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O que defender e o que rejeitar da assim chamada civilização ocidental?


Eu tô há um tempo sem publicar no blog, por causa de vários problemas pessoais. Mas eu tô vivo. Vou aproveitar pra só falar uma coisa rapidinho. Um posicionamento que eu queria botar no papel e eu fiquei pensando numas conversas hoje.

Homem Vitruviano, Leonardo da Vinci, 1490


O problema

É moda entre os cruzadinhos de merda da extrema direita defender a assim chamada civilização ocidental, ou uma coisa mais ficcional ainda, a tal da civilização judaico-cristã.

Bem, quando esses caras fazem isso, é pra defender as raízes cristãs da nossa cultura. Só que o que tem de diferente (e melhor) na civilização ocidental não é o cristianismo - a Europa ocidental na Idade Média não era qualitativamente diferente do mundo árabe-islâmico, da Índia ou da China - na verdade era mais atrasada, era a Belford Roxo do mundo. 

O que fez a Europa tomar a dianteira culturalmente foram o Renascimento, a revolução científica, a Reforma e o Iluminismo. Ou seja, justamente o que enfraqueceu o poder religioso e permitiu o surgimento de um espaço cultural secular e, muitas vezes, oposto ao poder religioso (não por acaso, o Plínio Corrêa de Oliveira, criador da TFP, via toda a época desde o Renascimento como uma revolução contra a igreja, tendo como fases mais avançadas a Reforma e a Revolução Francesa, e chegando até a Revolução Russa). 

Isso quanto aos Deus Vult e outros palhaços revoltados com o mundo moderno.

Marxismo e iluminismo

Mas o que eu acho mais importante de estabelecer é onde o movimento socialista e, em especial a ala marxista, se encaixam nesse panorama histórico. 

O Marx e o Engels parece que não refletiram seriamente sobre isso. Eles viam esse processo principalmente através do ponto de vista da ascensão da burguesia, sem dar muita importância pra parte cultural. Por exemplo, no Anti-Duhring o Engels fala assim:
Mas, na sua forma teórica, o socialismo apresentava-se, em seus primórdios, como um desenvolvimento aparentemente lógico dos princípios proclamados pelos grandes nacionalistas franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, ainda que tenha suas raízes nos fatos econômicos, teve que se ligar, ao nascer, ao material de idéias existentes.
Os grandes homens, que prepararam, na França, os espíritos para a revolução, que haveria de desencadear-se, já adotavam atitude resolutamente revolucionária. Não reconheciam nenhuma autoridade exterior. A religião, a observação da natureza, a propriedade, a ordem pública, tudo era submetido à mais desapiedada crítica; tudo o que existia devia justificar sua existência perante o tribunal da razão ou renunciar a continuar existindo. A tudo, aplicava-se, como crivo único, a razão. Era a época em que, segundo a frase de Hegel, o mundo descobriu que tinha um cérebro. Em primeiro lugar, porque o cérebro humano e as conclusões a que chega com seus raciocínios se outorgam o direito de serem aceitos como base de todas as ações e de todas as relações sociais; em segundo lugar, e no sentido mais amplo, porque a realidade, que não se ajusta a esses princípios, é inteiramente subvertida, dos seus alicerces à cúpula. Todas as formas anteriores de sociedade e de Estado, todas as idéias tradicionais, foram postas à margem como contrárias à razão, o mundo, até então, governara-se por puros preconceitos; o passado merecia apenas comiseração e desprezo. O mundo, até então, havia estado envolto em trevas; para o futuro, a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão seriam substituídos pela verdade eterna, pela eterna justiça, pela igualdade baseada na natureza e por todos os direitos inalienáveis do homem.
     Sabemos, hoje, que esse reinado da razão era apenas o reinado idealizado pela burguesia; a justiça eterna corporificou-se na justiça burguesa; a igualdade reduziu-se à burguesa igualdade perante a lei; os direitos essenciais dos homens, proclamados pelos racionalistas, tinham, como representante, a sociedade burguesa, e o Estado da razão, o contrato social de Rousseau, ajustou-se, como de fato só podia ter-se ajustado, à realidade, convertido numa República democrático-burguesa. Os grandes pensadores do século XVIII, sujeitos às mesmas leis de seus predecessores, não podiam romper os limites que sua própria época traçava.

Quer dizer, eles tratavam o iluminismo simplesmente como uma superestrutura do capitalismo. Isso coloca a questão: então, qual seria a superestrutura do comunismo que ia ficar no lugar das ideias de razão, liberdade e igualdade? 

Isso nunca foi respondido explicitamente na corrente principal do movimento socialista (por isso o Schumpeter pôde falar em indeterminação cultural do socialismo). Alguns anarquistas e algumas formulações esparsas marxistas falam em, pela primeira vez, realizar na prática os valores iluministas, o que não acontece durante o capitalismo, mas essa ideia é quase sempre implícita. 

Complica ainda mais a situação o fato do marxismo ter surgido da ala esquerda do hegelianismo, ou seja, da filosofia idealista alemã, que não é toda compatível com o iluminismo (o Fichte e o Schelling, por exemplo, eram românticos e antiiluministas) e, mesmo no caso do Hegel, que criou uma filosofia da razão, não era coerentemente igualitária, democrática etc. 

Os elementos políticos conservadores da filosofia do Hegel não passaram pro marxismo, mas passou sim uma ideia de sistema autossuficiente, que não é só responsabilidade do Engels e que permitiu, por exemplo, o Anti-Duhring ser tipo uma minienciclopédia marxista, com explicações materialistas e dialéticas pra tudo, desde as ciências naturais, até a história e a economia. Essa concepção foi piorando cada vez mais, até chegar no materialismo dialético so período stalinista, onde as teorias científicas eram classificadas como burguesas ou proletárias. 

Por causa dessa autossuficiência, o iluminismo não era um problema filosófico. Dentro do marxismo, existiam explicações suficientes pra tudo, da física até a estética, e ainda uma narrativa que explicava como o proletariado conseguiu chegar a esse conhecimento de tudo.

Defender o quê?

Até os anos 1970, era consensual, pelo menos na Europa e nas Américas, que esses valores iluministas eram desejáveis. A exceção eram grupos totalmente marginalizados (fascistas, seitas religiosas etc). 

Mas alguns intelectuais e movimentos anticoloniais passaram a rejeitar a modernidade capitalista em bloco, inclusive esses valores, como se eles também fossem uma imposição colonialista (inclusive setores identitários da esquerda que, em nome de "radicalizar" a teoria crítica, acabam destruindo os pressupostos universalistas dela) .

A partir do surgimento da república islâmica no Irã em 1979, passaram a existir correntes fundamentalistas com base social, que também rejeitavam a assim chamada cultura ocidental em bloco. E surgiram novas correntes, principalmente depois do colapso do stalinismo e em reação ao pensamento único neoliberal.

Quem toma uma rasteira, cata cavaco e tem que procurar um apoio no chão pra levantar. Socialmente, não existia mais o bloco stalinista pra dar aparência de realidade à ilusão de que o marxismo era um sistema fechado em si mesmo. 

Já em 1985, o Habermas tinha escrito O Discurso Filosófico da Modernidade, recolocando a teoria crítica dentro da linhagem do pensamento moderno. Mas o Habermas é um cara da segunda geração dos frankfurtianos, muito longe do marxismo dominante. 

Mas alguns marxistas ou pessoas influenciadas pela filosofia marxista também fizeram esse percurso, por exemplo o Göran Therborn, que coloca o marxismo como a "oposição leal à modernidade", e o Kenan Malik, que tem escrito muita coisa valorizando a ala radical do iluminismo. Essa atitude implica em desvalorizar a especificidade das contribuições marxistas, pra colocar elas num contexto intelectual mais amplo e se abrir a outras correntes filosóficas modernas e às descobertas atuais das ciências. Ou seja, é uma escolha que pode ser feita (e eu acho que deve ser feita), que não é de forma nenhuma inescapável dentro do marxismo. 

Então

Respondendo à pergunta do título: em primeiro lugar, a modernidade não é ocidental. Pelo menos não da forma em que a direita identitária coloca. A modernidade recebeu a contribuição de várias sociedades. A filosofia grega foi guardada pelos árabes antes de voltar à Europa, não existiam diferenças radicais entre os valores judaicos, cristãos e islâmicos medievais. Isso pra não falar das influências indianas, chinesas, africanas, os poucos resquícios precolombianos etc.  Hoje, o que chamam de "cultura ocidental" existe em Paris, Londres, Nova Iorque, como também em Tóquio, Hong Kong, Rio de Janeiro, Durban e Túnis.

A dinâmica do capitalismo fortaleceu os aspectos igualitários da nossa matriz religiosa: igualdade perante a lei, liberdade individual, busca da verdade, mesmo contra os poderes constituídos (depois de um impulso inicial, foram necessários dois séculos de lutas democráticas, abolicionistas, feministas, proletárias e por direitos civis pra ampliar as margens da liberdade e da igualdade). O capitalismo também desenvolve as forças produtivas, tornando possível que a gente tenha um controle maior sobre a natureza. Essa sociedade baseada na exploração e criada por homens brancos e, por um tempo, baseada na escravidão, é melhor que todas as anteriores, porque permite mais possibilidades diferentes de formas de vida do que qualquer sociedade baseada na tradição, e porque permite mais bem estar do que elas (expectativa de vida, nível de vida, alfabetização etc). 

O que a gente deve rejeitar é o ponto de vista liberal de que a economia de mercado é a última palavra, e a forma definitiva em que a modernidade pode se realizar (ou que a única possibilidade de socialismo é repetir o sistema stalinista, que entrou em colapso pelas próprias contradições). Como o Habermas falou, a modernidade é um projeto incompleto, que temos que levar adiante. Do ponto de vista marxista, até uma sociedade de indivíduos livremente associados, sem classes, sem mercado, Estado, sistema de gêneros e identidades nacionais e raciais. 

E eu? 

Terminando, eu queria falar um pouco da minha trajetória no blog. Lá em 2012, a minha ideia era escrever textos de divulgação sobre abordagens marxistas em relação às ciências. Como se fossem elementos pra uma dialética da natureza. Logo depois, eu vi que era necessário criticar o pós-modernismo. Fui lendo melhor o Lukács. 

Um conhecido do coletivo Cem Flores me mostrou um texto do Etiénne Balibar, ainda dos anos 70, em que ele mostrava que o positivismo/formalismo é a verdadeira ideologia dominante. Depois de 2015, eu tentei falar dessas expressões formalistas.

Os lukacsianos do Brasil, principalmente os seguidores do Chasin e o pessoal da Escola da Maceió, veem o marxismo da mesma forma que a igreja católica via a filosofia escolástica na idade média. Pra eles, todas as questões filosóficas importantes são resolvidas pelo marxismo (que, pra eles, se reduz a meia dúzia de teóricos, porque todos os outros "deturpam", "empobrecem" etc), que inclusive substitui as ciências humanas.

Além disso, eles colocam um sinal de igual entre o irracionalismo e o positivismo. É um grande erro, porque, por um lado, o positivismo é a ideologia dominante, enquanto o pós-modernismo é a ideologia de setores intelectuais das camadas médias pra justificar as suas pesquisas acadêmicas ou dar pretextos pra rejeitarem a luta política organizada. Por outro lado, por essas mesmas características, o pós-modernismo é uma série de discursos sobre discursos ou afirmações impossíveis de provar, enquanto o pensamento burguês dominante, pela sua própria função na organização da dominação de classe, é obrigado a lidar com os fatos e tendências reais da sociedade, mesmo que de forma instrumental. 

Por isso, eu vi que conhecer os grande pensadores da ideologia dominante do século XX (Hannah Arendt, Karl Popper, Keynes, Pinker etc) também é uma abertura que impede a reflexão marxista de se tornar dogmática, e funciona como um tipo de "controle" e "teste de realidade". 

O pensamento burguês sob hegemonia neoliberal ainda é a única visão de mundo coerente depois do colapso da luta pelo socialismo no século XX. Ou melhor, ele e o fundamentalismo islâmico. Não é possível vencer essa hegemonia sem estarmos à altura do pensamento burguês atual, e sem nos apropriarmos criticamente das melhores contribuições dele. É isso que significa querer ser a ala consequente do iluminismo.

Comentários

Cristian disse…
O que você dizer com "ala consequente do iluminismo"? O marxismo é a forma "mais moderna" ou a última "herdeira" do iluminismo?
rodrigodoo disse…
Oi, Christian!

Eu quis dizer a mais radical. Essa caracterização como "herdeira" geralmente é usada pra dizer que as outras são superadas, ultrapassadas etc então o iluminismo do século XVIII é só história. Também não acho que seja a mais moderna, tem outras correntes iluministas mais recentes (a própria filosofia do Habermas, por exemplo), mas que, na grande maioria, não estão comprometidas com uma crítica radical da sociedade.
Cristian disse…
Ah, entendo. Mas com "mais moderna" quis dizer aquela que não renunciou à proposta iluminista, isto é, aquela que foi "mais moderna" no que diz respeito ao próprio movimento da modernidade, a radicalidade mesmo, como você disse. Pensando bem fica claro mesmo, eu que me confundi. É legal sua perspectiva, porque vem da arte
Guilherme disse…
Acho que está o "grão da voz" do tipo de pensamento/militância você tentando desenvolver e puxar seus colegas marxistas/progressistas. Hoje no ponto de vista acadêmico ser de esquerda significa quase se sempre ser pós-moderno, decolonial, identitário, etc. Não sei se isso automaticamente desmobiliza a militância, mas certamente estimula um sectarismo muito ineficaz.

Esse lance sobre qual seria uma superestrutura comunista eu tenho refletido no campo da escola e cidadania. A escola moderna foi criada em nome da cidadania, bem ou mal, burguesa (igualdade, republicanismo, autonomia crítica, etc). Eu não sei bem o que deveríamos educar no sentido comunista? No ponto de vista pré-revolucionário, é meio fácil, uma formação militar, doutrinária, que permita acumulação de força e eficiência num projeto de tomada de poder. Mas no ponto de vista de uma sociabilidade pós-capitalista fica pergunta: o que vamos fazer no dia seguinte? Enquanto isso os educadores progressistas em nome de uma visão "crítica" buscam "métodos revolucionários" de ensino que tentam não repetir a educação tradicional, o querendo ou não acaba contribuindo com a deterioração da formação.

Outro ponto que me chama atenção é sua crítica à "escolástica" marxista. Essa proposta de radicalização do iluminismo passará por reformular as bases ontológicas aceitando a falibilidade do pensamento do sec. XIX e aceitando que toda contribuição do pensamento liberal burguês não pode ser desprezada como mera mistificação ideológica. Me lembro vagamente desse texto do Balibar que li e me foi passado se não me engano pelo Pablo uma vez. (vou reler). Mas pelo que eu lembro tem um lance de que se deve sempre ir "à contrapelo" da hegemonia acadêmica, contra o positivismo, a tarefa marxista seria criticar uma visão dura de ciência e razão atemporal (Algo assim), mas contra o irracionalismo dos nazistas seria necessário retomar desde os princípios a racionalidade e às contribuições do iluminismo. Algo assim talvez seja necessário hoje quanto ao pensamento tecnocrático neolib (que tipo de relativização seria preciso eu não sei), ao irracionalismo da extrema direita (O prof. João de Castro vem tentando contrapor uma "ética do diálogo" ao bolso-olavismo por ex.), ao relativismo pós-moderno (talvez pela impotência), e ao fundamentalismo religioso, especialmente islâmico (não tenho a menor ideia do que funcionaria).

Quanto o contraponto da coisa pós-moderna eu assisti recentemente uma palestra do prof. Paulo Arantes que culmina numa crítica a tentativa de um autor recente tentar "superar o marxismo" na afirmação da coisa brasileira pelo "perspectivismo ameríndio". Ele consegue reconhecer que há um horizonte utópico aí com alguma relevância, mas com pouca consistência política e filosófica. (Ver em https://youtu.be/_4pbtGmfEDA )

Um tema que eu gostaria de ver você abordando com calma seria a noção de "democracia", como que uma visão revolucionária poderia se haver com ela? Dito isto parabéns pelo blog, passei o domingo em boa companhia nessa leitura. Grande abraço!
rodrigodoo disse…
Muito obrigado, cara!

Então, eu tenho pensado sobre a questão da democracia sim. Não existe teoria política marxista, o que existe é a reflexão sobre a estratégia pra chegar ao poder. Mas tem esse ponto cego: a teoria marxista imagina que a ditadura do proletariado vai levar a uma sociedade em que a produção tá sob controle dos trabalhadores, e que isso extinguiria a política como administração do Estado. Duplamente errado, primeiro porque essa transição até uma sociedade sem Estado levaria décadas ou séculos, e precisa existir uma reflexão sobre o poder político nesse período, depois que não é provável que uma sociedade sem Estado pós-capitalista, pelo fato de não ter Estado, seja comparável a uma tribo indígena. Certamente vai existir política, mesmo que não exista Estado. Aí (como na questão da ética), acho que a gente tem que pegar um desvio no mínimo pelo Spinoza