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"A Flauta Mágica" do Mozart e o sujeito do iluminismo

Esses dias eu assisti um vídeo da Flauta Mágica, e não tive como não pensar na tese do Robert Kurz e da Roswitha Scholz sobre o caráter androcêntrico e eurocêntrico do sujeito do iluminismo. Eu não concordo com eles, não, já escrevi aqui contra essa visão do iluminismo como um bloco, e sobre como existiram correntes iluministas radicais na teoria e na prática que fizeram essas mesmas críticas sobre o iluminismo moderado... mas o Mozart era um iluminista moderado (o que não quer dizer que a música não seja maravilhosa).

Eu nunca tinha assistido essa ópera mas, um dia desses, eu vi alguém dizer que é uma "ópera maçônica". Eu pensei que era um exagero comum de quem escreveu isso, mas não. 

Os dois personagens principais, o Príncipe Tamino e o caçador de passarinhos Papageno são convocados pela Rainha da Noite pra salvar a filha dela, Pamina, que foi sequestrada pelo Sarastro (será uma referência ao Zaratustra?), um sábio. Quando eles chegam no reino do Sarastro, eles descobrem que é tudo ao contrário, o Sarastro é um líder sábio e bom de uma ordem iniciática que cultua Ísis e Osíris, e ele sequestrou a princesa pelo bem dela mesma, porque a Rainha da Noite é possessiva e quer controlar a vida dela etc. 

Entre os aliados do Sarastro, tem um mouros negros, de que o líder é o Monostato, que tenta pegar a princesa à força, e que o Sarastro depois vai dizer que tem a "alma tão negra como o corpo". Os heróis recebem os objetos mágicos da Rainha, a flauta e o carrilhão, mas depois usam esses objetos pra cumprir as tarefas iniciáticas que vão purificar e preparar eles pra conseguirem as suas mulheres (a Papagena aparece como uma bruxa e, depois que ele cumpre as tarefas, vira uma jovem bonita com roupas parecidas com as dele). 

Tem várias explicações sobre os simbolismos da história, por exemplo a Rainha da Noite é associada por alguns com a imperatriz Maria Teresa da Áustria, que era católica e proibiu a maçonaria. O Sarastro parece um déspota esclarecido etc. Mas aqui eu quero só terminar com uma citação meio longa do Robert Kurz, porque essa ópera mostra mesmo aquela visão do iluminismo moderado, antidemocrática, da Razão criando o seu reino e, incidentalmente, expulsando das posições de poder desse reino as mulheres e os povos colonizados.




A forma do sujeito que vem a si nesta construção da história é, por um lado, abstracta e universal ("igualdade") e, nessa mesma medida, assexuada. Por outro lado, porém, os momentos da reprodução social, das formas de expressão humanas etc., que não podem ser abrangidos pelo valor, são delegados n’ "a mulher" (enquanto ser biologicamente sexual e materno) e dissociados da "verdadeira" forma do sujeito do valor. Assim sendo, a relação de valor apenas à primeira vista se apresenta como de extensão universal, sugerindo constituir uma totalidade que não é nem pode ser. Para além de um conceito positivo da totalidade, na sociedade moderna ocorre realmente uma meta-relação, eclipsada nas categorias do valor, a saber, a "relação de dissociação" de base sexualmente determinada (Roswitha Scholz).

Esta relação, que desmente precisamente a suposta universalidade, por um lado desaparece no mundo conceptual burguês e iluminista; onde, por outro lado, tem de ser denominada, nas suas manifestações práticas do quotidiano, estes fenómenos significativamente só podem ser representados nas categorias burguesas como "desigualdades objectivas (naturais)". (...)

O carácter abstracto, repressivo, dissociador e exclusionista do universalismo ocidental, constituído com base na relação de valor, não se afirma apenas no seu nível basilar sexual, mas também para além deste. Este universalismo, referido unicamente ao mundo interior à forma do valor, constitui sob vários aspectos um sistema de exclusão, com os seus mecanismos. A definição "do ser humano" como sujeito do valor não só reduz o feminino dissociado a um patamar meio-humano, como, pela sua própria natureza, exclui socialmente da humanidade todos os indivíduos que, a título temporário ou definitivo, não (ou já não) possam actuar no âmbito do auto-movimento do "sujeito automático" e que, por conseguinte, do ponto de vista deste, que se tornou o ponto de vista da reprodução social em geral, têm de ser considerados "supérfluos" e assim, em princípio, não-humanos. O direito iluminista do Homem implica a desumanização temporária ou total dos indivíduos não reproduzíveis de forma capitalista, porque desde o início se refere somente ao Homem enquanto sujeito do valor.

A desumanização do Homem está objectivamente estabelecida pela própria definição do universalismo, como delimitação ao universo interior à metafísica do valor; este resultado, no entanto, apenas é executado pelo processo da concorrência. A concorrência decide, quem, quando e onde sai da categoria "Homem". É por isso que a concorrência recebe a priori, partindo da autodefinição ocidental do iluminismo, uma conotação racista e (como ultima ratio da concorrência de crise) anti-semita. O racismo e o anti-semitismo não constituem, por isso, uma oposição de princípio relativamente ao universalismo iluminista, sendo pelo contrário componentes integrais da sua existência, como consequência necessária do encerramento na forma do valor e logo na concorrência. O sujeito, segundo o seu próprio conceito, é não só masculino, mas também branco.


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