O Christophe Darmangeat chamou atenção, no site dele, sobre dois textos que o Maxime Rodinson publicou em La Nouvelle Critique, que era a revista teórica do PCF nos anos 50. Eu gosto muito do Rodinson, que é o maior especialista em Islã no marxismo e que deu contribuições interessantes sobre a questão judaica, então traduzi esse texto.
ETNOGRAFIA E RELATIVISMO
Muitas vezes, não se compreende nossa obstinação em lutar contra ideologias, teses que parecem aparentemente inofensivas e, em todo caso, distantes da luta de classes prática, da luta pela independência nacional, pela paz e pela liberdade, que consideramos primordiais. Isso ocorre porque o caminho é muitas vezes longo, desde as ideias até suas consequências práticas, e poucos o percorrem em espírito até o fim. Pensamos que tal ideia leva logicamente à justificação de tal e tal atitude prejudicial. Aqueles que a professam provavelmente param no meio do caminho, um quarto ou oitavo do caminho; mas as ideias são inexoráveis...
É nisso que se pensa quando se lê o capítulo mais teórico do recente livro de Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos. Um capítulo curiosamente intitulado Um copinho de rum, mas que, no trecho do livro publicado em agosto por Les Temps modernes, foi mais apropriadamente chamado Um etnógrafo e sua escolha. Estas páginas parecem-nos, de fato, uma boa oportunidade para estudar e criticar, a partir de um exemplo concreto, o relativismo cultural, uma grande falha na etnografia burguesa contemporânea.
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As ideias de Lévi-Strauss baseiam-se na tese do caráter relativo das civilizações, ou culturas, como dizem. Nossos julgamentos sobre a inferioridade de outras culturas — essas reflexões de Lévi-Strauss vêm no final de um livro em que ele relata desorganizadamente as suas viagens e suas experiências, antes de tudo suas experiências como etnógrafo investigando várias tribos indígenas no Brasil — nossos julgamentos sobre essas culturas poderiam muito bem ser aplicados a nós por aqueles que participam delas. Tomemos, por exemplo, um costume que parece aos membros de nossa sociedade ser uma marca típica de selvageria: o canibalismo. Mas as sociedades que o praticam - para fins puramente alimentares (o que é raro) ou mágico-religiosos - ficariam chocadas da mesma maneira com a nossa maneira de isolar da sociedade em edifícios especiais os indivíduos que se mostraram prejudiciais para sua boa ordem. E assim por diante. Trata-se de um lugar comum, aliás generoso, cuja expressão que lhe foi dada por Montaigne, entre outros, foi indiscutivelmente progressista no seu tempo.
Uma das conclusões que Lévi-Strauss tira dessa ideia é que o etnógrafo, vendo de fora as sociedades estranhas à sua, é mais objetivo em relação a elas do que em relação à sua. E é seu privilégio entre nós transmitir para nossa sociedade a objetividade que adquiriu observando os outros. O que, novamente, não está totalmente errado. Mas veremos o que essa objetividade do etnógrafo frequentemente implica, que é errôneo. E considerar a participação na vida de uma sociedade como um obstáculo absoluto a uma atitude objetiva em relação a ela é cair no erro daqueles que recusam qualquer possibilidade de fazer o mesmo sobre a história contemporânea. De fato, há outra maneira que não a mudança etnográfica de lugar para adquirir uma visão objetiva de nossa sociedade, assim como há outra maneira que não o distanciamento no tempo para julgar objetivamente sua evolução: é a sua análise científica.
Se as culturas são para ele irremediavelmente relativas, é porque Lévi-Strauss, como a maioria dos etnógrafos contemporâneos, não tem nenhum critério que nos permita estabelecer a superioridade de uma sobre a outra. Ele considera o todo de uma civilização como um amálgama de elementos da civilização, ligados talvez por uma necessidade interna, mas entre os quais é impossível estabelecer uma hierarquia. Essa é a concepção que a etnografia americana, entre outras, tem das coisas. Tomemos uma obra padrão, o Dictionary of Sociology publicado por H.-P. Fairchild, uma obra que condensa e define sucintamente os conceitos mais comuns da ciência americana do homem social. Em culture trait, que se traduz como "elemento cultural", lemos: "Elemento cultural; a unidade funcional mais simples na qual uma cultura é dividida para análise”. E em culture complex: "Complexo cultural: nome de um grupo de elementos culturais geralmente ligados em torno de um elemento central e formando um todo interrelacionado (an interrelated whole); uma série de atividades em conexão com um elemento cultural central. Os elementos culturais são agrupados em padrões (patterns) chamados "complexos culturais". O complexo abrange todas as atividades relacionadas ao elemento central. Por exemplo, a indústria maquinista, a monogamia e o monoteísmo são complexos culturais na civilização ocidental. O complexo do arroz é muito típico da civilização de muitos povos orientais. Qualquer cultura ou civilização de qualquer grupo tomado como um todo é composta pela soma total dos complexos culturais que contém; mas, em conjunto, constituem uma configuração cultural definida ou Gestalt. Chamamos a soma total dos complexos culturais possuídos por um determinado povo de sua cultura" (1).
Os elementos e complexos culturais deram origem à enumeração e ao catálogo. Querem um exemplo disso? Vamos pegar um ao acaso. No decorrer de uma pesquisa clássica, E.-W. Gifford publica uma lista de 2.990 elementos presentes em todo ou em parte de uma série de tribos peles-vermelhas no sudoeste dos Estados Unidos (Arizona, Novo México) pertencentes aos grupos Pueblo, Apache Ocidental, Papago etc. Esses elementos, reunidos por grupos, são listados com um sinal indicando sua presença ou ausência em cada um dos grupos étnicos considerados. No capítulo sobre caça, subcapítulo "caça em comum":
112. Animal abatido: animal cortado em um recinto, etc.
113. De ramos.
114. Com um vestíbulo em torno.
115. Em um penhasco, um banco.
116. Em um poço.
117. Preso por um laço.
118. Por caçadores escondidos.
119. Com fogo.
120. Com cães.
121. Veado.
122. Antílope.
123. Queixada.
124. Búfalo.
Agora vamos escolher elementos aleatórios da tabela:
526. Semeadura pelo homem.
527. Semeadura por mulheres.
571. Tenda de pele com apenas 3 estacas como base.
920.Concha (natural) como recipiente.
1015. Fogo produzido ao bater em duas pedras.
1219. Estilingue.
1307. Sobrancelhas totalmente depiladas em ambos os sexos.
1459. Mocassins de sola dura.
1460. com 2 partes.
1461. com 3 partes.
2118. Jogos de cordas.
2245. Calendário do tipo descritivo.
2353. (Parto). O cordão umbilical é cortado com uma faca de pedra.
2501. Monogamia.
2502. Poliginia autorizada.
2503. Não muito difundida.
2504. Mulheres na mesma casa.
2505. Mulheres em casas separadas.
2506. As mulheres são irmãs (poliginia socoral).
2657. A terra arável é uma propriedade individual.
2658. Propriedade da família
2659. Propriedade do clã.
2803. Clãs matrilineares.
2804. Clãs patrilineares.
2824. Totemismo.
2984. Crença em monstros aquáticos.
Após esta longa lista e seus longos comentários (2) (uma contribuição muito interessante para a etnografia desta região e uma síntese dela, aliás), A.-L. Kroeher (um dos mestres do pensamento etnográfico de Cl. Lévi-Strauss, este último faz questão de proclamar) empreende uma análise estatística minuciosa com base nisso. Aprendemos que os Navajo Ocidentais e os Navajo Orientais têm 605 elementos em comum, que 198 estão presentes nos primeiros e não nos últimos, 202 nos últimos e não nos primeiros, enquanto 786 estão ausentes em ambos. O coeficiente (Q2) de semelhança é 845 (decimais omitidos) e a porcentagem (W) de semelhança é 77,7. Com base nisso, conclui-se, por exemplo, que os Navajo Ocidentais e Orientais diferem mais uns dos outros do que qualquer uma das cinco "tribos" Apache.
Tais cálculos são desconcertantes. Como não perceber a invalidade de tal raciocínio? É óbvio que a escolha dos elementos e a sua definição, a sua delimitação e as suas subdivisões são, em grande medida, arbitrárias, e que as estatísticas elaboradas sobre bases tão frágeis não significam absolutamente nada.
O que é ainda mais grave é que não se questiona a importância relativa desses elementos, nem sobre as conexões necessárias entre eles. Parece-nos que, se realmente quiséssemos investigar a relação entre a civilização Navajo Ocidental e a dos Navajo Orientais, seria necessário examinar os pontos cruciais dessas civilizações, os fenômenos mais importantes e compará-los, para ver se seu papel na sociedade nos permite admitir ou excluir uma origem comum ou um empréstimo. Kroeber e Gifford pensam seriamente que os 19 pontos de semelhança ou diferença obtidos pela comparação dos detalhes de um tipo de jogo de futebol (nºs 1912 a 1930) contam como 19/22 dos 22 pontos de semelhança ou diferença estabelecidos para a propriedade da terra (nºs 2656 a 2677)?
Mas Kroeber, Gifford, Lévi-Strauss e a grande massa de etnógrafos contemporâneos afirmam não ter um critério objetivo para determinar a importância relativa dos elementos culturais. A partir de então, eles são reduzidos a esse formalismo matemático manifestamente absurdo. Assim, recusando-se a fazer uma análise preliminar do mecanismo da sociedade capitalista, Simiand buscou através do estudo de correlações de todos os tipos as concomitâncias de flutuações de preços e salários.
Cada cultura é, portanto, caracterizada por uma lista de elementos culturais. Podemos, assim, fazer uma lista dos elementos culturais de nossa chamada civilização ocidental. Eu conhecimento de caça é muito fraco para me permitir uma comparação válida neste ponto com os Navajo Ocidentais. Mas eu sei que o estilingue é uma arma conhecida por nossos filhos (1 ponto de concordância), que a poliginia não é oficialmente autorizada (1 ponto de diferença), que não caçamos antílopes por caça dirigida, o que ainda é uma diferença (mas neste ponto concordamos com o Papago Huhula) mas, como entre eles, as casas são construídas entre nós por homens e não por mulheres, o que nos diferencia (e os Navajo) dos Tonto Apaches tanto no norte quanto no sul (n°" 2639-2640).
Por que isso acontece? O etnógrafo "moderno" não sabe nada sobre isso. Ele então invoca um princípio que se assemelha muito à virtude dormitiva de Molière, o princípio da seletividade ecoado por Cl. Lévi-Strauss da seguinte forma: "Estou convencido ... de que as sociedades humanas... nunca criam de forma absoluta, mas limitam-se a escolher certas combinações de um repertório ideal que seria possível reconstituir.”
Cada sociedade fez, portanto, uma escolha. E uma escolha (uma ou outra) vale tanto quanto a outra. O que permite afirmar, além de nosso orgulho, que o belote é melhor do que os jogos de corda, que nosso sistema de parentesco é superior ao dos clãs matrilineares, que os homens de nosso país são mais bonitos por não arrancarem as sobrancelhas? É verdade que a metralhadora é, sem dúvida, muito mais eficaz do que o bumerangue, mas responde-se que o bumerangue é um instrumento muito notável (o que é verdade), que sua invenção exigiu a manifestação de um certo gênio (isso também é verdade) e que não há razão para se gabar de invenções assassinas (seríamos imprudentes por contestar isso, mas essas invenções estão intimamente ligadas a outras das quais certamente podemos nos orgulhar).
É sobretudo do ponto de vista moral que Lévi-Strauss se coloca, deslizando sub-repticiamente do moral para o geral. Moralmente, não nos é permitido censurar as chamadas sociedades primitivas pelos seus chamados costumes bárbaros, pois estamos sujeitos a ser condenados da mesma forma por elas por alguns de nossos costumes. Isso é verdade, e condena uma moral absoluta, situada entre o céu e a terra, segundo a qual tudo o que não se conforma a uma norma dita ideal, supostamente independente das condições sociais, seria julgado e condenado. Mas não podemos concluir disso: "Deve-se admitir que, no leque de possibilidades abertas às sociedades humanas, cada uma fez uma certa escolha, e que essas escolhas são incomparáveis entre si: são iguais". Pois não é mais uma questão de costumes a serem julgados moralmente, mas também de técnicas, de fatos organizacionais, de formas de consciência que constituem uma sociedade que podemos classificar, digam o que digam etnógrafos e sociólogos não marxistas, em um determinado nível de uma classificação histórica objetivamente justificada.
E, depois de ter generalizado, Lévi-Strauss recai na moralidade de uma forma extremamente perigosa: “Nenhuma sociedade é perfeita... Nenhuma sociedade é fundamentalmente boa; mas nenhuma delas é absolutamente ruim; todas elas oferecem certas vantagens aos seus membros, tendo em conta um resíduo de iniquidade cuja importância parece ser aproximadamente constante e que talvez corresponda a uma inércia específica que, no plano da vida social, se opõe aos esforços de organização.”
É esquematizante traduzir dessa maneira: todas as culturas são iguais e a uma não se pode atribuir qualquer superioridade sobre a outra; mas as sociedades que conhecemos geralmente escondem a iniquidade; então todas as sociedades possíveis têm a mesma quantidade de iniquidade. Para tomar emprestada uma expressão de J.-P. Sartre, isso não é suficiente para "desesperar Billancourt"?
Mas vamos continuar. Ao contrário de muitos etnógrafos contemporâneos, Lévi-Strauss parece estar procurando tirar lições válidas sobre o futuro da humanidade a partir da etnografia. Ele será acusado de manchar a pureza da ciência; por nossa parte, felicitá-lo-emos por isso. Mas quais são essas lições?
O estudo das chamadas sociedades primitivas nos ajudará a nos separar de nossa sociedade. Então, poderemos nos aproximar da segunda etapa: "que consiste, sem reter nada de nenhuma sociedade, em usá-las todos para identificar aqueles princípios da vida social que nos será possível aplicar na reforma de nossa própria moral". Inspirar-nos-emos, assim, num "modelo teórico", construído com a ajuda do estudo destas sociedades e "que não corresponde a nenhuma realidade observável, mas com a ajuda do qual conseguiremos desembaraçar", nas palavras de Rousseau, "o que há de original e de artificial na natureza presente do homem e conhecer bem um estado que já não existe, que talvez não existisse, que provavelmente nunca existirá, e do qual, no entanto, é necessário ter noções corretas para julgar bem nosso estado atual.”
"Ao colocar o modelo em que nos inspiramos fora do tempo e do espaço, certamente corremos o risco de subestimar a realidade do progresso", conclui Lévi-Strauss. “Nossa posição equivale a dizer que os homens sempre e em toda parte assumiram a mesma tarefa, atribuindo-se o mesmo objetivo, e que, no curso de seu devir, apenas os meios diferiram.” Essa atitude não o preocupava, porque "parece ser a melhor, de acordo com os fatos que nos foram revelados pela história e pela etnografia". E termina com um fragmento que me parece, admito, bastante enigmático em alguns lugares, mas cujo tema central, logicamente decorrente da apresentação anterior, é que tudo é possível. Se "por milênios, o homem só conseguiu se repetir", o resultado é que "nada está decidido; podemos retomar tudo; o que foi feito e perdido pode ser feito novamente." Pode soar como palavras de esperança. Infelizmente, este não é o caso.
De fato, se cada sociedade fizer a sua escolha entre a infinidade de elementos culturais possíveis, e se essa escolha não for imposta por nenhuma lei, se for uma questão de calcular probabilidades como a roleta (é o que Lévi-Strauss argumentou em outro lugar [3]), a escolha de amanhã será, sem dúvida, de fato, inesperada, surpreendente, talvez desesperadora e talvez saborosa. Por que o etnógrafo, contador dos elementos culturais de uma imensa variedade de culturas, não interviria (mas como?) para sugerir, pelo menos, uma bela constelação de elementos particularmente interessantes que ele notou no curso de seus estudos? Assim, a construção da sociedade futura torna-se um jogo de azar ou, na falta disso, a especulação de um etnógrafo, a escolha de um especialista a partir da vasta reserva de possibilidades, a alternativa alucinatória de um conto de Borges. As forças vivas da sociedade em que vivemos desaparecem. Proletários e capitalistas, pequenos burgueses e camponeses voltam a entrar nas sombras quando esse demiurgo, o etnógrafo, aparece. As intrigas dos poderosos, os esforços obstinados das massas sofredoras, tudo isso volta a ser nada quando a roleta da história traz à tona (talvez influenciada pelo Connoisseur) os números premiados dos elementos culturais que imporão sua configuração à sociedade de amanhã.
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Essas ideias, de que Cl. Lévi-Strauss, como já indicamos, não é o único proponente, ele soube expressá-las de maneira engenhosa e original, e correspondem, em sua maior parte, a toda uma corrente de pensamento que domina a etnografia contemporânea. Etnógrafos e especialistas em áreas afins tendem a considerar que essa corrente de pensamento corresponde aos dados mais recentes da ciência, que foi imposta pela pressão de fatos mais conhecidos do que na época de seus antecessores. Essa interpretação é uma ilusão. Essa corrente corresponde de perto a uma corrente mais geral, estendendo-se a todas as ciências humanas. Não tem origens científicas - os fatos etnográficos recentemente descobertos estão todos abertos à interpretação de uma perspectiva completamente diferente - tem uma origem filosófica. E essa filosofia tem uma origem política.
Por que a ideia de progresso e evolução foi abandonada? Porque os fatos recém-conhecidos o contradiziam? Não. Já no século XIX, os fatos eram conhecidos de forma bastante análoga àqueles que agora se alega negá-lo. E agora, nenhum fato novo impõe seu abandono.
Enquanto a burguesia estava conquistando, ascendente, enquanto estendia seu império sobre o mundo por suas conquistas coloniais, enquanto a terra estava cheia de promessas de novos mercados para ela, enquanto o proletariado não era para ela uma ameaça séria, enquanto ainda tinha inimigos de "direita" para combater, vestígios das classes feudais destronadas, ela acreditava no progresso, que a favorecia. Quando o planeta foi conquistado, quando o movimento pelo socialismo assumiu dimensões consideráveis e logo triunfou em um sexto das terras do mundo, quando a Primeira Guerra Mundial abalou os alicerces da sociedade burguesa e a crise geral do capitalismo mostrou a permanência de sua decrepitude dali em diante, quando, diante do perigo comum, os últimos remanescentes das classes despossuídas por ela se uniram à burguesia, esta última deu as costas à ideia de progresso, que agora a ameaçava, pois era claro que nenhum progresso era possível dentro do quadro da ordem burguesa. Então surgiram os profetas do desespero, os corifeus do pessimismo. Isso foi rastreado muitas vezes.
Isso não foi feito em um dia, mas em etapas. Um marco importante foi 1890. Em 1889, duas obras tiveram muito sucesso na França, Le Disciple de Bourget, um romance anticientífico, e Os Dados Imediatos da Consciência, o primeiro livro de Bergson, um manifesto antimaterialista. Em 1892, Leão XIII pregou a união dos católicos franceses à República burguesa. No início do século XX, o extraordinário desenvolvimento das ciências naturais, levando à renovação completa de seus conceitos fundamentais, deu a oportunidade de proclamar sua falta de valor absoluto, a "falência da ciência". É a época da reação idealista na Inglaterra, do pragmatismo americano, do vitalismo alemão, do empiriocriticismo.
É uma coincidência que tenha sido em 1905 que Grabner e Ankermann publicaram seus famosos artigos, Kulturkreise und Kulturschichten in Ozeanien (Círculos Culturais e Estratos Culturais na Oceania), Kulturkreise und Kulturschichten in Afrika (4)? A chamada escola histórico-cultural alemã, logo retomada pelo reverendo padre W. Schmidt para fins de apologética católica, levanta-se, é verdade, apenas, em princípio, contra o evolucionismo, que chama de "unilinear". De fato, ainda mal desvinculados de seus antecessores, os principais proponentes da escola, seguindo Schmidt e Koppers, pressupõem uma evolução, análoga no plano técnico, inversa no plano ideológico, daquela assumida antes deles, mas ainda é uma evolução histórica. Só o fato de que ela renunciou à admissão de desenvolvimentos paralelos em condições sociais semelhantes, que qualquer "elemento cultural" análogo nas civilizações, mesmo as muito distantes, deve, segundo ela, ser explicado pelo empréstimo, que esses "elementos culturais" foram finalmente tratados por ela como átomos de civilização independentes uns dos outros e "errantes", tudo isso preparou para renúncias ainda mais sérias e, além disso, tornou a história inexplicável.
Foi mais ou menos na mesma época que Franz Boas deu início à moderna escola etnológica americana. Ele também rejeitou o evolucionismo clássico e tendeu ao difusionismo, em uma extensão mais limitada e em forma incomparavelmente menos rígida do que os alemães. Mas, fundamentalmente, a orientação era a mesma.
É necessário estudar mais de perto a evolução dos conceitos etnográficos, para mostrar a sucessão de escolas e teóricos, a maneira como eles orientaram a pesquisa "no campo" mais do que a pesquisa os influenciou. Seria fácil mostrar a ligação entre essa evolução e a da ideologia euroamericana (mas isso seria assunto de um longo livro).
Na França, a influência decisiva foi exercida por Marcel Mauss, que foi o mestre da geração de etnógrafos atualmente em vigor. Sobrinho, discípulo e colaborador de Durkheim, que se mantivera fiel a um pensamento evolucionista (com uma concepção eminentemente criticável da evolução social, aliás), Mauss tinha um pensamento muito mais matizado e, em certos pontos, muito mais apurado do que Durkheim. Mas esse velho socialista, que recusou o marxismo, permaneceu prisioneiro de certos dogmas do pensamento burguês contemporâneo. Além disso, ele concebeu seu curso como uma preparação prática para o "trabalho de campo" de investigadores destinados a operar nas colônias francesas. Ele, portanto, lhes descreveu os fatos que eles deveriam esperar encontrar em suas pesquisas, sem querer estabelecer entre eles uma ordem de sucessão histórica, com algumas exceções (5). Seus alunos mais originais tentaram sínteses sofríveis com a ideologia da escola americana ou com várias tendências filosóficas, fenomenologia ou bergsonismo, por exemplo, não sem incoerência às vezes.
O gosto artístico pelas artes primitivas, o esnobismo da etnografia (6), o ensino de Mauss, a influência das escolas americanas e alemãs, tudo isso formou um meio ideológico para o qual também convergiram as tendências anticolonialistas de certos intelectuais honestos atraídos por essa ciência jovem ou pelo menos rejuvenescida. Ideias honestas e justas, esnobismo, a influência de ideologias reacionárias, tudo contribuiu para a rejeição (com razão) da ideia de uma supremacia moral europeia, bem como (falsamente) da ideia de superioridade da estrutura da sociedade capitalista. Tudo isso contribuiu para a falsa oposição da etnografia à história, para colocar no mesmo plano todas as culturas e de todos os fenômenos culturais, para a preferência por exaltar os aspectos mais primitivos dos fatos sociais. Eis aqui algumas linhas de um representante típico desse meio, aluno de Mauss, agora professor na Sorbonne e conselheiro da União Francesa M.R.P.: "Lembro-me de uma conversa que tive há alguns anos com um personagem importante. Eu havia explicado a ele em detalhes o que pretendíamos fazer em termos de prospecções etnográficas, linguísticas, entre outras, em uma população do Sudão Francês. Ele parecia ter um grande interesse por essas coisas. Ele até fez perguntas pertinentes [...]
"Isso é tudo muito bom", disse meu interlocutor, "mas a história! O que você acha da história? Esse povo tem uma história? Você não fala sobre isso!
Ele tinha essa palavra da história como uma panqueca na boca [...]
No final [...], ele queria apenas termos gerais: saltos, reformas, conquistas rápidas, influências, períodos, a degradação de uma classe dominante, papéis políticos, o caráter frio e tenaz do monarca. Aspirava veementemente à construção de uma história no absoluto, cheia de exércitos teóricos, batalhas claras com cavaleiros anônimos, sacudindo as fronteiras dos reinos, minando regimes, conquistadores letrados cortando as cabeças dos rivais [...]
Não me atrevi a dizer a este pobre homem que todas essas grandes ideias, todas essas invasões, todas essas dinastias, todos esses movimentos de cavalaria, eu os teria dado de bom grado por uma cilha” (7).
Desta nebulosa, duas correntes emergiram. Como em outros lugares, há aqueles que, sinceramente, acreditaram no que disseram, acreditaram nas virtudes do primitivo, pensaram que, logicamente, era necessário defender aqueles de que exaltavam as proezas, que honestamente se questionaram sobre os deveres criados para eles em relação aos povos coloniais por sua profissão como etnógrafos. Encontramos seus nomes abaixo dos manifestos anticolonialistas, os vemos se manifestando para exigir o perdão de colonos injustamente condenados, os vemos apoiando os movimentos de libertação dos povos escravizados. ... E, depois, há aqueles que são à imagem deste conselheiro do MRP da União Francesa.
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Não é impossível fazer os primeiros refletirem sobre as antinomias de sua ciência.
Agora estamos falando apenas de cultura. "A ideia de cultura, no sentido etnográfico técnico, é uma das noções-chave do pensamento americano contemporâneo", escrevem dois ilustres etnógrafos americanos. “No que diz respeito à importância explicativa e à generalidade da aplicação, é comparável a categorias como gravidade na física, doença na medicina, revolução na biologia” (8).
As mesmas pessoas citam como "corretas" as afirmações dos editores da Encyclopaedia of Social Sciences: "A principal posição teórica positiva das primeiras décadas do século XX foi a glorificação da cultura. Esta palavra apareceu mais importante do que qualquer outra nos escritos e na consciência dos etnógrafos. Elementos culturais, complexos culturais, tipos culturais, centros culturais, áreas culturais, círculos culturais, modelos culturais, migrações culturais, convergências culturais, difusão cultural — esses segmentos e suas variantes indicam uma tentativa de apreender com rigor um conceito elusivo e fluido e, incidentalmente, sugerem a riqueza de tal conceito. O interesse estava voltado para o nascimento da cultura, seu crescimento e suas migrações e contatos, seus cruzamentos e fertilizações, sua maturidade e seu declínio. Em um grau diretamente proporcional ao seu desejo ansioso de se libertar da tradição clássica, os etnógrafos tornaram-se os anatomistas e biógrafos da cultura" (9).
Por que esse reinado da ideia de cultura? A causa parece clara. Essa ideia separa o homem de suas obras e as coloca todas no mesmo nível. A ideia de sociedade à qual os etnógrafos da geração anterior estavam ligados e da qual os etnógrafos franceses ainda não podem se livrar absolutamente por causa de sua tradição durkeimiana, apesar de todas as distorções que ela poderia cobrir, tendia a sugerir a ideia de que a organização social desempenhava um papel decisivo na vida social. A ideia de cultura, como vimos, coloca todos os elementos desta, incluindo a organização social, no mesmo nível e, portanto, sugere agnosticismo quanto aos diferentes papeis desses elementos. Aqueles que ainda têm uma cabeça teórica entre os etnógrafos tentam lidar com o dilema: sociedade e cultura, cultura e homem. Herskovits, por exemplo, protestou contra a ideia de uma cultura independente do homem. Ele acaba admitindo que a cultura é o conjunto de experiências dos indivíduos de um grupo (10). Mas quem não vê que essa definição também separa o homem de suas obras? A sociedade é, ela própria, o conjunto de indivíduos em um grupo com suas experiências. O homem social, o homem total, está incluído nela com as suas obras, entre as quais a estrutura social desempenha um papel eminente (11).
Se todas as sociedades diferem apenas na escolha que fazem entre elementos culturais equivalentes, as sociedades devem ser todas colocadas no mesmo nível. Vimos como Lévi-Strauss apoiou essa ideia. Citemos também Herskovits: "A diferença entre sociedades não letradas [um novo termo introduzido para evitar o termo "primitivo" que se tornou tabu por causa de suas implicações evolucionistas. — M. R.] é da mesma ordem que a diferença entre qualquer uma delas e a nossa. Também deve ser enfatizado que - exceto que alguns povos não têm escrita e têm economias baseadas no artesanato e não na maquinaria - as diferenças entre todas as sociedades são relativas” (12).
A restrição, modestamente colocada entre travessões, é significativa! E é isso que sai da pena de um etnógrafo americano, simplesmente atualizando seus leitores com o que é considerado como dados adquiridos da ciência, no início de um livro especializado: "Muitos dos povos estudados pelos etnógrafos são 'pré-letrados'. Essas sociedades são geralmente chamadas de "primitivas", mas o termo é muito pobremente [poorly] escolhido. Eles não são exemplos anacrônicos de como seria nossa própria sociedade há milhares ou centenas de milhares de anos. Pelo contrário, eles são tão "evoluídos" quanto os povos europeus. A evolução cultural tomou direções diferentes em diferentes sociedades. Em vez de se especializar na técnica e em outras armadilhas do que gostamos de chamar de "civilização", a maioria dos povos pré-letrados elaborou outros aspectos da cultura. Os Aranda da Austrália, por exemplo, têm uma técnica extremamente rudimentar. Mas seu sistema de parentesco é tão elaborado e complicado que está além da compreensão de qualquer europeu ou americano, exceto etnógrafos experientes" (13).
A igualdade das culturas entre si implica logicamente a rejeição da evolução. Portanto, quem sabe o que sucederá nossa sociedade baseada em tecnologia? Talvez uma sociedade que, mais uma vez, atribua um valor especial à religião. E cujas condições sociais serão imprevisivelmente diferentes. Por que não voltamos à escravidão? É apenas um elemento cultural como qualquer outro. Todos os jogos são possíveis. Isso é o que nossos etnógrafos modernos dizem quando consentem em pensar no futuro.
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A etnografia é uma ciência significativa. Descrevendo sociedades de tipo arcaico, ela pode tornar possível identificar leis importantes para a ciência geral do homem social. Mas para que isso aconteça, ela deve renunciar aos mitos grosseiros impostos pela ideologia burguesa.
A cultura não deve ser separada da sociedade. A cultura é uma criação contínua da sociedade. Os elementos culturais, se se quer chamá-los assim, têm papeis diferentes na sociedade. Entre os Navajo, o fato de não se depilar as sobrancelhas não é tão importante quanto o fato de que a terra cultivada é de propriedade familiar. Entre nós, o fato de os homens usarem calças não é da mesma ordem que o fato de os instrumentos de produção serem propriedade privada. Entre os soviéticos, o fato de se beber chá preparado no samovar desempenha um papel completamente diferente da propriedade coletiva dos mesmos instrumentos de produção. Propomos uma distinção entre essas categorias de fatos de acordo com seu papel social. Nós as chamamos, de acordo com esse papel, de forças produtivas, relações de produção, base, superestrutura.
“Até agora”, Lenin escreveu já em 1894, “os sociólogos [e a etnografia é parte do que Lênin, na época, chamou de sociologia — M. R.] tiveram dificuldade em distinguir, na complexa rede de fenômenos sociais, os que eram importantes e os que não eram [...]; para essa distinção, eles não conseguiram encontrar um critério objetivo. O materialismo forneceu um critério perfeitamente objetivo, ao identificar as 'relações de produção' como a estrutura da sociedade” (14).
Desde já, podemos dizer com certeza que os Aranda têm uma estrutura social que os classifica no mesmo nível, no mesmo estágio (15), que nossos ancestrais paleolíticos europeus, mesmo que seu sistema de parentesco seja mais inteligente que o nosso e que eles tenham tantas gerações atrás deles quanto nós (16). Podemos dizer com certeza (como Mauss também disse, com alguma inconsistência) que as sociedades da África negra na época da conquista europeia estavam, do ponto de vista da estrutura social, no mesmo estágio que os celtas e os germânicos. Isso não quer dizer, como expliquei suficientemente em um artigo anterior, que os negros da África fossem de alguma forma inferiores em qualidade humana aos europeus da era vitoriana. E isso explica muitos dos fatos que impressionaram os etnógrafos clássicos, os fundadores da ciência, os da época evolucionista. Os próprios fatos que os provocaram a fundar essa ciência. Fatos que permanecem inexplicáveis da perspectiva de nossos etnógrafos modernos.
Se dissermos que existe uma hierarquia real entre as sociedades e que, por exemplo, a sociedade capitalista é superior às sociedades pré-capitalistas, isso não é de forma alguma uma afirmação racista do valor eminente da raça branca, não é fruto de complacência narcisística, nem é um julgamento subjetivo inspirado pelo orgulho. Não é uma negação do "valor humano" das raças que participaram dessas sociedades pré-capitalistas (nossos ancestrais, entre outros!) e de sua cultura. Não é uma crença ingênua (é, em suma, a isso que Lévi-Strauss implicitamente a reduz) na bondade de nossos costumes e uma marca de selvageria aplicada à dos outros. Além disso, não somos suspeitos de querer esconder os defeitos da sociedade capitalista e exaltar os costumes que ela pratica!
Baseamos nosso julgamento em critérios objetivos: as condições de funcionamento econômico da sociedade capitalista impõem um desenvolvimento técnico-científico incomparável, nunca antes visto. Em O Capital, Marx mostrou com a maior precisão o mecanismo desse processo. Já em 1848, com Engels, em magníficas páginas, ele descreveu seus efeitos: "A burguesia, no curso de seu domínio de classe de um pouco mais de um século, criou forças produtivas mais numerosas e mais colossais do que todas as gerações passadas juntas. A colocação sob o jugo das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, as ferrovias, os telégrafos elétricos, o arroteamento de continentes inteiros, a navegabilidade de rios, populações inteiras arrancadas do solo - que século anterior teria suspeitado que tais forças produtivas estavam dormindo no seio do trabalho social?... Foi ela a primeira a mostrar do que a atividade humana é capaz: criaram maravilhas bem diferentes das pirâmides do Egito, dos aquedutos romanos, das catedrais góticas; ela realizou expedições bem diferentes de invasões e cruzadas...” (17)
Devemos continuar esta citação? Quem pode contestar esses fatos? São opiniões subjetivistas? fantasmas de orgulho racial?
O etnógrafo relativista pode muito bem dizer com Lévi-Strauss: “Um africano, indiano ou oceânico estaria tão justificado em julgar severamente a ignorância da maioria de nós em matéria de genealogia quanto estamos em sua ignorância das leis da hereditariedade ou do princípio de Arquimedes." (18). Deixe-o julgar! Ele já foi julgado. Não por nós, mas pela história: o manejamento das leis da hereditariedade e do princípio de Arquimedes criou um mundo que ultrapassou objetivamente o seu. E ultrapassou em um sentido triplo: ultrapassou porque está inscrito na história da humanidade como uma etapa social subsequente de uma evolução irreversível. Ultrapassou porque este estágio (hoje e aqui capitalista) aumentou as possibilidades humanas do homem, essencialmente através da distância que ele conquistou em relação às forças constrangedoras da natureza, e pela ciência que ele adquiriu para dominá-las em grande medida. Finalmente, ultrapassou porque, a menos que interrompamos a evolução no atual estágio (capitalista) da Europa Ocidental, ele mesmo coloca, pela primeira vez desde o aparecimento das classes antes do alvorecer da história, a questão não mais da substituição de uma classe opressora por outra, mas da abolição de todas as classes opressoras, da abolição do próprio fato da opressão: a burguesia produz, como seu próprio coveiro, o proletariado; ora, o proletariado, se ele destrói o velho sistema de produção, "destrói, ao mesmo tempo que este sistema de produção, as condições do antagonismo de classe, destrói as classes em geral e, da mesma forma, sua própria dominação como classe. No lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classe, surge uma associação de que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos" (19). O livre desenvolvimento de cada um como condição para o livre desenvolvimento de todos foi característico da pré-história da humanidade? Portanto, sim ou não, não é esta uma perspectiva de progresso, e do maior progresso?
O etnógrafo pode muito bem se entregar à nostalgia de Rousseau pelo período neolítico. Nós entendemos: uma sociedade sem classes (20) ... ele sonha com isso, nós aspiramos a isso. Refugiemo-nos até no Paleolítico, onde as relações entre os homens eram de livre colaboração. Um Semang da Malásia que leva esta vida poderia muito bem ter dito ao Rev. Fr. Schebesta: "Sim, a vida dos Urang Utan ( = homens da floresta) é dura; mas é uma vida!” (21) Poderíamos nos deter indefinidamente nas vantagens e desvantagens desse modo de existência, sua miséria material e espiritual, a dominação do homem pela natureza e por sua representação da natureza, a alegria de trabalhar em comum. Para quê? Não foi nem Marx, nem Lenin, nem o marxista de hoje que pronunciaram a dissolução dessa sociedade em grande parte do globo, foram as forças sociais que carregou dentro de si, as relações de produção que criou e que a destruíram, que comprometeram a humanidade aos caminhos cruéis, mas progressistas, da sociedade de classes. Só hoje podemos retornar à era de uma sociedade sem classes, mas sem a miséria, sobre as bases que ela estabeleceu. Em abundância material e lucidez espiritual. "Sim, a vida dos homens é doce, e é uma vida!" pode ser respondido ao homem da floresta.
Isso implica uma consequência. Que as sociedades que agora estão atrasadas, na fase pré-capitalista, não encontrarão a felicidade sendo mantidas à força lá. Que é mantê-las em uma posição de inferioridade. Que este seja o objetivo, muitas vezes consciente, de todos aqueles que se declaram cheios de amor incomensurável por certas populações coloniais e querem mantê-las no quadro de suas instituições tradicionais, justificando assim a repressão contra os "evoluídos" que querem falar com eles sobre liberdade, independência, uma vida mais rica em contato com o ímpeto para o futuro das forças vivas do vasto mundo. E, além disso, o socialismo construído ou em construção em grande parte do globo pode lhes permitir que (como foi o caso das populações atrasadas da Sibéria) pulem as etapas, tenham acesso imediato a uma vida livre, materialmente feliz e espiritualmente lúcida, sem passar pelos milênios de sofrimento por que outros tiveram que passar.
*
Desde então, a etnografia deixou de ser uma ciência estática e descritiva, uma série de quadros de "grandes países silenciosos". Tornou-se uma com a história mais antiga da humanidade! Ela nos mostra o lento progresso do homem a partir da animalidade, um progresso pago por mil misérias, mil atrocidades, mil calamidades, mas um progresso mesmo assim. Ela nos mostra atravessando essa lenta pré-história técnica pela qual nossos neo-rousseaunistas suspiram nostalgicamente e em vão, aquela época em que "a almofada de seus sonhos", como diz Lévi-Strauss, e mesmo, mais realmente, o fato da livre colaboração no trabalho comum, estavam longe de compensar a indizível miséria material do homem e sua dependência da natureza. Depois, há essa horrível pré-história social dos dez mil anos passados sob o domínio de classe, o regime de terror das minorias exploradoras, desde os tiranos desconhecidos do Neolítico até Assurbanipal e Hitler. Em seguida, a história humana, que finalmente começa com o socialismo, com Marx, com outubro de 1917. A etnografia nos mostra os fatores que levaram a essa evolução, a lenta progressão das forças produtivas da humanidade, a formação de classes sob a pressão dessas forças, a ação dessas classes em luta, uma para manter sua dominação, a outra para sacudir o seu jugo.
Portanto, sabemos que a sociedade do futuro não tirará sua configuração da roleta. Os elementos culturais que lhe conferem sua figura inimitável corresponderão à sua estrutura social. Esta será formada sobre a base oferecida pela estrutura social anterior, a estrutura capitalista, pela ação das forças vivas, humanas e ativas que ela contém. Essas forças que chamamos à ação. Essas forças já triunfaram para quase metade da humanidade. Essas forças que estão borbulhando dentro de Billancourt...
(1) Dicticionary of Sociology, editado por HP Fairchild, Nova York, Philosophical Library, 1944, pp. 82-3
(2) E.W. Gifford, Culture element distributions: XII. Apache-Pueblo, Berkeley, Univ. of Califórnia Press, 1940 (Anthropological Records, 4, 1). Veja as considerações sobre o número desses elementos culturais por M. J. Herekovits, Man and his Works, Nova York, 1949, pp. 172-174; trad. Les bases de l'anthropologie culturelle, Paris, Payot, 1952, p. 95-97.
(3) Cf. M. Rodinson, "Racisme et civilisation", Nouvelle Critique, n®. 66, junho de 1955, pp. 120-140.
(4) Zeitschrift für Ethnologie, 1905, pp. 28 e segs.
(5) Em seu Manuel d'ethnographie (Paris, Payot, 1947) - na verdade, seu curso publicado com base nas anotações dos alunos - notamos algumas frases características: "Todas as sociedades das colônias francesas são sociedades baseadas em órgãos familiares, político-domésticos" (p. 124); "encontrar-se-á nas sociedades das colônias francesas quase todas as formas possíveis de organização político-doméstica, muitas vezes muito misturadas" (p. 126), etc. Ele se enfurece contra a noção de "primitivo" (p. 166), mas ele mesmo a usa em outros lugares (pp. 326, 135, por exemplo).
(6) Um fator (derivado, mas importante) desempenhou um grande papel na formação das ideias da escola francesa: o esnobismo etnográfico. Preparado pela moda das artes primitivas, foi desenvolvido conscientemente por volta da década de 1930 com o louvável objetivo de obter créditos importantes para a etnografia. Foi graças à corrente de opinião criada por esse esnobismo (pelo menos parcialmente) que Paul Rivet obteve a transformação do antigo Museu de Etnografia do Trocadero, um infame bric-a-brac cujas riquezas se acumulavam desordenadamente sob a poeira, no Musée de l'Homme, o museu mais moderno, mais animado e mais bem projetado da França na época. Em 1931, a Missão Dakar-Djibuti foi financiada por uma gala de boxe no Cirque d'Hiver com Al Brown. Nas aulas de etnografia, víamos uma “elite" feminina com roupas de arrepiar os cabelos que estávamos mais acostumados a encontrar em lugares mais mundanos...
(7) Marcel Griaule, Les Sao légendaires, Paris, Gallimard, 1943, p. 52-63. Outra passagem do mesmo livro (escrita na época de Stalingrado!): "Falo, é claro, das humanidades de outra época e dos poucos remanescentes afortunados que, em nossos séculos de mecanismo, brutalidade e progressiva insensibilização dos instintos, foram preservados do início da decomposição” (p. 149).
(8) A.L. Kroeber e C. Kluckhohn, Culture, a critical review of concepts and definitions, Cambridge, Mass., 1952. (Papers of the Peabody Museum of American Archeology and Ethnology, Harvard University, vol. XLVII, nº 1, p. 3).
(9) Encyclopaedia of Social Sciences, Nova York e Londres, 1930-1935, vol. I, p. 202, citado por Kroeber e Kluckhohn, ibid., p. 4.
(10) M. J. Herskovits, Man and his works, pp. 27-30; Les bases p. 18-21.
(11) Entre todas as suas implicações nefastas, deve-se enfatizar que o conceito de cultura separa abruptamente o homem do animal, a cultura da natureza, para usar uma famosa oposição na literatura etnográfica e sociológica anglo-saxônica. Não vemos como o animal poderia ter se tornado homem. Isso fez com que muita tinta fosse derramada, e nem sempre da melhor. Mas se não há cultura animal, existem sociedades animais. Podemos ver um caminho de evolução com a aquisição, por uma sociedade em transição para a humanidade, da ferramenta, elemento cultural decisivo que tira definitivamente o homem da animalidade.
(12) Man and his works, p. 428-9 (parte do livro não traduzida para o francês).
(13) C.S. Ford e F.A. Bach, Patterns of sexual behavior, New York, Harper and P.B. Hoeper, 1951, p. 6.
(14) Quem são os "amigos do povo?", em Obras Escolhidas, Volume I, Moscou, 1946, p. 92.
(15) O que o pré-historiador marxistizante inglês V. Gordon Childe chama de estágio homotaxial. Veja o relatório (no prelo) do colóquio de La Pensée sobre A origem da família, de Engels.
(16) Isso é uma resposta a um paralogismo frequente. Por exemplo: "Os australianos são tão velhos quanto os europeus em relação ao pitecantropo, todos os homens vivos são tão velhos quanto os outros. Portanto, não procure o primitivo.” (Mauss, Cours ..., p. 166).
(17) K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, edição de Centenário, C.D.L.P. 1948, p. 31-33.
(18) Lévi-Strauss, Race et histoire, Paris, U.N.E.S.C.O., 1952, p. 40.
(19) Manifesto Comunista, p. 49.
(20) Ainda nos tempos neolíticos, as condições e sementes da formação de classes já tinham aparecido.
(21) P. Schebesta, Les Pygmées, Paris, Gallimard, 1940, p. 7.
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