Essa é uma tradução de uma parte do artigo do marxista canadense Michael Lebowitz, O “marxismo analítico” é marxismo?. A versão integral está aqui.
O
marxismo analítico despertou alguma atenção na década de 1980,
mas hoje, com exceção do Olin Wright, não está
mais no centro dos debates. A maior influência desse tipo de
abordagem é a incorporação acrítica de métodos da sociologia
acadêmica e das ciências naturais para a análise da sociedade, e é
por isso que eu tive interesse de traduzir essa crítica.
Logicamente, isso não quer dizer que qualquer pesquisa feita com
metodologias que tenham pressupostos diferentes do marxismo precisam
ser rejeitadas, e sim que elas precisam ser assimiladas criticamente,
o que muitas vezes não é feito. Não é difícil a gente ver alguma pesquisa científica isolada ser usada como bandeira pra “provar”que tal ou tal posição histórica do marxismo tem que ser sumariamente aceita ou rejeitada.
Antes
de apresentar a tradução, umas palavras sobre a filosofia analítica
e sobre o efeito das teses do marxismo analítico na teoria marxista.
A
corrente analítica começou no começo do século XX, com as obras de
Bertrand Russell e George Edward Moore, sendo que vinte anos antes Gottlob
Frege já havia formulado teses que foram as suas precursoras. A
problemática fundamental na época era a lógica, principalmente a lógica
matemática. Em rejeição à filosofia idealista, Russell e Moore se
inspiraram na tradição empirista inglesa para tentar formular uma
filosofia clara e rigorosa.
O procedimento principal, que deu o nome à corrente, é a análise, ou
seja, a investigação das proposições para avaliar se elas se conformam
aos procedimentos da lógica formal. O objetivo era ser um antídoto à
especulação desenfreada que eles viam no idealismo. Por isso, as obras
mais importantes da filosofia analítica, como os Principia Mathematica de Russell ou o Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, giram em torno de dar definições rigorosas aos conceitos e a estabelecer a sua relação.
A
primeira fase da filosofia analítica, que durou até a década de 1920,
foi voltada principalmente à lógica e à matemática. A segunda fase, a
partir de 1928, quando o Círculo de Viena (Schlick, Carnap etc), inspirado
na filosofia empirista e neokantiana, deu início ao positivismo lógico,
se voltou para a análise da linguagem. Nesse momento, o objetivo era
"limpar" a linguagem de concepções metafísicas, e estabelecer o
significado das proposições. O Círculo de Viena foi perseguido pelos
nazistas, justamente porque mostrou o caráter irracional da propaganda
nazista sobre o "sangue" e a "raça".
Depois
do fim da Segunda Guerra Mundial, a filosofia analítica passa a
analisar a linguagem comum, na segunda filosofia de Wittgenstein (a
partir das Investigações Filosóficas), e na de Austin, Quine etc. Nos
anos 1950, a filosofia analítica passa a ser reconhecida como uma
tradição filosófica, e se torna a principal corrente nos países
anglo-saxônicos, e ocorre uma diversificação maior dos seus temas, por
exemplo passando para a filosofia da mente, ética e filosofia
política.
A
crítica marxista à tradição analítica, principalmente nas obras da
Escola de Frankfurt e pelo Lukács, vê na análise rigorosa e de detalhe
dos analíticos uma autolimitação da filosofia, que passa a funcionar
como uma disciplina especializada, se abstendo de análises globais sobre
o mundo. A crítica radical a qualquer proposição que não pudesse ser
verificada significou também a rejeição de conceitos como classes,
totalidade, determinação etc que são básicos para a compreensão da
sociedade.
Quando
os critérios da filosofia analítica são levados para o marxismo, eles
"achatam" a análise, porque uma parte dos pressupostos da dialética não
se presta à redução empirista a "fatos". Nas palavras do Adorno, em Introdução à Controvérsia sobre o Positivismo na Sociologia Alemã:
Ora, é quase tautológico que o conceito de totalidade não pode ser apontado de igual modo como aqueles facts dos quais se destacou como conceito.
Os
principais campos em que isso acontece são a economia (em que eles
tentam reinterpretar as teses marxistas nos termos da teoria
neoclássica), a sociologia (em que os termos são os da sociologia
formalista) e a história (em que é destruída qualquer possibilidade de
pensar a causalidade da sucessão dos modos de produção). O artigo do
Lebowitz trata do Roemer escrevendo sobre economia e o Elster sobre
sociologia, e essa crítica do Mandel ao Elster é um exemplo da crítica
às análises marxistas analíticas sobre história.
O
marxismo analítico também é incapaz de fazer uma análise concreta sobre o
papel e o conteúdo das chamadas superestruturas, deixando de cobrir áreas da ética,
da estética, entre outras. Para a compreensão das superestruturas, seria
necessária uma teoria da causalidade que não pode ser alcançada com a
simples transposição da causalidade mecânica das ciências naturais. Como
o Althusser demonstrou, no marxismo opera a causalidade estrutural,
e ela só pode ser apreendida através da análise do todo estruturado. É
isso, por exemplo, que permite o Olin Wright traçar uma estratégia para a transição ao socialismo em que o Estado é visto como uma instituição neutra, que pode ser usada para limitar o capitalismo.
A consequência, nas palavras do Lebowitz é que
O que torna o marxismo analítico antimarxista é que as crenças e insights absorvidos de Marx foram incorporados dentro de uma framework antimarxista, e as partes adquiriram propriedades desse todo.
As notas de referências estão no final do PDF original.
Individualismo
Metodológico e Microfundações
No centro do marxismo
analítico está o imperativo categórico: não haverá explicação
acima do nível da unidade individual. Assim, Elster abre o seu
Making Sense of Marx
anunciando que ele vai começar “declarando e justificando o
princípio do individualismo metodológico”. A doutrina não faz
concessões: "todos os fenômenos sociais – a sua estrutura e
mudança – são explicáveis, em princípio, de formas que envolvem
somente indivíduos – suas propriedades, seus objetivos, suas
crenças e suas ações.”
Para explicar, Elster
diz, é necessário “fornecer um mecanismo para abrir a caixa preta
e mostrar os parafusos e correias, as engrenagens e roldanas, os
desejos e crenças que geram os resultados agregados” (Elster,
1985, 5). Consequentemente, o individualismo metodológico troca o
nível macro pelo micro, e rejeita uma explicação que não proceda
dos indivíduos; ele está em oposição ao coletivismo metodológico,
que “assume que existem entidades supraindividuais que são
anteriores aos indivíduos na ordem explanatória" (6).
Contudo, como Elster
sabe muito bem, as discussões de Marx sobre “humanidade”,
“capital” e, especificamente “capital em geral”, são
inconsistentes com essa doutrina do individualismo metodológico.
Citando uma das declarações de Marx sobre a competição nos
Grundrisse, Elster comenta: "Não se poderia desejar uma
negação mais explícita do individualismo metodológico" (7).
Mas ele imediatamente invoca uma autoridade alternativa - John
Roemer.
A esse respeito, é
importante reconhecer que Elster leu Marx atentamente, e que não é
a falta de familiaridade com as passagens importantes (mesmo que as
suas interpretações sejam bem questionáveis, às vezes), e sim a
rejeição delas como graves erros e “quase-nonsense” que
é a base dos seus argumentos. O que é resgatado é o Marx que “faz
sentido”, o Marx que soa como um individualista metodológico.O
projeto de Elster, simplesmente, é se livrar do Marx ruim e
preservar o bom – a separação entre o framework
desorientado e o que ele vê como válido em Marx.
Os mesmos temas podem
ser encontrados no ensaio de Roemer sobre o método do marxismo
analítico. Roemer declara: "a análise marxista exige
microfundações” (Roemer, 1986a, 192). Como, ele pergunta, podemos
dizer que a entidade capital faz alguma coisa (por exemplo, divide os
trabalhadores para dominá-los) “quando, numa economia competitiva,
não existe um agente que olhe pelos interesses do capital? Quando os
marxistas argumentam dessa forma, ele diz, são culpados de “um
tipo preguiçoso de raciocínio teleológico” (191). Novamente, o
projeto identificado é a necessidade de encontrar micromecanismos:
"O que os marxistas devem fornecer são explicações de
mecanismos, no nível micro, para os fenômenos que eles dizem
resolver com razões teleológicas" (192).
A lógica por trás
dessa posição marxista analítica pode ser vista mais claramente na
resposta de Phillipe Van Parijs à descrição da sua posição como
“marxismo neoclássico”. Notando o contraste entre “explicações
através do homem racional (ou individualistas) e estruturais (ou
sistemáticas)”, Van Parijs indica que as explicações estruturais
que se referem a um imperativo estrutural (por exemplo, uma exigência
que vem “diretamente do sistema”) são “rejeitadas sem
ambiguidade pelo “marxismo neoclássico” (Van Parijs, 119). Por
que? Porque “nenhuma explicação de B por A é aceitável, a não
ser que se especifique o mecanismo pelo qual A gera B”.
Ainda assim,
“mecanismo” tem um sentido muito específico para Van Parijs
aqui. Por exemplo, as proposições que podem ser derivadas do jogo
coletivo estruturado do capital com o trabalho assalariado falhariam
nesse teste de aceitabilidade. Isso fica claro na proposição
seguinte: “Ou, equivalentemente, nenhuma teoria explicatória é
aceitável, a não ser que ela forneça microfundações.'1 (como a
proposição II é equivalente à proposição I é uma coisa que Van
Parijs considera tão autoevidente que nem precisa ser mencionada!)
Falta claramente a essa discussão uma proposição crítica – uma
que declare que “o único mecanismo explicativo é com
microfundações." Esse, é claro, é o único mecanismo pelo
qual podemos ir do I para o II, e é o centro do problema. Porque, se
aceitarmos essa proposição perdida, logicamente se segue que “o
marxismo precisa de microfundações" (120).
Mas por que deveríamos
aceitar a proposição de que as microfundações são o único
mecanismo que pode explicar? Tudo o que temos são asserções. Mas
onde está a aprova? Onde está a demonstração de que o
“coletivismo metodológico” não pode fornecer uma explicação
válida (e, na verdade, melhor)? Onde está a base para descrevê-lo
como desorientado, nonsense, prática científica desastrosa
(Elster, 1985, 4)? Vamos assumir aqui que este ponto, tirando a sua
força do convencionalismo neoclássico, é autoevidente?
Mesmo se os marxistas
analíticos forem capazes de encontrar exemplos de argumentos
funcionalistas ou teleológicos conduzidos no nível supraindividual,
isso não provaria que o coletivismo metodológico leva,
necessariamente, a argumentos funcionalistas ou teleológicos. (Ao
notar que uma explicação coletivista metodológica “frequentemente
toma a forma de uma explicação funcional”, Elster admite que “não
existe conexão lógica” [6].) Na verdade, os próprios Przeworski,
Brenner e Elster exploram jogos coletivos nos Ensaios de Marxismo
Analítico.
Além disso, uma
explicação aceitável individualista metodológica (ou micro) não
constitui uma refutação suficiente de uma explicação de fenômenos
sociais baseada no conceito de entidades supraindividuais. O
argumento de Marx de que a competição entre os capitalistas executa
as leis internas do capital é uma rejeição do individualismo
metodológico e das microfundações – mas não da existência real
dos capitais individuais e microfenômenos. A conclusão de que
somente as microfundações podem explicar os resultados agregados,
assim, exige uma prova muito mais ambiciosa do que o marxismo
analítico oferece.
No fim das contas, é
claro, a prova do pudim é comê-lo. Então, em vez de criticar
abstratamente o reducionismo cartesiano dos argumentos acima, vamos
analisar especificamente a resposta de Elster à negação explícita
do individualismo metodológico por Marx – a obra “pioneira” de
Roemer sobre exploração. Elster descreve essa peça central do
marxismo analítico como uma abordagem “que gera relações de
classe e a relação de capital a partir das trocas entre indivíduos
diferentemente dotados num quadro de competição ... O argumento
esmagadoramente sólido a favor desse procedimento é que ele permite
demonstrar como teoremas o que, de outra forma, seriam postulados sem
fundamento” (Elster, 1985, 7). Mas o que é errado nos assim
chamados “postulados sem fundamento”? Lembre-se que o
procedimento de Marx era começar a sua análise sobre o capitalismo
com o postulado do capitalista e do trabalhador assalariado, nos
quais a relação é especificada a qual em que o trabalhador vende o
direito de propriedade sobre a sua força de trabalho, o que
necessariamente resulta em que tanto o trabalhador trabalha sob
direção do capitalista como que o trabalhador não tem direito de
propriedade sobre o produto do trabalho. Marx, em suma, começa pela
especificação de um estado particular de relações de produção.
Agora podemos
perguntar: de onde vêm esses postulados sem fundamento? E a resposta
é óbvia: da história, da vida real, do concreto real. A venda da
força de trabalho , o trabalho sob direção do capitalista e a
ausência da propriedade dos trabalhadores sobre o produto do
trabalho são as premissas históricas da discussão; e elas são
levadas para a discussão teórica sobre o capitalismo como o ponto
de entrada exógeno. Então, existe realmente um postulado teórico
sem fundamento, a relação capital/trabalho assalariado. O que
também é crítico é como Marx procede a partir dessa premissa. Ele
explora a natureza da interação entre o capitalista e os
trabalhadores no jogo coletivo e gera as propriedades dinâmicas
inerentes a essa relação estruturada.
Agora veja o que Elster
disse sobre a abordagem de Roemer: Roemer vai gerar a relação de
classe a partir dos indivíduos; ele vai demonstrar a relação
capital/trabalho assalariado como um “teorema”. Uma resposta
imediata poderia ser: mas isso é um objeto teórico diferente, o que
Marx toma como ponto de partida, Roemer vê como resultado. Mesmo
assim, é importante lembrar que, na análise dialética de Marx, uma
exigência central é demonstrar que o que era uma mera premissa e
pressuposto (um postulado sem fundamento) da teoria é reproduzido
dentro do sistema – ou seja, também é um resultado. Neste ponto,
tanto Marx como Roemer têm o mesmo objeto – demonstrar a produção
da relação de classe. Mas os seus pontos de partida são
diferentes: Marx começa pela observação das relações concretas,
e Roemer... por onde Roemer começa?
Vamos deixar essa
questão de lado por um momento. Vamos perguntar primeiro: por que
temos que concluir que tanto Roemer como Marx, tendo partido de
lugares diferentes, chegam no mesmo destino? Temos que concluir que a
chegada bem-sucedida de Roemer (a derivação da relação de classe
a partir de indivíduos atomísticos) prova que não tem como chegar
até aí vindo do ponto de partida de Marx? É óbvio que não.
Concluir isso seria confundir explicação com necessidade. No
máximo, a chegada de Roemer vai demonstrar o argumento de Marx de
que a competição executa as leis internas do capital – ou seja,
de que muitos capitais, a forma necessária de existência do
capital, manifestam através da competição a natureza íntima do
capital. Por outro lado, se tivermos a derivação de Roemer,
precisamos da de Marx?
Mas existe uma questão
implicada aqui: Roemer realmente chega no mesmo ponto que, para Marx
é tanto premissa como resultado – as relações capitalistas de
produção historicamente dadas? Agora, vamos observar o ponto de
partida de Roemer. Elster já nos disse: "indivíduos
diferentemente dotados." Mas deixemos Roemer explicar melhor.
Respondendo à crítica de Nadvi (1985), ele indica que o seu modelo
“'explicou' algum fenômenos, derivando-os de dados logicamente
anteriores”. Em GTEC [Roemer, 1982], os dados são: propriedade
diferencial dos meios de produção, preferências e tecnologia. Tudo
é dirigido por esses dados; classe e exploração são explicados
como consequências de relações de propriedades iniciais"
(Roemer, 1986b, 138). Vemos, não surpreendentemente, que Roemer
também parte de “dados logicamente anteriores” que não são o
assunto da sua análise (ou seja, “postulados sem fundamento”).
Acontece de serem os mesmos dados logicamente anteriores com que a
economia neoclássica (em particular a teoria neoclássica do
equilíbrio geral) começa. E Roemer propõe que, se baseando nessas
mesmas premissas neoclássicas, ele conseguiu demonstrar a existência
da exploração e das classes – um caso clássico de atingir a
economia neoclássica com o seu próprio torpedo.
Vamos pensar, então,
sobre esses dados logicamente anteriores. (Esse sucesso em particular
pode ser um gole de veneno para o marxismo.) De onde eles vêm?
Roemer responde: da história. "O processo histórico que cria
as dotações iniciais de onde o meu modelo começa não é um objeto
da minha análise. Esse é um tópico para um historiador” (Roemer,
1986b, 138). Assim, a história formou um grupo de indivíduos que,
dadas as preferências e tecnologias, têm diferentes dotações de
propriedade. É assim? A história nos apresentou um grupo de
indivíduos atomísticos que não têm conexões anteriores, nem
interações anteriores – indivíduos logicamentes anteriores à
sociedade? Óbvio que não. Em vez disso, o que vemos é que um
analista decidiu modelar os indivíduos como se eles estivessem
inicialmente fora da sociedade, e então tivessem entrado na
sociedade para fazer trocas. O ponto de partida, então, não é a
história, e sim a história mediada por um pressuposto ideológico,
identificado por Marx já em 1843 (Marx, "A Questão Judaica").
Agora, é fácil entender uma operação assim quando é conduzida
por um economista neoclássico – mas, por um marxista?
Mas resposta
instrumentalista de Roemer seria que, se o modelo funcionasse para
explicar os fenômenos desejados, então claramente o “modelo fez
as abstrações certas: ele ignorou coisas que não são cruciais
para o assunto e focou a nossa atenção corretamente”(Roemer,
1986b). Metodologicamente, essa prática não é reprovável; Marx
também faz abstrações e coloca de lado questões que concernem aos
membros do grupo ou coalizão. Porém, muitos marxistas pensarão que
a ideia de que “a sociedade” é uma vítima apropriada para a
Navalha de Occam é problemática. Mesmo assim, em vez de debater
essa questão, é mais pertinente avaliar se o modelo conseguiu
realmente o seu objetivo – se, em suma, o modelo de Roemer faz “as
abstrações certas”.
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