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Mentiras dos socialistas sobre o feminismo radical


Meus agradecimentos à Mari e à Gaia, que leram e conversaram comigo sobre essa postagem enquanto eu escrevia. A Mari já escreveu uma postagem sobre o que acontece na prática com as mulheres em organizações de esquerda, mas ainda não publicou.



Essa figura é uma obra-prima. Conseguiram resumir em um meme toda a política anarquista e marxista sobre a questão da mulher. Se ninguém recua, pra onde ela tá avançando? 

Sem querer me estender muito, porque eu poderia ficar mostrando citações do tipo por umas 20 páginas, eu queria somente colocar aqui um trecho desse documento das Mulheres Radicais, o organização irmã do FSP (Partido da Liberdade Socialista), dos EUA. Ela é ainda mais importante porque o FSP provavelmente, de todas as organizações marxistas, é a que se comprometeu mais seriamente com o feminismo (se definem como feministas socialistas), e deve ser a única em que a maioria da direção é formada por mulheres. Mesmo assim, elas conseguiram resumir num pequeno texto todas as calúnias repetidas sobre o feminismo radical nos últimos 40 anos:

No centro dos ataques às pessoas transgênero está a noção feminista radical tradicional de determinismo biológico, que interpreta os humanos e a vida humana a partir de um ponto de vida estritamente biológico - defendendo que biologia é destino. A visão delas, de que a inferioridade das mulheres é baseada na sua biologia e que os homens são o inimigo, é a imagem invertida do ódio patriarcal ás mulheres. A base do feminismo radical é ver os homens como o problema, pintando as mulheres como vítimas naturais dos homens. 

Tá fora de cogitação que isso seja um "erro". É uma política deliberada de falsificar a política feminista radical.


Na minha visão, nós, que somos mulheres dentro de sistema de realidade, nunca seremos livros, até que o delírio da polaridade sexual seja destruído, e até que o sistema de realidade baseado nela seja erradicado inteiramente da sociedade e da memória humanas. Esta é a noção de transformação cultural no coração do feminismo. Essa é a possibilidade revolucionária inerente à luta feminista Do meu ponto de vista, a nossa tarefa revolucionária é destruir a identidade fálica nos homens e a não-identidade masoquista nas mulheres - ou seja, destruir as realidades polares dos homens e mulheres como conhecemos, para que essa divisão dos corpos humanos em dois campos - um campo de batalha e outro, um campo de concentração - não seja mais possível. A identidade fálica é real e deve ser destruída. O masoquismo feminino é real e deve ser destruído. As instituições culturais que materializam e reforçam essas aberrações interligadas - por exemplo, as leis, a arte, a religião, os Estados nacionais, a família, as tribos ou comunas baseadas no direito patriarcal - essas instituições são reais e devem ser destruídas. Se não forem, seremos destinadas como mulheres à inferioridade e subjugação perpétuas.

A realidade é que eu, em alguns anos de militância anarquista e depois comunista, nunca vi nenhuma pessoa que fala em libertação da mulher, de um ponto de vista socialista, lendo ou criticando nenhum material feminista radical. Inclusive eu fui recentemente descobrir os nomes das autoras, sobre o que elas escreveram e etc, e só porque eu fui ler as feministas radicais pra entender as críticas à teoria queer (já que os marxistas costumam capitular, como vou mostrar mais á frente). É como se elas não existissem pra esquerda.

O que prevalece é a ladainha de que as feministas radicais são contra os homens, porque acham que eles são por natureza violentos e tal. Mais uma vez, definem o feminismo em relação aos interesses dos homens, ao que é "aceitável" para os homens, e não em relação à tarefa da libertação das mulheres.


Marxismo, anarquismo e feminismo socialista

A posição majoritária na extrema-esquerda sobre a questão da mulher é a marxista. Mas, como não existe "marxismo em geral" (o marxismo é um terreno de luta teórica), nem mesmo é o ponto alto atingido pelo Engels, no Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, é a versão que veio da Internacional Comunista.

Se o livro do Engels é bastante criticável, defendendo a tese errada de que a opressão da mulher começou com o surgimento da propriedade privada, ele pelo menos colocou a reprodução e a família no centro da teoria. Foi depois a Shulamith Firestone, na minha opinião, que conseguiu superar o Engels, mostrando que a base do patriarcado é o controle sobre o processo de reprodução.

Na tradição da Segunda Internacional, que depois passou pra Internacional Comunista, nada disso foi levado em conta. Se você ver o que a Clara Zetkin e a Alexandra Kollontai fizeram, foi relacionado à situação das mulheres operárias. Ou seja, a opressão específica sofrida nas relações de trabalho por serem mulheres. 

Assim, a posição hegemônica no marxismo é de negar que exista a questão da mulher como tal, ou seja, alguma forma de dominação independente da exploração econômica. A LIT-QI, corrente internacional do PSTU, numa polêmica rara contra as feministas socialistas, fala isso com todas as letras:

Consideramos o feminismo como a III Internacional fazia, como uma corrente burguesa. Tentar construir um feminismo socialista é querer unir as mulheres independentemente da classe a qual pertencem, é cair em um desvio frentepopulista. Reivindicamos a elaboração da III Internacional, que chamava a lutar pelas bandeiras das mulheres, a abrir as fileiras dos partidos comunistas a elas, mas, ao mesmo tempo, chamava a combater o feminismo como corrente burguesa.

Corrente burguesa. Às vezes a gente lê, por exemplo, a Alexandra Kollontai, e ela usa a expressão "feminismo burguês", e subentende que ela se considerava feminista proletária. Nada disso. Ela era contra a existência de organizações autônomas das mulheres. A Resolução que ela escreveu junto com a Clara Zetkin para o IV Congresso da Internacional Comunista diz assim:

O comunismo criará uma situação na qual a função natural da mulher, a maternidade, não entrará em conflito com as obrigações sociais e não impedirá seu trabalho produtivo em proveito da coletividade. Mas o comunismo é, ao mesmo tempo, o objetivo final de todo o proletariado. Consequentemente, a luta do operário e da operária para esse fim comum deve, no interesse de ambos, ser conduzida em comum e inseparavelmente. 

Nos anos 1960, sob a influência do feminismo, houve duas mudanças importantes em algumas correntes marxistas. 

Uma foi a análise sobre o papel do trabalho doméstico na reprodução do capital, feita com mais sucesso pela Maria Rosa Dalla Costa. Foi uma iniciativa para estender o conceito de trabalho para além das indústrias, e na prática levou a uma política radical. A Maria Rosa era do movimento autonomista italiano, e nos anos 1970 aconteciam campanhas nos bairros, por exemplo, calote em massa dos aluguéis. Nesse cenário, uma exigência baseada na teoria dela era de que o Estado pagasse o trabalho doméstico.

A outra mudança foi  surgimento do feminismo socialista. Dizem que quem criou o conceito foi a CWLU (União pela Libertação das Mulheres de Chicago), uma associação formada por mulheres comunistas de origem trotskista (romperam com o SWP) e maoísta (PLP). 

O feminismo socialista tenta romper com os limites do marxismo da Internacional Comunista, de certa forma "traduzindo" a política feminista para o aparato conceitual marxista. Por exemplo, quem nunca ouviu a defesa da legalização do aborto ser feita a partir de um ponto de vista de classe (as mulheres ricas podem abortar em clínicas clandestinas, a proibição é pra criminalizar as pobres)? Essa corrente também levou para o marxismo a preocupação com a sexualidade e com a violência contra a mulher, que eram quase ausentes no marxismo tradicional.

Hoje em dia, as organizações mais importantes que reivindicam o feminismo socialista são o Secretariado Unificado da Quarta Internacional (que aliás esteve à frente da criação da Marcha Mundial das Mulheres no Brasil) e o FSP americano, fundado pela Clara Fraser. O FSP chegou até mesmo a participar das discussões sobre a legislação antipornografia proposta pela Andrea Dworkin e pela Catharine McKinnon.

Tanto a análise do trabalho doméstico quando a tentativa de criar um instrumental marxista para analisar a problemática feminista eu considero como grandes conquistas. Mesmo que eu (como eu vou falar mais adiante) ache que o marxismo é insuficiente para entender o patriarcado, a ajuda dessas investigações é fundamental pra gente entender o aspecto da exploração, que está relacionado com ele.

No caso do anarquismo, pra ser muito sincero, foi um paralelo e um reflexo do que aconteceu com o marxismo. Além de algumas pessoas que falaram da questão da mulher, como a Louise Michel e a Emma Goldmann, a primeira organização anarquista de mulheres foi as Mujeres Libres, formada em 1934 na Espanha (ou seja, numa época em que quase todos os maiores partidos comunistas tinham algum departamento ou frente de mulheres. 

O que hoje se chama de anarcofeminismo são geralmente duas coisas: ou o trabalho das organizações anarquistas plataformistas no movimento de mulheres (que é até mais fraco que o das correntes marxistas), ou os pequenos grupos contraculturais de feministas anarquistas.

O que todos eles têm em comum? Ou melhor, porque todos esses setores atacam o feminismo radical?  A resposta é muito simples: para manter dogmaticamente a ideia de "unidade da classe trabalhadora", todas essas teorias precisam necessariamente dizer que os homens da classe trabalhadora não se beneficiam da opressão da mulher. 

Então, no fundo todas essas teorias, se forem vistas do ponto de vista da polêmica central no feminismo, são variantes do feminismo liberal. A diferença é que, em vez de só defender a igualdade nos direitos políticos, também defendem nos direitos trabalhistas e sociais em geral. Ou seja, é uma luta por igualdade (mesmo que seja no socialismo), e não por libertação (porque aí teria que se responder a grande pergunta: se libertar de quem?).

Que os homens se beneficiam economicamente da dominação das mulheres já dá pra perceber pela própria forma-salário. O salário é o valor necessário para reproduzir a força de trabalho - dentro da família patriarcal. O que quer dizer não só que o trabalho doméstico é realizado de graça pelas mulheres, como também que o valor necessário para sustentar a mulher e os filhos do trabalhador pertence a ele. E que os salários das mulheres são tradicionalmente mais baixos porque servem para complementar o salário do marido, mantendo elas em situação de dependência econômica dentro da família.

Isso pra falar só da parte econômica. Se a gente falar sobre o controle da sexualidade das mulheres, que é o foco do feminismo radical, aí já é covardia! As mulheres são socializadas para serem objetos sexuais dos homens na aparência e no comportamento desde a infância. Se o cara quiser estuprar uma mulher e não quiser ter o trabalho de minimamente criar uma situação em que socialmente a "culpa" seja dela, é só dar dinheiro para uma prostituta que funciona do mesmo jeito. 

Por não ter uma teoria própria que dê conta do patriarcado, todas as correntes marxistas que intervém no movimento feminista acabam engolido várias modas que aparecem. Um exemplo, mais uma vez, é o PSTU, que nas Teses para o I Encontro do Movimento Mulheres em Luta, propôs um documento sobre a questão trans totalmente baseado na teoria queer, ou seja em total contradição com o marxismo. Um caso mais sem noção ainda é o do WWP (Partido Mundo Operário) dos EUA, que tem na sua direção Leslie Feinberg, uma pessoa trans não-binárix, ao mesmo tempo em que apoia regimes um pouquinho menos libertários, como os da Coreia do Norte, Síria, Irã ou China. 


As teorias duais

Logicamente que é preciso articular a crítica do patriarcado com a crítica do capitalismo e de todas as outras formas de dominação. 

Hoje em dia, o conceito mais corrente é o de interseccionalidade, ou seja, as interseções entre racismo, dominação de classe, patriarcado etc. A ideia de interseccionalidade é boa como descrição, mas não como explicação de como tudo isso se relaciona, e muitas vezes é utilizada como se todas essas formas de dominação tivessem o mesmo peso e funcionassem da mesma forma. 

Principalmente as feministas influenciadas pelo marxismo tentaram explicar a relação entre patriarcado e capitalismo com as teorias duais. 

Esse nome pode ser meio enganoso, porque uma parte das tentativas de criar teorias duais colocou o patriarcado como uma ideologia. No marxismo, isso significa que o patriarcado seria, então, uma superestrutura cultural, determinado pelo capitalismo, e o capitalismo seria a fonte da opressão da mulher. Essa posição é só uma reformulação da posição marxista tradicional. Aqui no Brasil, o Coletivo de Mulheres Ana Montenegro, ligado ao PCB, defende essa posição. Cuidadosamente, elas sempre falam em "ideologia patriarcal", e nunca em "sistema patriarcal'. 

Outra teorias duais são duais de verdade, colocando o patriarcado como um sistema independente e anterior ao capitalismo, que se relaciona com ele.

Na França, a teoria hegemônica entre as feministas radicais é o feminismo materialista, da Christine Delphy. A Christine Delphy tentou formular uma teoria do patriarcado através da extensão do marxismo. Ela, então, criou o conceito de modo de produção patriarcal, que opera através do trabalho doméstico, e que seria a fonte material da exploração das mulheres pelos homens. E, na nossa sociedade, aconteceria a interrelação entre o modo de produção patriarcal e o modo de produção capitalista. Um dos efeitos disso seria a dupla jornada de trabalho, por exemplo. 

A Christine Delphy, junto com a Sheila Jeffreys, são as teóricas feministas radicais atuais que eu acho que se posicionam melhor politicamente (só o fato da Delphy não ter entrado naquela histeria islamofóbica contra o niqab já mostra isso). Só que o feminismo materialista não me parece uma teoria adequada para analisar o patriarcado. Se perde muita coisa quando se vê o patriarcado como um sistema de opressão fundamentalmente "econômica". 

Esse, aliás, é o mesmo problema da teoria da reprodução social, que parte de uma premissa bem parecida com a do feminismo materialista.  Elas tentam superar a dualidade, mas o que fazem é reduzir a análise do patriarcado aos critérios marxistas de exploração.    

A Catharine MacKinnon, autora de Para uma Teoria Feminista do Estado, e que lutou junto com a Andrea Dworkin pela lei de direitos civis contra a pornografia, faz o que eu acho mais adequado: a teoria dual dela é baseada na relação entre o marxismo e o feminismo radical americano, que coloca a dominação masculina através da sexualidade como a base do patriarcado. Nas palavras dela, "a sexualidade é para o feminismo o que o trabalho é para o marxismo". 

Esse é um ponto de partida para explorar as relações entre patriarcado e capitalismo, e as suas consequências políticas. O próprio fato de existirem duas teorias mostra que as duas são incompletas. Mas, hoje em dia, quando a decadência da superestrutura do capitalismo traz de volta as novidades de sempre do irracionalismo e relativismo, agora com a roupagem pós-moderna e queer, preservar e desenvolver as teorias revolucionárias que surgiram é uma tarefa essencial para reconstruir os movimentos.


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