Skeptic, Vol. 2, No. 4, 1994, pp 98-103
Traduzido daqui
Desde sua publicação em 1954, Stolen Legacy, de George G. M. James, tem sido um best-seller entre povos de ascendência africana neste país. James foi um professor afro-americano de grego, cujos outros escritos tratam explicitamente de questões raciais. Stolen Legacy também trata do status dos negros, mas na história antiga, e não nos tempos modernos. A mensagem do livro é sensacionalista e revolucionária: "Os gregos não foram os autores da filosofia grega, e sim o povo negro do norte da África, os egípcios" (p. 158). Esta tese explica "a opinião mundial equivocada de que o continente africano não contribuiu para a civilização, e que seu povo é naturalmente atrasado", "a deturpação que se tornou a base do preconceito racial, que afetou todas as pessoas negras." Em vez disso, James oferece uma "Nova Filosofia da Redenção para os povos negros."
O relato de James sobre a história antiga redireciona para o povo negro da África o elogio tradicionalmente feito em todas as instituições educacionais ocidentais aos gregos: "O termo filosofia grega, para começar, é um equívoco, pois não existe tal filosofia" (p. 1). A política educacional tradicional, argumenta James, "levou ao falso culto de Sócrates, Platão e Aristóteles, como deuses intelectuais em todas as principais universidades do mundo..." (p. 159). James incentiva os negros a pararem de citar os filósofos gregos "porque sabemos que sua filosofia foi roubada" dos povos negros do Egito, e exige que eles renunciem a fraternidades, irmandades e, presumivelmente, a quaisquer outras instituições que honrem a Grécia antiga (pp. 160-1). Os gregos, insiste James, "não possuíam a habilidade nativa essencial para o desenvolvimento da filosofia" (p. 164). O que é chamado de "grego" é, na verdade, filosofia egípcia, plagiada de fontes egípcias por gregos que estudaram no Egito com sacerdotes egípcios e que aprenderam com eles a filosofia e a ciência do sistema de mistérios egípcio.
Qualquer pessoa que tenha estudado a história antiga do Mediterrâneo perceberá imediatamente que essas afirmações são falsas, tanto no geral quanto em particular. Qualquer pessoa que tenha estudado as obras de Platão e Aristóteles, mesmo traduzidas, se perguntará por que seus instrutores nunca mencionaram o contexto egípcio das obras filosóficas que estudavam. Qualquer pessoa familiarizada com a história da filosofia antiga saberá que o sistema de mistérios "egípcio" que James descreve em seu livro é, na verdade, baseado em uma reconstrução francesa do século XVIII da filosofia neoplatônica, que contém alguns elementos egípcios, mas é fundamentalmente grega.
Para quem não está familiarizado com a história egípcia ou grega, no entanto, ou com as obras dos filósofos gregos, o argumento de James parece coerente e plausível, pois parece ser apresentado de forma informada e acadêmica, com abundantes referências a fontes antigas e estudos históricos modernos. Claro que a principal razão para o sucesso do livro é que a maioria das pessoas que o lê quer acreditar na tese, de que um povo africano fez as descobertas originais que levaram ao desenvolvimento do que sempre foi conhecido como pensamento ocidental.
Outro motivo para o sucesso do livro é o apelo de sua teoria da conspiração, que coloca as pessoas contra as quais conspiraram no papel de vítimas inocentes. "Se não fosse por esse drama da filosofia grega e seus atores, o continente africano teria uma reputação diferente e teria gozado de um status de respeito entre as nações do mundo" (p. 5). Se fosse possível demonstrar que os antigos gregos roubaram ou copiaram sem o devido reconhecimento as ideias e documentos egípcios, eles não só deixariam de ser elogiados por suas conquistas, como o crédito por suas grandes descobertas poderia ser dado ao povo do Egito, um país africano, e a noção de que os povos africanos antigos não produziram nenhum corpo significativo de conhecimento científico e humanista poderia ser finalmente e decisivamente desacreditada.
Os métodos que James usa para estabelecer essa tese equivocada e enganosa merecem um estudo cuidadoso, pois foram e continuam sendo influentes. Maulana Karenga, presidente do Departamento de Estudos Negros da California State University, Long Beach, e autor de Introduction to Black Studies, elogia o trabalho de James como "seminal em sua concepção e apresentação em estágio inicial do projeto africano de resgatar e reconstruir o legado egípcio" (pp. 223-224). Assim, uma análise do trabalho de James serve como uma ferramenta útil para entender os métodos errôneos encontrados em muitas obras de afrocentrismo extremo.
Para apresentar seu argumento de forma o mais convincente possível, James não segue a ordem cronológica, como é a prática nas histórias convencionais da filosofia. Em vez disso, ele se baseia, antes de tudo, no método retórico testado e comprovado de começar com a ilustração mais simples e dramática. Ele oferece isso primeiro em um breve resumo: os gregos começaram a estudar no Egito quando aquele país foi ocupado pelos persas, mas a principal transferência de informações ocorreu após a invasão do Egito por Alexandre, o Grande, quando Aristóteles conseguiu pegar livros de filosofia e ciência egípcias da biblioteca de Alexandria e transformá-la em um centro de pesquisa grego.
A história do roubo de Aristóteles é contada novamente mais adiante no livro. Aqui vemos como James recorre à repetição insistente, outra técnica retórica testada e comprovada destinada a provar um ponto. Como o Pregoeiro disse no poema A caça ao Snark, de Lewis Carroll: "o que eu te digo três vezes é verdade." James insiste que os gregos não tinham interesse em filosofia ou ciência; eles eram um povo ambicioso e invejoso que perseguia seus filósofos. Eles eram beligerantes, mas incapazes de vencer uma grande potência como a Pérsia. O uso seletivo da repetição também fornece um meio útil – ainda que fraudulento – de documentação histórica, já que o mesmo fato pode ser usado para apoiar duas alegações diferentes e mutuamente exclusivas. James utiliza um resumo de uma descrição do século II d.C. de uma procissão de iniciação contemporânea, por exemplo, como evidência tanto para a educação de todos os sacerdotes egípcios em geral quanto para o currículo de ciências no que ele chama de Ordens Sagradas superiores. Finalmente, para reforçar sua mensagem, James reafirma seus principais argumentos mais uma vez em um apêndice.
Mas é o método de documentação de James que mostra por que Stolen Legacy deve ser considerado uma fraude deliberada e não simplesmente uma criação equivocada de um entusiasta inocente ou ignorante como Pregoeiro de Lewis Carroll.
(1) Na maioria dos casos, as citações de James apoiam apenas os aspectos incontestáveis de seu argumento. Nunca fica claro onde exatamente as obras que ele cita se aplicam à sua discussão, pois ele não usa notas de rodapé, mas apenas lista as fontes consultadas ao final de uma seção de seu argumento. No início de seu trabalho, ele menciona três livros de estudiosos europeus estabelecidos que "achei úteis em meu trabalho atual" (p. 6). Mas ele também não aponta que nenhum desses livros apoia sua tese central.
(2) A cronologia é desconsiderada sempre que conveniente, e inconsistências e outros pontos de vista (especialmente se tradicionais ou bem estabelecidos) são simplesmente ignorados. Por exemplo, em seu capítulo inicial, James nunca menciona que (a) a cidade de Alexandria (como o nome sugere) foi fundada somente após Alexandre conquistar o Egito, e mesmo assim permaneceu uma cidade grega, nunca totalmente integrada ao restante do país (b) a biblioteca de Alexandria foi construída apenas após a morte de Aristóteles em 322 a.C., de modo que ele não poderia tê-la saqueado, mesmo que estivesse no Egito.
(3) Ele nunca discute a confiabilidade relativa das fontes antigas, que podem ser tão tendenciosas e enviesadas quanto quaisquer fontes modernas. Ele dá o mesmo peso a materiais de origem tardia e derivada quanto aos anteriores e originais.
(4) O silêncio sobre um fato é usado como argumento para sua existência. Por exemplo, como relatos antigos da vida de Aristóteles não dizem nada sobre sua visita ao Egito, James supõe que Aristóteles e seus contemporâneos deliberadamente tentaram suprimir todo conhecimento de sua visita, para que ninguém soubesse que o Egito era a verdadeira fonte de sua chamada filosofia original. "Esse silêncio da história lança dúvidas sobre a vida e as conquistas de Aristóteles" (p. 2).
(5) Uma vez que uma hipótese é apresentada, ela logo é tratada como fato virtual, de modo que uma possibilidade remota é quase imediatamente transformada em uma realidade distinta. "Aristóteles construiu sua própria biblioteca com livros saqueados, enquanto sua escola ocupava o prédio e o transformou em um centro de pesquisa" (p. 5).
(6) As comparações entre textos egípcios e gregos são sempre feitas em resumo, e não com citações explícitas. Dessa forma, o conteúdo pode ser apresentado de modo que pareça mais semelhante entre si, e a ausência de paralelos verbais próximos não será percebida.
A história mitológica do sistema de mistérios egípcio.
Para mostrar que a filosofia grega é uma filosofia egípcia roubada, James precisa estabelecer três itens principais: (1) existia desde os tempos mais antigos um "sistema de mistérios egípcio" que poderia ser copiado pelos gregos; (2) filósofos gregos estudaram no Egito; e (3) os filósofos gregos não tinham ideias originais próprias. Embora a base sobre a qual sua tese se baseie seja a noção do sistema de mistérios egípcio, é notável que James em nenhum lugar discuta suas origens e desenvolvimento. Ele simplesmente trata a noção de mistérios, templos e escolas egípcios como se sua existência fosse um fato estabelecido. Mas, na realidade, a noção de um sistema de mistérios egípcio é uma ficção relativamente moderna, baseada em fontes antigas que são distintamente gregas ou greco-romanas, e dos primeiros séculos d.C. Como essas práticas fundamentalmente gregas passaram a ser entendidas como originalmente egípcias é uma história complicada, de que só posso apresentar aqui de forma esboçada.
As primeiras descrições de academias para sacerdotes egípcios, com grandes bibliotecas e galerias de arte, na verdade, surgem não em nenhum texto antigo, mas em uma obra francesa de ficção histórica do século XVIII, o romance Séthos, de 1732, do abade Jean Terrasson. O romance de Terrasson foi amplamente lido; teve uma influência profunda nas representações da religião egípcia em obras posteriores, como a Flauta Mágica de Mozart. Em particular, a iniciação do herói de Terrasson no sacerdócio egípcio serviu de inspiração para os rituais maçônicos. É compreensível que os maçons do século XVIII, quando esses rituais foram estabelecidos, os considerassem tanto antigos quanto egípcios, já que não tinham outro meio de conhecer a religião egípcia além de fontes gregas e romanas e dos relatos europeus posteriores baseados neles. Todas as informações autênticas sobre a religião egípcia primitiva eram inacessíveis para eles, pois os documentos que a descreviam não podiam ser lidos antes de 1836, quando a pedra de Roseta foi descoberta e os hieróglifos finalmente decifrados.
Assim como Mozart, James parece ter sido inspirado pelo ritual maçônico; ele fala das "Grandes Lojas" egípcias, outra característica distintiva da maçonaria, e cita literatura maçônica, como Ancient Mysteries and Modern Masonry (1909) de C. H. Vail, que mantém a noção de origens egípcias inspiradas em Terrasson, mesmo tendo sido publicado muito depois de ter sido estabelecido que o que eles consideravam "mistérios egípcios" não datava da antiguidade egípcia remota, e sim da civilização greco-romana dos primeiros séculos d.C. A visão dos mistérios egípcios proposta por James é, de fato, distinta da dos maçons afroamericanos, que afirmam descendência dos antigos egípcios negros. Os maçons afroamericanos acreditam que a maçonaria foi fundada por africanos "ao longo das margens do Nilo."
Como as fontes egípcias não estavam disponíveis para ele, Terrasson foi obrigado a confiar, para sua descrição do Egito, na literatura grega e latina. Por essa razão, a deusa Ísis assume uma importância particular em sua obra, assim como em obras derivadas dela, como Tamos, Rei do Egito, de Mozart ou sua Flauta Mágica. Mas a representação de Ísis e de seu culto no qual ele se apoia é distintamente greco-romana. Nos primeiros séculos d.C., Ísis, embora de origem egípcia, era adorada por gregos e romanos em todo o Mediterrâneo. O processo de conversão ao culto dela é descrito em O Asno de Ouro, de Apuleio, um livro notável datado do século II d.C. Apuleio conta a história de Lúcio, um jovem que viaja pela Grécia e é transformado por uma poção mágica em um burro; ele é resgatado, após muitas aventuras, pela deusa Ísis, que lhe aparece em um sonho. A conversão de Lúcio segue o padrão da jornada de descoberta e iniciação característico dos mitos heroicos gregos: ele passa por metamorfose física; a sua iniciação segue um período de errância e confusão, e é comparada a emergir da escuridão para a luz. Em sua epifania ao final da jornada, Ísis se identifica com muitas deusas greco-romanas importantes: Ceres (Deméter), Vênus (Afrodite) e Prosérpina (Perséfone), para citar algumas. Lúcio então se torna sacerdote da deusa e anda com a cabeça raspada, como um sacerdote egípcio.
Terrasson também descreve uma iniciação de 12 dias nos mistérios, mas esse relato deriva principalmente da descrição de Virgílio da visita do herói Enéias ao mundo inferior na Eneida (século I a.C.) e do relato de Apuleio sobre sua iniciação ao culto greco-romano de Ísis. A iniciação culmina em uma procissão de sacerdotes, explicitamente baseada numa procissão descrita por Clemente de Alexandria. Assim como Clemente, James não discute a época de origem do ritual, mas simplesmente assume que ele era muito antigo, e pelo menos tão antigo quanto os primeiros filósofos gregos que ele descreve (alguns dos quais datam do século VI a.C.).
"Cultos de mistério", ou seja, cultos de iniciação, na verdade, só foram estabelecidos em solo egípcio no século III a.C., com a fundação de Alexandria após a invasão de Alexandre. Mesmo assim, os ritos eram observados por gregos que viviam no Egito, e não por egípcios nativos. Um exemplo desse culto misterioso é a celebração do ritual da Epifania no templo de Koré, em Alexandria, onde, após uma vigília noturna inteira, os celebrantes desciam a uma caverna com tochas e levantavam uma estátua de madeira. Esse culto é citado como exemplo de um "mistério egípcio" pelo maçom de 32º grau, Reverendo Vail. Mas a origem do culto não é egípcia, mas grega, e a Donzela (Koré) do ritual é Perséfone, a deusa grega do submundo.
É certamente compreensível que Terrasson não conseguisse distinguir rituais gregos dos rituais indígenas egípcios. Ele não conseguia ler inscrições ou papiros que descrevessem ritos e crenças do antigo Egito, pois eram escritos em alfabeto egípcio, com hieróglifos ou escrita hierática, que ninguém na época conseguia ler. Também seria irrazoável supor que os maçons, que não fingem ser estudiosos sérios, teriam buscado revisar seus rituais e noções de sua própria história à luz das novas informações sobre o Egito que se tornaram disponíveis após a leitura dos hieróglifos. Se James tivesse a intenção de escrever um livro acadêmico sério (em vez de uma mito-história), teria levado em consideração descobertas recentes sobre o Egito.
Em vez de se concentrar no que hoje se sabe sobre o mito e o ritual egípcios, James citou Anacalypsis (ou "Revelação") de Godfrey Higgins. Mas Higgins morreu em 1833, vários anos antes da publicação da versão definitiva da decifração dos hieróglifos de Jean François Champollion. Higgins argumenta vigorosamente contra os estudos preliminares de hieróglifos feitos por Champollion e Thomas Young, que depois se mostraram corretos. Higgins afirma que a Pedra de Roseta, na qual se baseou a decifração de Champollion, era uma falsificação. Ele estava, claro, completamente errado. O fato de James citar Higgins em vez de uma fonte mais autorizada e moderna sugere que ele estava mais interessado em apresentar um ponto de vista específico do que em chegar à verdade.
Higgins argumentou (em vão) que a escrita egípcia nunca poderia ser decifrada porque era um sistema secreto. Em Stolen Legacy, James também insiste que nenhum registro (em qualquer idioma) do sistema de mistérios egípcio chegou até nós porque era secreto. Como não serviria ao seu propósito, James não menciona a outra explicação, mais óbvia, para a ausência de registros, que é, claro, que tal sistema nunca existiu. Como vimos, os rituais que escritores da antiguidade tardia identificaram como egípcios são basicamente gregos, e esses rituais egípcios de substituição são os modelos para os impressionantes rituais "egípcios" descritos pelo escritor francês Terrasson, que serviram direta e indiretamente de inspiração para os maçons.
Ironicamente, portanto, o "sistema de mistérios egípcio" descrito por James não é africano, mas essencialmente grego e, em seus detalhes, especificamente europeu! James, na prática, acusou os gregos de se terem inspirado, mas não disse nada sobre as verdadeiras ideias distintamente egípcias que influenciaram os gregos durante seu longo contato entre si. A melhor evidência da troca de ideias entre Grécia e Egito, claro, vem do período após a conquista de Alexandre, quando o Egito era governado pela dinastia ptolemaica.
Podemos derivar dessas fontes posteriores relatos apreciativos sobre o caráter da religião egípcia, e o aprendizado e ascetismo de seus sacerdotes. Um escriba do templo do século I d.C. e filósofo estoico, Queremon (que escreveu em grego), encontrou no sacerdote egípcio o ideal estoico do sábio. Queremon descreve a piedade dos sacerdotes e seu conhecimento em astronomia, aritmética e geometria. Esse aprendizado foi registrado em livros sagrados. O escritor cristão Clemente de Alexandria preservou uma descrição de uma procissão de sacerdotes egípcios carregando 42 tratados contendo o que ele chama de "toda a filosofia egípcia." Seus temas incluem hinos, astrologia, cosmografia, construção e provisões de templos, sacrifício, formação sacerdotal e vários ramos da medicina.
James descreve essa procissão duas vezes em seu livro, primeiro como a descrição das ordens sacerdotais egípcias e depois como evidência para o currículo de ciências sacerdotais. Aqui, sem dúvida, está uma das fontes da noção de James de que existia um corpus de filosofia egípcia. Mesmo que ignoremos o problema da cronologia e assumamos que as obras que Clemente lista no século II d.C. são cópias de escritos antigos tradicionais, é importante notar que por "filosofia" Clemente não quis dizer o que hoje chamamos de filosofia, mas o aprendizado em geral, e neste caso particular um corpo de conhecimento que tinha pouca ou nenhuma conexão com qualquer coisa grega.
Outra possível fonte da noção de que a filosofia grega deriva do pensamento egípcio vem dos próprios egípcios, mas apenas nos primeiros séculos d.C., centenas de anos após as mortes de Platão e Aristóteles. Esses escritos supostamente foram compostos no início dos tempos por Hermes Trismegisto (Hermes três vezes grande), neto do deus mas, na verdade, são muito influenciados pelo pensamento posterior, incluindo Platão, Aristóteles e seus seguidores, e os escritores hebraicos conhecidos como gnósticos. O autor de um desses tratados faz o deus Asclépio reclamar de como é difícil traduzir o egípcio, que é direto e onomatopeico, para a verborreia excessiva do grego. Mas aparentemente não havia uma língua egípcia original da qual fossem derivadas, e na verdade não poderiam ter sido compostas sem o vocabulário conceitual e a retórica da filosofia grega.
Há, finalmente, uma terceira fonte da noção de que os gregos aprenderam com os egípcios e não o contrário, e essa são os próprios gregos antigos. Gregos desde Heródoto em diante, impressionados com a piedade e o saber do sacerdócio egípcio, relataram que seus principais filósofos estudaram no Egito, entre eles os lendários Tales e Pitágoras no século VI a.C., e Platão e Eudoxo no século IV a.C. James, é claro, fica muito impressionado com essas evidências, mas do ponto de vista histórico é importante notar que o relato mais completo das visitas dos filósofos gregos ao Egito é dado por Diodoro da Sicília, um escritor grego do primeiro século a.C.
Conexões Greco-Egípcias
Diodoro diz que os sacerdotes egípcios de sua época relatavam que vários poetas e filósofos gregos visitaram o Egito. Ele cita como evidência de suas visitas estátuas, casas e inscrições com seus nomes, e oferece ilustrações do que cada um admirava e transferiu do Egito para seu próprio país. Fica claro pelo relato de Diodoro que, para ele, assim como para o escritor cristão Clemente, o termo "filósofo" era consideravelmente menos especializado e acadêmico em sua época do que se tornou no nosso. No mundo antigo, homens santos, poetas, profetas, matemáticos e lógicos teóricos eram todos incluídos sob o título geral de filósofo.
As semelhanças entre a cultura grega e a egípcia citadas pelos sacerdotes são, no mínimo, superficiais e não resistem a um exame detalhado. Por exemplo, os sacerdotes observam que os mistérios de Deméter e Perséfone eram "semelhantes" ao rito de Osíris e Ísis, exceto que os nomes em cada caso são diferentes. Mas, embora seja certamente verdade que os mitos ligados a ambos os cultos envolvam uma busca por uma deusa por um parente desaparecido, também existem muitas diferenças significativas em detalhes e resultados que sugerem que os mitos, apesar dessa semelhança, não têm conexão direta entre si. Da mesma forma, os sacerdotes apontaram que tanto os mitos egípcios quanto os gregos falam de um local de morada dos mortos localizado além de um corpo d'água; aqui, talvez, suas noções egípcias possam ter tido alguma influência na formação do mito grego antigo, mas as suas crenças sobre o destino da alma após a morte e seus costumes funerários são amplamente divergentes.
Fica claro, a partir desses e de outros casos citados pelos sacerdotes, que eles estavam determinados a aproveitar ao máximo as semelhanças que existiam entre as observâncias religiosas de duas culturas. Mas, como não tinham informações sobre ritos religiosos como eram praticados na época em que Pitágoras e Platão visitaram o Egito, foram obrigados a fazer suas deduções com base nos rituais praticados em seus próprios tempos, após vários séculos de ocupação e influência grega. Como resultado, eles apontam que os egípcios, assim como os gregos, chamam o barqueiro dos mortos de Caronte sem perceber que os egípcios receberam o nome dos gregos em primeiro lugar.
Os sacerdotes egípcios no relato de Diodoro são ainda menos explícitos sobre a influência egípcia no que hoje chamaríamos de filosofia. Eles afirmam que Licurgo, Platão e Sólon "transferiram muitos exemplos de práticas egípcias para seus códigos jurídicos", mas não citam exemplos. Na verdade, as únicas semelhanças reconhecíveis são que tanto egípcios quanto gregos tinham leis. Com base nisso, seria possível concluir que qualquer civilização anterior "influenciou" qualquer civilização posterior, mesmo que tivessem pouca ou nenhuma oportunidade de contato entre si. Usando a mesma metodologia, judeus que viviam em Alexandria nos séculos II e I a.C. afirmavam que Platão estudou com Moisés.
Há também problemas significativos com algumas das outras afirmações dos sacerdotes sobre o que os filósofos gregos aprenderam no Egito. Segundo os sacerdotes, Pitágoras retirou do Egito os seus ensinamentos sobre religião, geometria, teoria dos números e a transmigração das almas. Embora saibamos que os gregos basearam suas teorias matemáticas nos cálculos aritméticos tanto de babilônios quanto de egípcios, na verdade não há nada na religião egípcia que se assemelhe à teoria de Pitágoras sobre a transmigração das almas; se ele tivesse que obter isso de outra religião, e não simplesmente inventar, teria vindo da Índia. Os sacerdotes também afirmam que Demócrito, Enópides e Eudoxo estudaram astrologia no Egito; mas aqui novamente os sacerdotes parecem não ter percebido que a astrologia era principalmente uma invenção grega, trazida para o Egito após a conquista de Alexandre. Os gregos poderiam ter aprendido sobre astronomia com os construtores das pirâmides, mas sobre isso os sacerdotes ficaram em silêncio.
Embora o relato de Diodoro sobre as visitas dos filósofos gregos ao Egito não nos diga praticamente nada sobre a filosofia egípcia, e não faça afirmações convincentes sobre a dependência da cultura grega em relação à egípcia, mostra o quanto os egípcios estavam ansiosos para estabelecer tais conexões, e como gregos como Diodoro estavam dispostos a acreditar nelas. Por exemplo, o escritor pagão do século IV d.C., Iâmbico, diz que Pitágoras e Platão leram os escritos de Hermes em antigas tábuas de pedra em hieróglifos; mas, claro, agora sabemos, como já disse, que esses tratados foram escritos em grego séculos após a morte desses filósofos, e dependem de Platão.
Mesmo no século V a.C., os gregos tinham um profundo respeito pela antiguidade da cultura egípcia. O historiador Heródoto estava muito interessado em fazer todas as conexões que pudesse. Ele tentou comparar os deuses gregos com seus equivalentes egípcios. Ele chegou a afirmar que os nomes dos deuses gregos vieram do Egito, mas os poucos exemplos que apresenta não resistem à análise linguística moderna. Ele apontou que a mitologia grega sugere que partes da Grécia foram colonizadas por egípcios, ou pelo menos por gregos descendentes de egípcios que haviam emigrado para lá. Mas tais correspondências vagas e imaginativas, mesmo que pudessem ser confirmadas por descobertas arqueológicas, não constituem qualquer tipo de prova de que a filosofia grega foi roubada do Egito. Seja lá o que os filósofos e sábios gregos aprenderam no Egito, se todos eles foram para lá, não era o que chamamos de filosofia.
Como os biógrafos antigos dependiam das obras de escritores antigos como seu principal material de referência, suas informações são tão confiáveis quanto o próprio autor. Em outras palavras, se um autor antigo não diz nada sobre suas viagens ou vida pessoal, as informações em sua biografia foram deduzidas e inferidas de suas obras. Como as obras da maioria dos filósofos mencionados por Diodoro sobrevivem apenas em fragmentos, é impossível saber se as informações biográficas que temos se baseiam no que eles mesmos disseram ou no que escritores posteriores achavam que poderiam ter feito com base em seus escritos. Viajar ao exterior, em particular, era usado por biógrafos como meio de explicar por que os escritores incluíam referências a costumes e geografia estrangeiras em suas obras.
Os grandes filósofos cujas obras ainda sobrevivem alguma vez foram para o Egito? Nenhum dos relatos sobre a vida de Sócrates ou Aristóteles diz algo sobre suas viagens até lá. Sócrates, na verdade, é registrado por um contemporâneo próximo, Platão, dizendo que durante sua vida ele nunca saiu de Atenas a menos que estivesse em campanha militar – o que, ainda assim, o manteria na Grécia. Embora Plutarco, no século II d.C., e outros biógrafos tardios afirmem que Platão estudou no Egito, e até citem seus mestres, vale notar que as primeiras informações biográficas que temos sobre ele não dizem nada sobre isso. Como os escritos de Platão mostram algum conhecimento dos costumes, religião e lendas egípcias, ou pelo menos das ideias gregas sobre o Egito, a maioria dos estudiosos clássicos acredita que a história de sua estadia no Egito foi inventada por biógrafos posteriores para explicar seu interesse pelo Egito e para fornecer uma "prova" física da importância da cultura egípcia que (como vimos) os sacerdotes egípcios da antiguidade tardia estavam ansiosos para estabelecer.
James argumenta que o silêncio sobre a presença de Sócrates e Aristóteles no Egito é prova de uma conspiração dos gregos para ocultar da posteridade a extensão de sua dívida com o Egito. Esse é o tipo de pensamento conspiratório que impulsiona os sistemas de crença modernos diante de evidências contraditórias, onde tais evidências negativas são mais uma prova do encobrimento.
Presumivelmente, o mesmo argumento poderia ser feito sobre a falha do primeiro biógrafo de Platão em falar sobre suas viagens por lá. A outra conclusão, mais óbvia, feita pelos estudiosos, é de que nenhum deles realmente foi para lá. Se os grandes filósofos gregos tivessem roubado suas ideias dos egípcios, como James afirma, esperaríamos que James fornecesse textos paralelos mostrando frequentes paralelos verbais. Como está, ele só pode apontar algumas semelhanças gerais entre as ideias religiosas egípcias e as teorias gregas. Como observa James, Aristóteles escreveu um Tratado Sobre a Alma, e os egípcios acreditavam na imortalidade da alma. Mas aí termina a semelhança. James admite que não há semelhança próxima porque a teoria de Aristóteles é apenas uma "pequena parte" da "filosofia" egípcia da alma, conforme descrita no Livro dos Mortos egípcio. Mas qualquer um que olhe para uma tradução do Livro dos Mortos pode ver que não se trata de um tratado filosófico, mas sim de uma série de prescrições rituais para garantir a passagem da alma para o outro mundo. Nada poderia ser mais diferente da consideração abstrata de Aristóteles sobre a natureza da alma.
O Uso e Abuso da História
Neste artigo, tive espaço apenas para tratar algumas das muitas alegações fraudulentas feitas em Stolen Legacy. Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados: por exemplo, James insiste que os gregos não venceram sua guerra contra a Pérsia em 490 e 480-79 a.C., como sempre se pensou, mas afirma (sem apresentar qualquer tipo de evidência) que as batalhas de Maratona e Salamina não tiveram resultados decisivos. James deturpa a história dessa forma para retratar os antigos gregos como um povo briguento e caótico, incapaz de produzir filosofia, que (segundo James) "requer um ambiente livre de perturbações e preocupações" (p. 24). Essa desinformação sugere que Stolen Legacy deveria estar na prateleira junto com outras literaturas de ódio, como A Relação Secreta Entre Negros e Judeus, recentemente trazida à consciência pública pelas tiradas de Louis Farrakhan contra judeus e tudo que é judaico.
É claro que é possível simpatizar com James e com sua raiva contra uma sociedade que prestou pouca homenagem às verdadeiras conquistas africanas. Infelizmente, Stolen Legacy não só não ajuda a causa afrocêntrica, como a prejudica. O problema é que Stolen Legacy tem sido tratado não como uma mitologia, mas como uma obra séria de pesquisa acadêmica. Como tal, teve uma influência ampla e perniciosa. Um dos alunos mais conhecidos de James, Dr. Yosef A. A. ben-Jochannan, já deu palestras em universidades por todo os Estados Unidos sobre o roubo da cultura indígena africana pelos gregos, mas com novos detalhes e referências, para que essa história soe mais crível. Por exemplo, em seu livro Africa: Mother of Western Civilization (1971; reimpresso em 1988), ben-Jochannan afirma não apenas que Aristóteles foi educado no Egito, mas que ele roubou bibliotecas inteiras do sistema de mistérios egípcio. Aristóteles então ou colocou seu próprio nome nas obras que havia roubado ou as enviou para seus amigos. Livros de que ele não gostava ou não entendia, ele destruía.
Segundo ben-Jochannan, tais "revelações" fornecem um exemplo da desonestidade acadêmica dos educadores que atribuem a filosofia de Aristóteles aos gregos. Assim, quando classicistas ou egiptólogos tentam apontar onde James errou, ele e outros que acreditam na noção de um legado roubado sentem-se no direito de acusá-los de eurocentrismo e até mesmo de "racismo branco". Tais acusações, mesmo sem fundamento, podem ser prejudiciais no mundo acadêmico de hoje. Fui acusada de ambos por dizer que as evidências históricas que chegaram até nós simplesmente não sustentam a ideia de que os gregos "roubaram" sua civilização (ou sua filosofia) do Egito, e espero que este ensaio provoque reações semelhantes. Então, para concluir, direi inequivocamente que tenho o maior respeito pelo antigo Egito e sua civilização. Mas também acredito que os antigos gregos merecem todo o crédito por suas próprias conquistas.

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