Pular para o conteúdo principal

"A Destruição da Razão", do Lukács (2)

Nietzsche, Edvard Munch, 1906

Vou tentar retomar a resenha do livro pelo terceiro capítulo, que é o mais conhecido, e que foi o que me pegou, naquela época em que eu via que o Nietzsche era uma unanimidade na academia e na esquerda intelectual, mesmo os textos dele com um conteúdo explícito antidemocrático e antissocialista, e encontrei no Lukács a única exceção e o único filósofo que eu vi que avaliava as obras pelo que tava escrito. Esse capítulo faz uma crítica razoável ao Nietzsche, apesar de que, e aqui esse defeito do livro ainda aparece relativamente fraco, essa crítica se baseia no posicionamento político suposto do Nietzsche, e não numa crítica imanente da obra dele, que deveria ser a atitude marxista. Existe uma articulação no Nietzsche entre a forma aforistica e o conteúdo mitológico. O Lukács corretamente diz que o ponto de vista do Nietzsche, que é o da preservação da cultura, é sincero, mas acaba perdendo isso de vista várias vezes, tentando explicar politicamente vários elementos que não se reduzem a isso. O mais marcante, pra mim, é o eterno retorno. Pro Lukács, o papel do eterno retorno é impedir a possibilidade de uma sociedade diferente mas, se você for ver a estrutura do mito que o Nietzsche cria, em que a vontade é uma força metafísica que cria a realidade, o eterno retorno funciona como uma garantia da persistência da vontade que, sem ele, ia se dissolver no tempo de uma forma existencialista tipo Camus. 


Por outro lado, eu acho que o Lukács acerta quando vê nessa forma mítica que o Nietzsche usa uma imposição do período histórico em que ele viveu, quando ainda não era possível conceber concretamente o imperialismo. Com isso, a filosofia dele pôde ganhar mais flexibilidade e não ter uma cara tão explicitamente política que ia fazer ela se afastar da sua base social. Essa função também é preenchida pela forma dos aforismos, que dão a ele a liberdade de não ter que se ater a um sistema, e que têm um sentido por assim dizer "flutuante". Também acho um acerto quando ele destaca o período falsamente iluminista, na época do Humano, Demasiado Humano, porque esse é o tipo de discurso que fez o Nietzsche poder ser interpretado como um "mestre da suspeita" quando é exatamente o contrário, um mestre de certezas dogmáticas e aristocráticas. Isso e mais as críticas ao Bismarck permitiram a montagem de uma leitura do Nietzsche pela esquerda, que já existia no final do século XIX, bem antes de ser o fundamento do irracionalismo pós -estruturalista. 


A forma de apologia indireta do Nietzsche não é a defesa do apoliticismo que o Schopenhauer fazia. Muito pelo contrário, é o ativismo generalizado que rejeita como a fonte da decadência e do niilismo europeu o igualitarismo cristão, e coloca a busca da verdade desde Sócrates e Platão como uma rejeição da força vital. De todos esses caras que o Lukács fala, o Nietzsche é o primeiro que realmente tá tentando criar uma ética pra uma elite que ele quer que domine o mundo. Essa ética com certeza não é fascista, inclusive criticaria o fascismo pela direita, como uma concepção populista (é o que a gente vê em alguns nietzscheanos de hoje, como o Alain de Benoist) mas é uma ética reacionária que pode servir para o caldo de cultura da rejeição irracionalista ao iluminismo.


No capítulo IV, ele começa a falar da filosofia da vida (Lebenphilosophie), e faz uma ponte que começa com o Dilthey e termina no Rosenberg. Nesse capítulo, eu comecei a ter dificuldade de leitura, porque começa a ficar cada vez mais aparente como ele começa a pegar elementos isolados ou de segundo plano nos autores que ele tá criticando, e colocar sempre no contexto de uma crescente até o fascismo. Isso violenta o conteúdo verdadeiro da filosofia deles. Eu percebi isso quando ele fala da fenomenologia, mas eu não ficaria surpreso de isso acontecer já na análise do historicismo do Dilthey que, como eu nunca li nada, não tenho como fazer um juízo de valor.


Ele atribui ao Dilthey uma característica que vai dar no fascismo, que é a metodologia dos tipos. Essa metodologia é intuicionista sim, e psicologizante. O Dilthey usou essa abordagem pra fugir da ausência de conteúdo típica do positivismo, como uma forma de tentar abordar a história, a sociedade, enfim, tudo que não tem como ser reduzido a um método quantitativo tirado das ciências naturais. É um problema real, que teria como ser resolvido de outras formas, e o Lukács tá certo quando mostra que esses tipos migram até o fascismo, quando viram tipos humanos como o trabalhador, da filosofia do Junger. Porém, a argumentação dele é totalmente envenenada quando ele traça uma linha direta dessa tendência, que politicamente é conservadora ou liberal conservadora, até o uso dos tipos pelo fascismo, aí sim abstraindo a mudança no contexto social que permitiu essa mudança de conteúdo do método que, no começo, era uma forma de compreender outras realidades históricas e sociais. 


Ele mostra até o Simmel, que é outro autor de que eu não li nada, mas em que ele mostra alguns elementos de crítica ao capitalismo, que acabam se tornando isolados dentro desse método abstrato e subjetivista. A esquema do Lukács é tão mecânico que ele chega a colocar o Scheler, que tenta criar uma teoria objetiva dos valores, como uma expressão da fase da estabilização relativa. Pra quem não lembra, a Internacional Comunista chamou de estabilização relativa o período entre a derrota da Ação de Março, que foi a última tentativa de revolução na Alemanha, em 1923, até a crise de 1929. Esse período de seis anos, pra ele, tem uma expressão filosófica no Scheler! 


Depois, ele vai falar do Spengler que, aí sim, é um antecessor do fascismo mesmo, por mais que ele tenta se distanciado no final da vida. O Spengler é engraçado, começou com uma visão orgânica da história (até as categorias das ciências naturais são produtos da cultura, ou seja, aí tá a fonte de um tema clássico do pós-modernismo), como em quase todo o pensamento de direita, mas que dizia que o Ocidente estava condenado à decadência. Isso logo após a derrota da Alemanha na primeira guerra. Logo depois, ele descobre que não, tem uma solução sim, que é o socialismo prussiano, uma forma de socialismo reacionário, que tem claramente muito do que depois seria o fascismo. O Lukács ironiza essa mudança radical, que só pode ter sido consequência da mudança do clima político. 


...e aí ele chega no Heidegger. Muito fácil de bater. Mais fácil ainda de generalizar. O caso é que o Heidegger se envolveu com o nazismo, mas isso tem pouca relação com o pensamento dele. O máximo que dá pra encontrar são algumas referências vagas ao Dasein de um povo. Parece muito mais que ele distorceu a própria filosofia pra fazer carreira na época. Mas é interessante que o Heidegger também tem uma influência sobre o fundamentalismo islâmico, por exemplo o Sayyid Qutb, por isso vale a pena refletir o porquê dessa filosofia de um caminho pela transcendência se presta a justificar regimes totalitários. A minha impressão é que ele coloca o ser como à parte da razão, o que leva a abertura para um decisionismo radical sem fundamento.


Na mesma seção, ele faz várias insinuações sobre o Karl Jaspers, inclusive dizendo que ele só se colocou contra o nazismo quando essa posição ficou popular (no final do livro, ele ainda vai descer o nível mais ainda). Do Jaspers eu li um livro só, Filosofia da Existência, mas foi o suficiente pra ver que, sim, ele tem um conceito de razão, que até vai fundamentar a elaboração dele sobre a era axial. Então, pra fazer uma acusação de irracionalismo contra ele, o Lukács precisaria de muito mais do que essa lavagem de roupa suja.


Ele também joga lama no Ludwig Klages, colocando ele, que era antimilitarista e ecologista (ele foi o criador do conceito de biofilia) na mesma seção que os caras da filosofia da vida que aderiram ao nazismo (Baumler, Rosenberg etc). Parece até aquelas babaquices do João Bernardo, que coloca toda forma de anticapitalismo romântico como se fosse fascismo. Ele tem razão em mostrar como essa metodologia dos tipos, intuicionista e subjetivista, pôde depois ser apropriada pelo fascismo, mas em vez de fazer uma crítica refinada, faz um reducionismo político simplista.


O quinto capítulo, bem curtinho, fala sobre o neohegelianismo. A gente conhece o hegelianismo de esquerda, mas a contradição que o Lukács fala entre método (dialético) e sistema também desembocou no hegelianismo de direita. O Lukács mostra como essa corrente ainda estava ativa na época da unificação da Alemanha, e como ela chegou até os anos 1930, principalmente na figura de dois filósofos, o Hermann Glockner (1896-1979), que foi o criador da ideia das duas possibilidades de leitura do Hegel como panlogismo ou pantragismo, que ainda hoje é influente na interpretação da filosofia dele - o Glockner aderiu ao nazismo - e o Richard Kroner (1884-1974) que era teólogo e tem uma visão do Hegel como o São Tomás de Aquino protestante (????). A função do neohegelianismo, então, foi funcionar como mediação entre as várias correntes conservadoras alemãs, sem nunca ter atingido a hegemonia que, na época, era da filosofia da vida.


Comentários