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"Radical Enlightenment", do Jonathan Israel

 

Eu tinha conseguido um PDF desse livro (tem uma edição antiga em português, mas eu nunca vi), mas só agora eu parei pra ler. É um livro que o Kenan Malik recomenda muito, e que tem a ver com as minhas leituras sobre a questão do iluminismo.

Não é fácil de ler. São mais de setecentas páginas, numa linguagem que eu achei rebuscada até pra esse tipo de obra acadêmica, com citações em inglês e francês do século XVII e trechos bem longos sobre dezenas de figuras históricas que hoje são quase desconhecidas. Tinha hora que dava vontade de desistir, mas valeu a pena. 

O Jonathan Israel é um historiador dos Países Baixos no século de ouro, e tem três teses principais: primeiro, que o florescimento do iluminismo a partir do meio do século XVIII foi o resultado de um processo longo, que começou aproximadamente em 1650, com o surgimento da "Nova Filosofia" cartesiana. Depois, que esse foi um processo internacional (rejeitando as concepções de centralidade francesa, britânica, e a de que houve vários iluminismos regionais). E, talvez a mais polêmica, pra ele o motor desse processo foi a ala radical do iluminismo, que basicamente é o movimento ao redor do Spinoza. As duas primeiras, tudo bem, mas a terceira, pelo menos pra mim, me pareceu tão tendenciosa que, lá na segunda parte, eu continuei a ler o livro como se fosse uma história do espinosismo.

Não quer dizer que o livro não é bom. É muito informativo, você tem que ir lendo com calma. 

Na primeira parte, ele faz uma contextualização do período histórico, colocando informações sobre como eram as universidades, como surgiram as revistas e sociedades acadêmicas, as bibliotecas, o papel da censura (tanto da Inquisição como dos governos) e as mudanças no papel das mulheres (que ele acaba não explorando muito depois).

O Galileu começou a anunciar as descobertas dele com o telescópio em 1610 e morreu em 1642, depois de um conflito longo com a Inquisição. Nesse período, ele fez a revolução que criou as ciências modernas, com a matematização (que, pra ele, era justificada por uma visão platônica). É daí que o Descartes começa (o Discurso sobre o Método é de 1637). A partir da expansão do cartesianismo é que começa a luta contra a filosofia oficial da igreja católica e, naquele momento, também das igrejas protestantes luterana, calvinista e anglicana, a escolástica. Esse é o período que ele chama de early enlightenment (1650-1750). 

Uma parte dos escolásticos vê no cartesianismo o ponto de partida pra rejeição da religião - se, por um lado, a separação da natureza em duas substâncias, a matéria e o pensamento, permitia manter um mundo espiritual, não permitia nem a ação desses seres espirituais sobre a matéria nem a fundamentação dos dogmas do cristianismo.

 

Hirszenberg, Spinoza Excomungado, 1907
Hirszenberg, Spinoza Excomungado, 1907


Aí, na segunda parte, ele vai contar em detalhes o surgimento do espinosismo e as primeiras posições deles. Confesso que não gosto muito da forma que ele apresentou a filosofia do Spinoza, mas hoje é a leitura mais comum de que ele era um ateu que usava uma linguagem religiosa para encobrir as verdadeiras consequências do que dizia. Não acho que é isso nem que é o oposto, que é uma leitura popular de fora da academia, como se o Spinoza fosse um místico panteísta. O Jonathan Israel mesmo fala que ele fazia parte dos colegiantes (que eram protestantes não dogmáticos) e foi enterrado no cemitério deles. Mas o que me incomodou mesmo foi quando ele diz que o Spinoza diz que bem e mal são relativos, quase como se ele fosse um utilitarista. Me parece que ele retrojeta o ateísmo já desenvolvido dos iluministas radicais do século XVIII pra época do Spinoza. 

Uma parte emocionante é quando ele conta os estratagemas que o círculo do Spinoza teve que inventar pra publicar as Obras Póstumas, fugindo da censura e da tentativa de destruir fisicamente os originais que uma aliança entre a igreja reformada, a católica e a sinagoga planejou.  

O Jonathan Israel vai mostrar que aí começa uma luta entre cinco facções: os tradicionalistas, os espinosistas e três tendências que ele chama de iluminismo moderado, que vão tentar conciliar a nova filosofia com a defesa da religião e das instituições (são os cartesianos, os seguidores do Leibnitz e Wolff e os seguidores do Newton e Locke). Mais pra frente, ele mostra que o cartesianismo entra em colapso na década de 1720 e a corrente britânica assume a posição dominante, ao mesmo tempo que o espinosismo no sentido estrito, na mesma época, dá lugar ao mecanicismo do La Mettrie, que já não tem mais a característica metafísica e necessitarista do século XVII.

A terceira parte foi a que eu mais gostei, porque mostra quais foram as controvérsias intelectuais do período. Ele pega algumas controvérsias mais locais, mas tem umas que têm uma importância geral de mudança de época. 

As principais são marcadas por três livros: A Filosofia Intérprete das Escrituras, do Lovewijk Meyer (1666), que é a base da crítica bíblica, com a ideia de que as passagens da Bíblia não podem contradizer e têm que se adequar à racionalidade filosófica. A História dos Oráculos, do Anton Van Dale (1683), negando que os oráculos da antiguidade fossem operados por demônios e, por extensão negando que o Diabo e os demônios possam afetar o mundo material, e veladamente insinuando que as igrejas usaram o mesmo tipo de fraudes que os sacerdotes da antiguidade, pra manter a população crédula e submissa. E O Mundo Enfeitiçado, do Balthasar Bekker (1691) negando a existência da bruxaria. Todos esses autores eram do círculo mais próximo do Spinoza. Nessa parte, dá pra entender melhor o passo-a-passo da secularização. 

A quarta parte fala sobre as reações das correntes moderadas, de um lado contra o tradicionalismo, de outro, contra o iluminismo radical. O que eu achei mais interessante é que finalmente eu entendi o porquê daquele sistema estranho do Leibnitz: a harmonia preestabelecida entre as mônadas é uma forma de contornar as consequências de haver só uma substância, e a escolha entre os mundos possíveis é para evitar o necessitarismo: dessa forma, Deus tem livre arbítrio para escolher qual mundo criar (mas como foi notado já na época, pelo fato de Deus ter que escolher o melhor mundo possível, continua não tendo grande livre arbítrio).

Outra coisa é que ele mostra que a corrente newtoniana-empirista não tinha como negar os milagres por princípio, o que foi o recurso que eles usaram contra o iluminismo radical. O Isaac Newton que criou a analogia de Deus como o relojoeiro do universo, que às vezes interferia através de um milagre (que o Leibnitz disse muito bem que, se fosse assim, seria um relojoeiro incompetente, pra consertar várias vezes o mesmo relógio) e a corrente inglesa que criou o argumento do desígnio (design não, né? valorize a língua portuguesa!) sobre a existência de Deus (que depois o Hume, que era agnóstico, criticou), que perdeu força com a teoria da evolução mas ainda é usado. A crítica bíblica do Le Clerc também seguia esse caminho, de garantir um núcleo de milagres no Novo Testamento, que seriam garantidos "empiricamente" pelo testemunho dos apóstolos, flexibilizando a interpretação das outras partes. 

Na quinta parte, pra defender a tese da centralidade do espinosismo, o jeito é o Jonathan Israel mostrar vários espinosistas até o período da Enciclopédia, pra dizer que as outras correntes radicais não poderiam existir sem eles. Ele tem uma certa razão, e tenta provar pelos números, mostrando a predominância do espinosismo entre a literatura clandestina do iluminismo radical. Pra terminar, ele mostra as influências espinosistas no La Mettrie e no Diderot, e termina falando do Rousseau como um cara que fez a síntese entre a ala moderada e a radical do iluminismo.

Tem algumas coisas que eu gostaria que ele tratasse melhor, principalmente a relação entre o radicalismo materialista e as formas revolucionárias religiosas (ele não fala da revolução inglesa, onde ia ter que falar do Gerrard Winstanley, dos quakers, dos Niveladores, dos Cavadores etc, quem tiveram reflexos até no William Blake no século XVIII), e também o republicanismo e a democracia radical (no final ele fala do pouco desenvolvimento do aspecto político da literatura clandestina, e cita só o Van den Enden e mais alguns poucos caras que foram do radicalismo filosófico pro político). Mas como história intelectual dessa corrente, o livro é muito bom mesmo. 


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