Pular para o conteúdo principal

Uma história sem povo: Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque de Holanda etc


Tem uns livros que foram importantes durante o século XX para o debate sobre o que é ser brasileiro e qual é a especificidade do Brasil em relação aos outros países da América Latina. 

O Augusto Buonicore escreveu uma série sobre isso, mas eu não acho que todos os autores que ele escolheu são representativos da mesma forma. Me arrisco a dizer que os mais marcantes são o Gilberto Freyre, o Sérgio Buarque de Holanda e o Raymundo Faoro. Eu li Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque, recentemente, e isso me fez pensar em algumas características que já aparecem lá em 1936, e que também aparecerem no marxismo hegemônico no Brasil. 

Esse trio de autores não marxistas se tornou hegemônico na autocompreensão do Brasil, apesar de que eles não são complementares e não cobrem terrenos de igual importância. Os dois primeiros tentam entender a cultura e o Faoro, o poder político. Além disso, os que escrevem sobre a cultura têm pontos de vista diferentes. O Freyre fala das relações raciais em torno do latifúndio escravista, enquanto o Sérgio Buarque vai falar das consequências sociais da colonização portuguesa, em das diferenças em relação à colonização espanhola. A avaliação que eles fazem é quase oposta, o Freyre encontra a origem da riqueza e diversidade cultural brasileira na miscigenação e interação entre os escravos e senhores de engenho, e coloca isso na conta da forma de colonização portuguesa e o Sérgio Buarque, ao compreender a colonização através dos polos de aventura (em vez de trabalho), semeadura (em vez de ladrilhagem, ou seja, construção planejada), só vê futuro para o Brasil num processo de "americanização", pra superar essas raízes. 

Os dois têm, cada um, uma forma particular de relacionar o povo com a classe dominante no Brasil. No Freyre, o povo e a cultura popular são absorvidos pela classe dominante, como se fossem produtos da colonização. No Buarque, o povo desaparece, e toda a cultura política e social da classe dominante (o desprezo pelo trabalho, o cultivo pela erudição vazia, não saber separar o público do privado) são generalizados como características do povo brasileiro. É significativo que eles desvalorizem o peso do racismo na sociedade brasileira e que o povo nunca apareça autônomo nessas obras.

Essa visão é mais radical ainda no Faoro. Pra ele, pegando o conceito de patrimonialismo do Weber, ou seja, um "capitalismo politicamente orientado", em que a classe dominante usa o Estado como um patrimônio próprio, ele diz que esse fenômeno existiu em Portugal desde a revolução de Avis (1385!) e foi transplantado pro Brasil na colonização, e continuou durante esses séculos, impedindo o Brasil de ter um capitalismo "normal" e impedindo o acesso do povo ao Estado: 

DE DOM JOÃO I A GETÚLIO VARGAS, numa viagem de seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo. O capitalismo politicamente orientado — o capitalismo político, ou o pré-capitalismo —, centro da aventura, da conquista e da colonização moldou a realidade estatal, sobrevivendo, e incorporando na sobrevivência o capitalismo moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado na liberdade do indivíduo — liberdade de negociar, de contratar, de gerir a propriedade sob a garantia das instituições. A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os
negócios, como negócios privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo — assim é porque sempre foi.

Querendo, com razão, criticar a caracterização ahistórica de feudalismo dada pela maioria dos marxistas brasileiros à colonização portuguesa, ele cai em outra caracterização talvez mais ahistórica ainda.

Esses sociólogos ajudaram a criar uma interpretação do Brasil em que o povo ou nunca lutou, ou só lutou pra ser derrotado, ou só lutou instigado pelas classes dominantes, pra ser tirado de cena depois delas conseguirem seus objetivos do momento (no caso do Sérgio Buarque e do Faoro, esse discurso fica muito perto da visão do senso comum de dizer que tudo de errado no Brasil é culpa da colonização portuguesa). Contribuíram pra essa visão as obras do FHC (Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional) e da Emília Viotti da Costa (Da Monarquia à República - momentos decisivos), que colocaram a abolição como um resultado mecânico da necessidade da transição pra um mercado capitalista, e a queda da monarquia como uma vingança dos fazendeiros paulistas, que logo passaram a controlar o novo regime. Nos anos 80, essa interpretação da República foi reafirmada pelo José Murilo de Carvalho, que pelo menos é conservador mesmo.

Essa corrente, de esquerda, tinha o objetivo de mostrar o caráter conservador dessas transições. Mas acabaram "provando demais", e contribuindo para uma visão derrotista da história. Infelizmente, essa visão se tornou hegemônica a partir do final dos anos 70, substituindo a antiga história oficial dos heróis nacionais. Apesar dos exageros, o Antonio Risério acerta no principal aqui

Dá vontade de traçar essa abordagem até o Grupo do Capital, que o próprio FHC coordenou na USP em 1958-64, porque essa visão próxima do estruturalismo e a influência do Weber estavam presentes na produção da maioria dos participantes do grupo. Mas aí eu teria que falar da crítica do Chasin, fundador da Igreja de São Lukács no Brasil, que chama essa linha de marxismo adstrito, e vou deixar essa pra outro dia. 

Já nos anos 70, existiu uma corrente marxista minoritária que tentou fazer outra interpretação do Brasil, defendendo a existência do modo de produção escravista colonial, com as suas leis de movimento próprias, e onde a luta contra a escravidão teria sido o motor das lutas de classes no país. A obra mais importante é Escravismo Colonial, do Jacob Gorender, mas ele, o Mário Maestri e o Décio Saes também escreveram sobre as lutas de massas que levaram à abolição, que eles caracterizaram como a única revolução social vitoriosa no Brasil. Com A Formação do Estado Burguês no Brasil, o Décio Saes tentou mostrar que o conservadorismo da República Velha foi um resultado da derrota das alas republicanas radicais, e não de um simples processo de transformismo. 

Esses passos foram importantes, mas muito aquém do necessário, porque deixaram toda a superestrutura por analisar. Então, talvez seja por isso que os sociólogos mais antigos ainda são referências importantes, mesmo que o que tem de arbitrário nas generalizações seja bem suspeito, pelo menos pra mim. Ainda não tem como saber o quanto do que eles falaram sobre a cultura brasileira é real. 

A história do Brasil continua uma fonte importante para o debate político. Por isso que a direita, nos anos recentes, teve dois projetos de disputa da narrativa, o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, que é uma tentativa de atacar a nova história oficial nos seus alvos mais fáceis, e o Brasil Paralelo, que quer reabilitar boa parte da antiga história oficial a partir de um viés conservador religioso, colocando a colonização como um processo democrático (através da Câmaras Municipais) e o Império como um grande período histórico (por isso o José Bonifácio de Andrada é relido como se fosse um founding father ao estilo americano), além, é claro, da ditadura militar como uma defesa contra um risco real de revolução socialista.  

Tudo isso num nível abaixo do mínimo pra prestar como trabalhos acadêmicos. Eu fico impressionado que a direita, se quisesse, teria sim como estabelecer uma corrente com uma interpretação conservadora da história do Brasil. Os temas não faltam, por exemplo revalorizando o sistema parlamentar do Império, fazendo uma ligação entre o autoritarismo do Vargas e o estatismo econômico, mostrando a ideologia stalinista da maioria das forças políticas que lutaram contra a ditadura etc. E existem vários autores que fizeram pesquisas nessas linhas. Mas o caminho que a extrema-direita populista brasileira preferiu foi, ao contrário do que pregam, fazer cultura de massa, em vez de atuar na "alta cultura", disputando com a versão hegemônica atual, que se tornou hegemônica porque produziu obras relevantes.  

Esse texto não tem conclusão. Pra fingir que tem, eu podia dizer que a gente só consegue pensar nos trabalhadores e classes dominadas como sujeitos sociais no Brasil se conseguir ver isso no passado, e que tem muito trabalho à frente pra gente pensar a nossa cultura, se a gente não olhar pra ela como "explicação" da sociedade atual, pra bem ou pra mal. 

Comentários

Cristian disse…
Você escreveu coisas que sempre me importunaram. Chega a ser absurdo esses autores terem teses creditadas como científicas dado o grau de generalização aos saltos e sem qualquer evidência. E o que você acha crítica do Jessé de Souza naquele "Tolice da inteligência brasileira"? Ele critica alguns marxistas por ignorarem essa questão que você também citou, da superestrutura (daí chama eles de economicistas, tipo o Chico de Oliveira e o Paul Singer)
rodrigodoo disse…
Eu nunca li o Jessé. Ele também bate nos intelectuais paulistas, mas de outro ponto de vista. Eu posso estar errado, mas a minha impressão é que ele critica os conceitos de populismo, patrimonialismo etc com a motivação de impedir que usem esded conceitos pra criricar o PT, dizendo esse tipo de crítica seria pela direita. Sendo que o Faoro, Florestan etc foram críticos do neoliberalismo na época do FHC também
Cristian disse…
É,também acho que isso é mesmo, toda aquela importância que ele dá ao conceito de corrupção é inflada pra blindar o PT etc.
Um exemplo daquilo que ele chama de economicismo é a tese do Roberto Schwarz de que a contradição fundamental no Brasil escravista era entre senhor e escravo, deixando uma terceira classe, os homens livres, de "fora" das relações sociais de produção, daí o favor, a dependência dos homens livres em relação aos proprietários serem a mediação universal, que abrangeria todas as classes e instituições (o que Faoro chama de patrimonialismo e seria o conceito de corrupção criticado pelo Jessé).
Mas acho que isso também dá uma conotação derrotista pra luta de classes brasileira kkkkk
Guilherme disse…
Jogando no ar sem muita reflexão agora, mas tenho a impressão que o projeto da trilogia "Escravidão", obra de vulgarização da historiografia do jornalista Laurentino Gomes, tem um esforço consciente de preencher essa lacuna que vc aponta. Tenta mostra o negro escravizado como sujeito de sua própria história, ator de revoltas e transformação. O problema que me aparece é que ao olhar a história das revoltas brasileira só chegamos a massacres, então o axioma da passividade do povo ("Os bestializados"), com o único protagonismo nas revoltas, tende a se confirmar... Em outro ponto eu entendo sua crítica a coisa do "jeitinho" (patrimonialismo e personalismo) que esses autores ao diagnosticarem na classe dominante, universalizam para o povo em geral. Porém esses valores compõem instituições, e eu lembro do estudo da ética dos agentes jurídicos e dos polícia do prof. Roberto Kant de Lima que possibilitou ele "prever" o funcionamento da lava-jato, e o fracasso várias tentativas de reformas na burocracia recentes. Ele aponta que não é o "neoliberalismo" que impede um sistema de justiça mais "democrático", mas são as próprias raízes oligárquicas na estrutura desse sistema ("inquisitorial" segundo ele) que antecede problemas relativos as distorções do mercado e da luta de classes.