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Andrea Dworkin sobre o linchamento de negros no Sul dos EUA


Num momento em que estão em evidência as denúncias de mulheres sobre estupros e abuso sexual, e em que grupos racistas lincham negros, algumas vezes com acusações verdadeiras ou falsas de estupros, nada como traduzir esta análise da Andrea Dworkin sobre o linchamento de negros no Sul dos EUA, feita a partir do feminismo radical, mostrando a ligação entre racismo e masculinidade. O trecho é do livraço Right-Wing Women, páginas 123-125.


Nos Estados Unidos, o homem negro foi caracterizado como estuprador depois do fim da escravidão. Durante a escravidão, a sua condição como propriedade parecia emasculá-lo inteiramente. A sua degradação era como a de um homem simbolicamente castrado, uma mula, um burro de carga (seu uso como reprodutor para engravidar mulheres escravizadas com o fim de aumentar a riqueza do senhor de engenho branco não contradiz isso) Vis-à-vis o homem branco, ele era emasculado; e vis-à-vis a mulher branca ele era emasculado.*

No começo da Reconstrução, em maio de 1866, um Frederick Douglass muito otimista escreveu que , embora ele temesse às vezes a matança genocida dos negros pelos brancos, o movimento dos ex-escravos "rumo a empreendimentos industriais e à aquisição de riqueza e educação" levaria finalmente à aceitação pelos brancos. Ele reconheceu que mesmo no sucesso havia perigo,

porque os brancos não tolerariam a presença, entre eles, de uma raça mais próspera. O negro como criatura pobre e ignorante não contradiz o orgulho racial branco. Ele é mais a fonte de divertimento para esta raça do que de ressentimento. A resistência mórbida aumenta à medida em que ele se aproxima do plano ocupado pela raça branca, e mesmo assim eu penso que essa resistência vai ceder gradualmente à pressão da riqueza, educação e bom caráter.

Por volta de 1894, vários homens negros tinham sido assassinados, linchados, espancados, violência de turbas contra negros eram desenfreadas e lugar-comum. Não vem uma brisa desses estados rebeldes" escreveu Douglass em "Por que o Negro é linchado?", publicado em 1894, “que não esteja tingida de sangue de negro". Os brancos sulistas, privados dos seus escravos emasculados, encontraram uma justificativa para o ódio racista: os homens negros - como parte da sua natureza racial - estupravam mulheres brancas. "É uma acusação de origem recente, corretamente Douglass escreveu, “uma acusação que nunca foi trazida antes; que nunca foi ouvida no tempo da escravidão ou em qualquer época da nossa história". O fim da escravidão emasculou os senhores brancos. Os ex-escravos os lembravam a cada momento da masculinidade perdida, do poder perdido. Ele se foi, alguém o tinha levado; eles tinham sido humilhados pela derrota na guerra e pela perda dos seus escravos (os que não tinham tido escravos se sentiam humilhados com a perda mesmo assim). Os brancos criaram o negro estuprador para refletir o que os brancos de fato tinham perdido: o direito a estuprar as mulheres sistematicamente, de qualquer cor. Os brancos criaram o estuprador negro para justificar a perseguição e o assassinato de negros - e a castração literal de indivíduos tomada como a castração simbólica do grupo que estava abaixo deles durante a escravidão, o fundamento do seu senso de poder masculino, a base material do seu poder masculino. O estupro era visto tradicionalmente como um crime de roubo: uma mulher roubada do homem a quem ela tradicionalmente pertencia como esposa ou filha. O negro estuprador era acusado de um crime de roubo, só que o que ele roubava não era uma mulher branca; ele roubava a masculinidade do senhor. O crime não tinha nada a ver com mulheres - quase nunca tem. Os homens brancos, emasculados, estavam acusando o negro de tê-los estuprado; a mulher branca era usada como uma testa-de-ferro, um tampão, uma transmissora sexual simbólica, transmissora do sexo de homem a homem - ela quase sempre é isso.


* O estupro, engravidamento e chicoteamento das escravas negras, mulheres e meninas, afirmava o seu gênero: a sua escravidão era uma intensificação de como os homens usam as mulheres, e não uma contradição de como as mulheres deveriam ser em termos de sexo. A escravidão emasculava o homem, ela sexuava a mulher, a tornava ainda mais absolutamente disponível para o sexo e o sadismo. A dominação sexual branca masculina sobre ela, uso irrestrito dela, tornaram a masculinidade branca do Sul suprema e irrefutável.

Comentários

mmjunior75 disse…
Embora não surpreenda, é bastante interessante a abordagem sobre a construção da imagem do negro estuprador. É relevante ainda porque embora o estupro das negras pelos senhores brancos no Brasil seja um fato histórico e uma pratica comum tolerada e minimizada, perpetuando-se e se estendendo aos empregados e agregados na casa grande, é ainda pouco discutida na sociedade. No mais, completa a tragédia a ignorância e omissão em relação aos intelectuais e lideranças negras abolicionistas do norte - como Frederick Douglass - e daqui - como Luis Gama - na sociedade.