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As culturas não são todas iguais (Kenan Malik)


Traduzi esse discurso do filósofo angloindiano Kenan Malik por causa da importância do tema. Ele é do grupo da revista Spiked!, que são ex-marxistas que se tornaram libertarianistas. Infelizmente, tive que traduzir de um cara com essa perspectiva, de que eu discordo muito porque, na grande maioria das correntes marxistas atualmente, ninguém tem coragem de falar as verdades básicas que ele falou aqui. Não me responsabilizo pelas outras posições dele (óbvio, mas alguém ia acabar me acusando disso). Leiam que é muito bom!


As culturas não são todas iguais (Kenan Malik)


Primeira Publicação: 28 de maio de 2002, em "Spiked!"

  
"Eu denuncio o colonialismo europeu", escreveu CLR James. "Mas eu respeito o aprendizado e as descobertas profundas da civilização ocidental."[1]

James foi um dos grandes radicais do século XX, um antiimperialista, um excelente historiador das lutas negras, um marxista que permaneceu como tal mesmo quando já não era mais moda sê-lo. Mas, hoje, a defesa de James da "civilização ocidental" provavelmente seria descartada como eurocêntrica, ou até mesmo racista.


Ser radical hoje é mostrar desencanto com tudo o que é "ocidental" - o que, para a maioria, significa a modernidade e as ideias do Iluminismo - em nome da "diversidade" e da "diferença". O projeto modernista de buscar uma compreensão racional e científica do mundo natural e social - um projeto que James defendeu sem pudor - agora é amplamente considerado como uma fantasia perigosa, até mesmo como opressivo.


'Subjugação', de acordo com o filósofo David Goldberg, "define a ordem do Iluminismo: subjugação da natureza pela inteligência humana, controle colonial através de dominação física e cultural, e a superioridade econômica através do domínio das leis do mercado"[2]. O domínio da natureza e a organização racional da sociedade, que já foram vistos uma vez como a base da emancipação humana, agora se tornaram as fontes da escravidão humana.


O universalismo iluminista, tais críticos argumentam, é racista porque procura impor as ideias euroamericanas de racionalidade e objetividade sobre os outros povos. "Os discursos universalistas da Europa moderna e dos Estados Unidos", argumenta Edward Said, "assumem o silêncio, voluntário ou não, do mundo não-europeu."[3]Não apenas para os radicais, mas para muitos liberais mainstream também, a estrada que começou no Iluminismo termina em selvageria, e mesmo em genocídio. Como o sociólogo Zygmunt Bauman argumenta: "Cada ingrediente do Holocausto ... era normal ... no sentido de estar plenamente de acordo com tudo o que sabíamos sobre a nossa civilização, seus espíritos-guia, suas prioridades, sua visão imanente do mundo - e dos meios apropriados para buscar a felicidade humana, assim como uma sociedade perfeita."[4]


Essa crença de que a modernidade está na raiz de todos os males é tão arraigada que parece, às vezes, que apenas reacionários de direita, como o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, a ex-primeira-ministra do Reino Unido Margaret Thatcher ou o falecido político holandês Pim Fortuyn, estão dispostos sem reservas a defender a crença de James na superioridade no "
aprendizado e nas descobertas profundas da civilização ocidental".

Então, a verdadeira pergunta a ser feita na esteira do 11 de setembro não é, como muitos sugeriram, "Por que eles nos odeiam?". Mas sim "Por que nós parecemos nos odiar?". Por que é que os liberais e radicais ocidentais se tornaram tão desencantados com a civilização moderna que alguns até saudaram o ataque às Torres Gêmeas como um ato antiimperialista?


CLR James, como a maioria dos antiimperialistas no passado, reconheceu que todas as políticas progressistas estavam enraizadas na "tradição ocidental" e, em particular, nas idéias de razão, progresso, humanismo e universalismo que surgiram a partir do Iluminismo. O método científico, a política democrática, o conceito de valores universais - são visivelmente melhores conceitos do que aqueles que existiam anteriormente, ou os que existem agora em outras tradições políticas e culturais. Não porque os europeus são um povo superior, mas porque, do Renascimento, do Iluminismo e da revolução científica vieram ideias superiores.


A tradição ocidental não é ocidental em qualquer sentido essencial, mas apenas através de um acidente de geografia e história. De fato, os ensinamentos islâmicos foram uma base importante, tanto para a Renascença quanto para o desenvolvimento da ciência. As ideias que chamamos de "ocidentais" são, na verdade, universais, estabelecendo a base para um maior florescimento humano. É por isso que grande parte dos radicais do século passado, especialmente os do Terceiro Mundo, reconheceram que o problema do imperialismo não era ser uma ideologia ocidental, mas sim ser um obstáculo à busca dos ideais progressistas que surgiram a partir do Iluminismo .


Como Frantz Fanon, o nacionalista argelino nascido na Martinica, colocou: "Todos os elementos de uma solução para os grandes problemas da humanidade existiram, em diferentes momentos, no pensamento europeu. Mas os europeus não realizaram na prática a missão que recaiu sobre eles."[5] Para pensadores como Fanon e James, o objetivo do antiimperialismo não era rejeitar as ideias ocidentais, e sim reclamá-las para toda a humanidade.


Na verdade, os liberais ocidentais se chocavam muitas vezes com a medida em que os movimentos anticoloniais adotaram o que eles consideravam ser noções contaminadas. Os conceitos iluministas de universalismo e de progresso social, como o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss observou, encontraram "apoio inesperado nos povos que não desejam nada mais do que compartilhar dos benefícios da industrialização; povos que preferem olhar para si mesmos como temporariamente atrasados, em vez de permanentemente diferentes". Alhures, ele observou que a doutrina do relativismo cultural "foi desafiada pelas mesmas pessoas em cujo benefício moral os antropólogos a haviam estabelecido, em primeiro lugar" [6].

Como as coisas mudaram. "Permanentemente diferente" é exatamente como nós tendemos a ver os diferentes grupos, sociedades e culturas hoje. Por quê? Em grande parte, porque a sociedade contemporânea tem perdido a fé na transformação social, na possibilidade de progresso, nas crenças que animaram antiimperialistas como James e Fanon.

Considerar os povos como "temporariamente atrasados" em vez de "permanentemente diferentes" é aceitar que, enquanto os povos são potencialmente iguais, as culturas definitivamente não o são; é aceitar a ideia de progresso social e moral; de que seria muito melhor se todos tivessem a oportunidade de viver no tipo de sociedade ou cultura que melhor promoveu o progresso humano.


Mas agora são essas idéias - e o próprio ato de se fazer julgamentos sobre as crenças, valores, estilos de vida e culturas - que são vistas como politicamente rústicas. No lugar do universalismo progressivo de James e Fanon, as sociedades ocidentais contemporâneas adotaram uma forma de multiculturalismo niilista. Nós passamos a ver o mundo como dividido em culturas e grupos definidos, em grande parte, por sua diferença em relação ao outro. E cada grupo passou a se ver como composto não de agentes ativos que tentam superar as desvantagens, lutando por igualdade e progresso, mas de vítimas passivas com questões insolúveis. Porque, se as diferenças são permanentes, como é possível que as questões sejam resolvidas?


O corolário de transformar o mundo inteiro em uma rede de vítimas é transformar o Ocidente, e em particular os EUA, em uma força maligna todopoderosa - o Grande Satã - da qual todos devem ter raiva. Em Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, um dos personagens centrais, Saladin, encontra-se preso em um centro de detenção para imigrantes ilegais. Saladin descobre que seus companheiros foram transformados em animais - búfalos de água, cobras, mantícoras. Ele próprio se tornou um bode peludo.


"Como eles fazem isso?", Saladino pergunta a um companheiro de prisão. "Eles nos descrevem", é a resposta: "isso é tudo. Eles têm o poder da descrição e sucumbimos às imagens que eles constroem". Há uma sensação de fatalismo semelhante na maneira com que muitos radicais contemporâneos veem os EUA. O Grande Satã descreve o mundo, e o mundo sucumbe a essas descrições.


Neste fatalismo reside um fio comum que une o radicalismo ocidental contemporâneo e o fundamentalismo islâmico. Na superfície, os dois parecem pólos opostos: os fundamentalistas detestam a decadência ocidental, e os radicais ocidentais temem as presunções islâmicas de certeza. Mas o que une os dois é que ambos estão enraizados no multiculturalismo niilista contemporâneo; ambos expressam, na melhor das hipóteses, ambivalência sobre e, na pior das hipóteses, a rejeição pura e simples, das idéias de modernidade, universalidade e progresso. E ambos não veem nenhuma alternativa real ao poder ocidental.

O mais importante: ambos confundem as conquistas da modernidade com as iniqüidades do capitalismo. Desta forma, os aspectos positivos da sociedade capitalista - sua invocação à razão, seus avanços tecnológicos, o seu compromisso ideológico com a igualdade e o universalismo - são denegridos [sic], enquanto seus aspectos negativos - a incapacidade de superar as divisões sociais, o contraste entre o avanço tecnológico e torpeza moral , as tendências para a barbárie - são vistos como inevitáveis ​​ou naturais.

De acordo com essa visão de mundo, tudo o que se pode esperar, nas palavras de Edward Said, é "a possibilidade de uma visão mais generosa e pluralista do mundo, em que o imperialismo segue seu curso, por assim dizer, tardiamente, de diferentes formas (a polaridade Norte-Sul do nosso tempo é uma delas), e a relação de dominação continua, mas oportunidades de libertação são abertas."[7] Mas o que pode significar a libertação, se nada é mudado, e o imperialismo "segue seu curso"? Não é mais provável que tal visão irá dar origem, não a uma "visão generosa e pluralista do mundo", mas a uma distópica, sombria e misantrópica, onde tudo o que resta é a raiva niilista - o tipo de raiva que levou aos acontecimentos de 11 de setembro?

A fúria que levou os aviões às Torres Gêmeas foi alimentada tanto pelo niilismo e fatalismo que agora se apoderaram de grande parte da sociedade ocidental, assim como da luta na Palestina ou em qualquer outro lugar no Terceiro Mundo. Não houve nada remotamente antiimperialista ou progressivo no ataque; nem existe no antiamericanismo visceral que hoje anima igualmente os fundamentalistas islâmicos e os radicais ocidentais. Há muito a lamentar sobre a sociedade americana e a política externa americana. Mas pouco está refletido no antiamericanismo ou do fundamentalismo islâmico ou do radicalismo ocidental contemporâneo. Ao contrário, eles dois são produtos do fracasso do antiimperialismo, e de um descontentamento com o mundo moderno. A ironia de tal estranhamento com a modernidade é que ele é tão enraizado na "tradição ocidental", como a própria modernidade - mas apenas nas suas vertentes mais reacionárias e regressivas.


"Hoje, estamos presentes na estase da Europa", Frantz Fanon escreveu. A Europa "abandonou toda a orientação e toda a razão, e ela está se jogando de  cabeça no abismo; seria bom evitá-lo o mais rápido possível."[8] Quarenta anos atrás, Fanon estava soando um toque de clarim contra o imperialismo. Hoje, ele poderia igualmente estar nos advertindo sobre as conseqüências do que se passa por antiimperialismo.



Notas


1. CLR James, ‘The Making of the Caribbean People’, in Spheres of Existence: Selected Writings (London: Alison and Busby, 1980), p179

2. David Theo Goldberg, Racist Culture (Oxford: Blackwell, 1993), p29

3. Edward Said, Culture and Imperialism (London: Chatto & Windus, 1993), p58

4. Zygmunt Bauman, Modernity and the Holocaust (Cambridge: Cambridge University Press, 1989), p8

5. Frantz Fanon, The Wretched of the Earth (Harmondsworth: Penguin, 1967 [first pub 1961]), p253

6. Claude Levi-Strauss, Structural Anthropology, vol2 (Harmondworth: Penguin, 1978 [first pub 1973]), p53; idem, The View from Afar (Harmondsworth: Penguin, 1987 [first pub 1983]), p28

7. Edward Said, Culture and Imperialism, pp. 277-278

8. Frantz Fanon, The Wretched of the Earth, pp. 253, 252

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