que podem dar a noção de experiências a que não teriam acesso sem a literatura. Então, o que eu quero fazer aqui é falar um pouco das minhas experiências (minhas, no caso as do autor), porque todo mundo pode dar pitaco. Voltando ao assunto, o que eu queria era mostrar o emparedamento de uma época. A nossa geração teve pouco tempo. Começou pelo fim, mas foi bela a nossa procura, mesmo com tanta ilusão perdida. O que é interessante é que, na década de 1970, os punks diziam: No future. Bem, o futuro estava uns vinte ou trinta anos na frente deles - hoje. Esse é o No future. Década de zero. Primeiro eu vou falar de uma cidade feia no subúrbio onde começa a história, pra não desperdiçar o rascunho que ele fez (o autor). Mas é o seguinte, vamos falar de um cara que vivia num mundo de 5

Black Sabbath, banda formada por operários antiimperialistas!

Quando hoje a gente vê a decadência do metal e, pior ainda, a maioria do público do estilo, formado por jovens facistoides de classe média, a gente acaba esquecendo que poderia ter sido diferente - e que, realmente, as coisas eram diferentes no começo. Por isso essa postagem sobre o Black Sabbath. A cultura e a posição de classe do heavy metal setentista Antes de tudo, temos que entender o contexto em que surgiu o heavy metal. O rock tem a sua origem no blues, como todo mundo sabe. Então, era música negra de resistência (e defendia a liberdade sexual da juventude, assim como a melhor parte do funk putaria de hoje), até ser absorvido pelo mercado e embranquecido na época da "invasão inglesa" (1962). Os Beatles, que eram a principal banda da invasão inglesa, se redimiram assumindo o seu papel na segunda radicalização do rock'n'roll (1966-1967). Nesse momento, a radicalização do rock refletia a radicalização mais geral da sociedade, tanto nos países imperialist