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"A Destruição da Razão", do Lukács (3)


Houston Stewart Chamberlain 


O sexto capítulo fala sobre a fascistização na sociologia alemã. Aqui o Lukács entra na problemática das ciências particulares, que é um dos pontos mais importantes da polêmica da corrente lukacsiana contra o pensamento do século XX que eles caracterizam como burguês. Ao mesmo tempo em que colocam um ponto final na história da filosofia em 1848, e proscrevem tudo o que veio depois e não é marxismo como decadente, eles também rechaçam todas as humanidades, dizendo que elas têm o vício de origem de serem ciências particulares, ou seja, de que elas rejeitam a visão unificada sobre a sociedade que o marxismo tem. No caso da sociologia, isso aconteceria porque ela tira dos fenômenos sociais a base econômica, e aí o que sobra é uma concepção organicista sobre a sociedade, copiada da biologia e, depois, teorias subjetivistas de base culturalista. 

Isso não é a mesma coisa que a discussão de que as chamadas ciências humanas seriam pseudociências, é até engraçado quando um marxista usa esse tipo de argumento, porque o marxismo geralmente é enquadrado como pseudociência na definição do Popper ou do Lakatos, por exemplo. 

No caso da sociologia alemã que o Lukács tá falando, ele fala que no período até a unificação não houve sociologia alemã, e que geralmente a sociologia era criticada do ponto de vista do direito, o que era um reflexo da situação social de estatismo e atraso no desenvolvimento da sociedade civil. Mas que a sociologia passa a se desenvolver na década de 1870, como contraparte da escola austríaca na economia. 

Ele pega como a primeira grande obra o Comunidade e Sociedade (1887) do Ferdinand Tonnies. Ele que criou a distinção, que depois foi muito importante pra sociologia e pra filosofia da vida, entre cultura (Kultur) e civilização (Zivilisation). Essa distinção tá a serviço de uma crítica anticapitalista romântica ao capitalismo e à sociedade industrial. O Lukács vai falar que o Tonnies vai pelo mesmo caminho do Simmel e vai dissolver as categorias econômicas em categorias psicológicas. 

O próximo que vai analisar é o Max Weber. O Weber é um que eu já desisti de ler nessa encarnação, assim como eu desisti de aprender alemão. A obra do cara é muito grande e pra avaliar teria que ter um engajamento sério com ela. O que o Lukács fala, primeiro, é aquilo que todo mundo sabe, que ele tenta provar que a determinação da superestrutura pela base que o marxismo propõe não é verdade, isso no Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905). Se ele demonstra isso mesmo eu não sei, o que eu sei é que, por exemplo, o Schumpeter achava que o que fala nesse livro é perfeitamente compatível com o marxismo. E que o Weber é uma influência tanto pra Escola de Frankfurt como pros marxistas românticos em torno do Michael Lowy e que o que ele fala sobre burocratização influenciou alguns marxistas libertários como o Maurício Tragtenberg.

Ele continua o tema dos tipos, que começou com o Dilthey, claro, porque o Weber tem a metodologia dos tipos ideais e a ideia de sociologia compreensiva. Hoje talvez essa forma de fazer sociologia seja a dominante, abstraindo a questão da causalidade e da evolução, e em vez disso tentando classificar as práticas sociais e formar um quadro pra interpretar. Que existe um elemento de retrocesso por essa suspensão da ideia de tentar analisar as mudanças, pra mim parece que sim.

E lógico que ele vai criticar a tese da ciência isenta de valores. Do ponto de vista do Lukács é fácil, já que ele tem uma visão mecânica em que a ciência te obriga a ter um posicionamento político, mas a crítica tem algum fundamento sim. O Voegelin dá um exemplo bom sobre a dificuldade de sustentar essa neutralidade, quando lembra que, para o Weber, o socialismo leva a uma burocratização muito maior da sociedade. Como, então, essa tese sociológica não fundamenta um posicionamento contra o socialismo? Esse tema leva a uma discussão mais ampla sobre cientificismo que não dá pra fazer aqui.

Depois do Weber, ele vai falar do Alfred Weber (irmão do Weber) e do Karl Manheim, colocando eles como reflexos do caráter vacilante e cada vez mais recuado dos liberais. Desses, o Manheim cumpriu um papel importante, com o Ideologia e Utopia (1936) que criou esse tema que hoje é comum nas humanidades, um relativismo em que todas as posições são ideológicas, então, não pode existir objetividade. 

O passo seguinte a esse desarme é a passagem direta à sociologia fascista. O primeiro autor nesse caminho é o Othmar Spann (1878-1950) que, na verdade, é um católico tradicionalista. O outro, Hans Freyer (1887-1969) não acrescenta muito. O Spann foi o criador do argumento de que basicamente tudo que aconteceu depois da idade média é comunismo, argumento que foi fundamentado pelo integrismo do Plínio Corrêa de Oliveira (1908-1995) e popularizado pelo Olavo de Carvalho (foto). Como essa teoria inverte a ordem causal e coloca a autonomia da economia no capitalismo como um impulso comunista, ela abriu margem pra uma crítica espiritualista, que vê o marxismo como uma filosofia burguesa, por causa do peso que dá à economia. Essa é a posição do Berdiaev, do Soljenitsin e, no fascismo, de figuras como o Jünger, um tipo de crítica "dostoievskiana" do socialismo.
 

Finalmente, ele chega ao Carl Schmitt, que conseguiu fazer uma teoria política consistente compatível com o fascismo. O Schmitt começa por uma crítica da teoria liberal do direito, corretamente dizendo que eles descrevem os poderes, como eles interagem quando são legítimos ou ilegítimos etc mas não questiona a fonte do poder (o Voegelin faz a mesma crítica, como está no link acima). Essa crítica é muito influenciada pela leitura que ele fazia sobre a incapacidade do Estado durante a República de Weimar, e a necessidade que ele via do surgimento de um poder soberano capaz de resolver essa incapacidade. Daí ele tira uma teoria realista do campo político, que não necessariamente é fascista, mas, com certeza, é autoritária. O que define o político para o Schmitt é a capacidade de estabelecer relações de tipo amigo-inimigo. Automaticamente, some a questão da legitimidade do poder: tudo passa a se reduzir à interação entre os Estados diante da possibilidade de alianças e conflitos. 

O Schmitt, logo depois da Noite das Longas Facas, escreveu O Fuhrer defende o direito, justificando a necessidade das medidas de exceção em nome da soberania. Mesmo assim, tem um elemento que não é totalitário na teoria dele, e que foi o que ajudou ele a vender o passe pro imperialismo americano depois da Segunda Guerra: o inimigo, como ele define, ainda está sob a vigência de tratados e de relações políticas, não é simplesmente algo a ser exterminado. Essa é a crítica que ele vai fazer às guerras de libertação nacional no Teoria dos Guerrilheiros (1962), quando ele acusa esses movimentos de ultrapassarem os limites da relação amigo-inimigo ao cindirem o Estado em classes e ao levarem a guerra para dentro dele. Talvez a gente possa ver aí a influência do pragmatismo do Donoso Cortés (1809-1853), uma das grandes influências dele. 

O Schmitt é o último teórico de valor que aparece no livro, porque o sétimo e último capítulo vai analisar as teorias racistas que, necessariamente, têm que ser muito mais rebaixadas intelectualmente. 

Ele começa relacionando o surgimento das teorias raciais no século XVIII e o papel que elas cumprem nessa etapa do capitalismo. Mas não gosto da exposição dele, e acho que esse tema é melhor tratado nesse artigo aqui. Ele também faz várias afirmações sobre o darwinismo social que eu acho equivocadas, fruto do defeito da filosofia marxista de geralmente cair num determinismo social. Ele tá certo em falar que as analogias biológicas, quando são usadas na filosofia e nas humanidades, têm uma forte tendência a levar a uma visão de que a sociedade atual é a única natural. Mas acho que ele subestima o impacto do darwinismo no pensamento da esquerda e de como ele pode ser apropriado de forma progressiva (Kropotkin, Pannekoek, Jay Gould etc). 

Depois de citar alguns autores menores, ele fala do Arthur de Gobineau (1816-1882), que escreveu o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853). Ele mostra que o racismo expresso pelo Gobineau ainda pertence a uma visão de mundo não imperialista. É uma teoria da decadência, e não um guia pra conquista do mundo, já que, para o Gobineau, a mistura das raças era inevitável e devia ser vista com resignação. Até, nesse ponto, ela é incompatível com o darwinismo, ao contrário do que se fala, porque as raças vão regredindo com o tempo. Na época, o único lugar onde o Gobineau teve alguma popularidade foi no Sul dos Estados Unidos, que era uma sociedade em declínio final.

É com o Houston Stewart Chamberlain (1855-1927) que o racismo chega a uma forma adaptada às necessidades imperialistas. O livro Os Fundamentos do Século XIX (1899) já tem todas as características do nazismo: a defesa da raça ariana, da segregação, do destino de dominação mundial da Alemanha, o antissemitismo. O Chamberlain foi amigo do imperador alemão Guilherme II e a obra dele foi muito influente como ponte das teorias reacionárias do século XIX até o nazismo.  

A antecipação do nazismo é tão completa que ele até mostra um tipo avant la lettre de cristianismo positivo, a forma de cristianismo que o regime nazista tentou tornar a religião oficial, que rejeitava o antigo testamento e afirmava que Jesus era um ariano assassinado pelos judeus. Era uma forma de resolver a ambiguidade que existia no Gobineau: como um autor católico poderia rejeitar a igualdade de todos os homens diante de Deus? Na verdade, o cristianismo positivo era uma tentativa de criar uma religiosidade para as massas, porque a ideologia dentro dos círculos dominantes do partido nazista e nas SS era uma forma de paganismo esotérico. Hoje em dia, essas duas alas continuam dentro do neonazismo. Tanto existem grupos, como a identidade cristã, que pregam doutrinas parecidas com as do cristianismo positivo, como (talvez a maioria) grupos neopagãos ligados ao asatrú e várias formas de esoterismo.

O Lukács termina o capítulo falando que toda a ideologia nazista é demagogia, infelizmente uma consequência das concepções erradas da Terceira Internacional, que achava que o fascismo era simplesmente um instrumento do capital financeiro. E isso depois de centenas de páginas mostrando as raízes intelectuais do fascismo. Nesse ponto, o Zeev Sternhell é incontornável, porque ele conseguiu entender o significado do fascismo como teoria política. Além dele, recomendo muito, para não cair nesse erro, a leitura e o estudo das obras fascistas. 

Depois, vem o Epílogo, que eu tanto queria ler. Não me decepcionou. É macabro. Uma coisa certa ele fala: depois da Segunda Guerra, o irracionalismo dá lugar ao pragmatismo e à filosofia analítica como ideologia dominante. Mas, contradizendo até essa tese certa, ele, escrevendo em 1952, no período em que existia uma discussão pública sobre a iminência da Terceira Guerra, ele fala que o irracionalismo, mesmo na forma positivista, tem que dar um salto qualitativo. Todo o epílogo é uma série de ataques gratuitos a intelectuais de menor importância daquela época (como o Walter Lippman ou Burnham) até grandes escritores e filósofos: Camus, Bertrand Russell (!!!), Kafka (!!!!), Koestler, Wittgenstein etc etc são todos nivelados por baixo e colocados como agentes do imperialismo. É bem característico que entre os caras que ele defende tá o Ernst Niekisch (1889-1967), que, esse sim, foi nacional-bolchevique ligado ao Jünger, e que tá anistiado pro Lukács pelo fato de ter ido viver na Alemanha Oriental depois da guerra. Ou seja, dá pra ver que tem muito de sectarismo, mas tem uma dose de desonestidade também nessa ladainha. Essa edição do Instituto Lukács tem um posfácio, Sobre como lidar com o passado alemão, em que o Lukács faz a discussão sobre o destino histórico da Alemanha apontando vários fatos da conjuntura da época, que também não acrescenta muita coisa. 

Pra concluir. Lendo esse livro, eu lembrei muito daquela frase extra ecclesiam nulla sallus, fora da igreja não há salvação. É indispensável fazer a críticas das correntes irracionalistas que fundamentam o fascismo (e que, ironicamente, também são o fundamento da esquerda pós-moderna). Mas esse livro, junto com todas as suas qualidades, parte de um ponto de vista que se recusa a assimilar praticamente toda a filosofia e as humanidades desde a metade do século XIX, porque acredita que a forma definitiva de compreensão da realidade já foi atingida pelo marxismo. A partir de um ponto de vista como esse, é muito difícil não agir como um tribunal stalinista, interpretando todos esses autores de forma a buscar indícios de desvios e traição de classe. 

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