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Dois poemas do Amiri Baraka, e umas coisas sobre a questão negra nos EUA


Ontem eu tava falando com o Thiago Sobral, e ele me perguntou se eu tinha alguma coisa dos Panteras Negras contra o nacionalismo cultural (as correntes que existiam e existem que defendem a volta às "raízes africanas", sem fazer luta política real). Aí eu lembrei desse primeiro poema do Amiri Baraka, Hoje, de 1976:

Hoje


Fraudes em pele de leopardo, cafetão de turbante enganando
com a cor da pele, capitalistas de cor, negros
exploradores, pilantras afroamericanos de Embaixada
procurando embaixadas africanas, em luta por
passagens de avião, coqueteis de guerrilha, em que
a única conexão com um partido é estilo
MV Bill.
Cadê a revolução, irmãos e irmãs?
Cadê a mobilização das massas, dirigida
pelo setor avançado da classe operária?
Cadê a unidade-crítica-unidade; A autocrítica
& crítica? Cadê trabalho e estudo. A
clareza ideológica? Que só faz poses &
posições & teorias subjetivas unilaterais
descrevendo só sua formação pequeno-burguesa
Discurso negro pode te render um ciclo de palestras, sabe-tudo, mas, sozinho, não faz revolução.


Eu fiz algumas escolhas na tradução meio doidas. O jargão maoísta eu mantive igual, copiando dos maoístas brasileiros. A outra escolha bizarra foi reescrever Frankie Crocker como MV Bill. O Frankie Crocker era um DJ que aparecia, na época, em filmes de blaxploitation (aqueles filmes de ação hollywoodianos que copiavam a estética da cultura negra em roteiros totalmente reacionários, tipo aquele da Cleopatra Jones, que era agente do FBI). Um equivalente brasileiro compreensível hoje de um negro que usa a cultura negra mais radicalizada pra se vender pra mídia racista é o MV Bill.

Mas o mais difícil de explicar é o tom pesado que, se o cara não conhecer o contexto, vai parecer até racista. O Amiri Baraka é um cara bem complicado, era um escritor que começou a se radicalizar politicamente na década de 1960 nos EUA, criou o Black Arts Movement (Movimento de Artes Negras), numa época em que o nacionalismo negro era muito influenciado pelas teorias racistas da Nação do Islã (de onde veio o Malcolm X, que depois se converteu ao Islã sunita e deixou o racismo pra trás). Então, os seus poemas dessa fase são ultraviolentos, antissemitas, machistas e homofóbicos, pregando todo o tipo de violência contra os brancos, especialmente as mulheres e homossexuais (nisso ele lembra muito o jovem Eldridge Cleaver antes de entrar no Panteras Negras, que era estuprador e dizia que fazia isso pra se vingar dos brancos). O melhor exemplo dessa fase do Baraka é o jazz Black Dada Nihilismus, uma apologia do estupro e do assassinato. Não vou deixar de traduzir ele por isso, até porque ninguém deixou de ler o Fernando Pessoa, mesmo ele sendo fascista.

Porém, na década de 1970, o Baraka rompeu com o nacionalismo negro e virou maoísta, sendo dirigente de um grupo chamado LRS (Liga da Luta Revolucionária). Nessa época, ele escreveu o poema, denunciando os nacionalistas culturais como vendidos pro capitalismo.

Um exemplo famoso do nacionalismo cultural foi a organização US (que muitos dizem que a sigla quer dizer Escravos Unidos), com que o Baraka colaborou. A US era uma adversária dos Panteras Negras na época, os Panteras diziam que eles defendiam o "capitalismo negro" e que colaboravam com a CIA.

Pois bem, o Baraka, depois que virou marxista, segurou um pouco a onda do racismo e do machismo bizarros, mas
continuou (e continua até hoje) a ser um cara muito problemático, por exemplo falou que o 11 de setembro teve o apoio de Israel, o que é obviamente antissemitismo. Mas escreveu poemas que têm um aspecto de classe melhor, falando do cotidiano dos negros nos EUA.

Esse é o segundo poema:


Segunda-feira em Si Bemol

Posso rezar
        sem cessar
        & Deus
        não vir

Mas se eu ligo
        190
        O Diabo
         vem aqui

 em um minuto!

 Eu tô falando essas coisas, porque em português não existe nada sobre a rica experiência do movimento negro nos EUA nas décadas de 1950 a 1970, que foi um movimento revolucionário de massas. Tem uma coisa bem interessante, que eu tava falando com o Pedrinho um dia desses, que foi o movimento que levou mais adiante a luta pela nação negra independente, que era defendida pelo Malcolm X e pelos Panteras Negras, foi a República da Nova África. Inclusive, quando a ala novaiorquina dos Panteras Negras se transformou no BLA (Exército de Libertação Negra) e foi pra luta armada, quando eles foram presos, reivindicavam ser tratados como prisioneiros de guerra da nação beligerante República da Nova África. E alguns presos do BLA fizeram uma autocrítica das suas posições militaristas e se transformaram na primeira leva importante de anarquistas negros nos EUA.    

Esse caldo de cultura entre nacionalismo revolucionário, maoísmo, anarquismo e trotskismo (principalmente pelo SWP americano, apesar de todos os seus problemas) é muito interessante. Quem falar inglês e quiser ter um visão geral do assunto, mais puxada pro maoísmo, veja esse livro, Black like Mao, que é bom demais.

Por agora, é isso, mas eu vou recuperar uma tradução dos Panteras Negras que eu fiz e a linha do tempo do Facebook levou, e vou postar aqui. Até mais.


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