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Susanne Langer e a estética da dança

 

Um dos objetivos desse blog no começo era mostrar uma abordagem marxista sobre a estética das artes, que não ficasse presa a algumas limitações do Lukács. Por exemplo, é o que eu tentei fazer na série sobre a pintura abstrata. Eu logo encontrei uma dificuldade, que é a orientação da estética marxista, que é principalmente para a literatura, mas pelo menos tem alguma produção boa sobre artes plásticas. No caso da arquitetura, já foi bem mais difícil descobrir o Manfredo Tafuri, e no da música, o que tem de mais conhecido é a polêmica do Adorno em defesa da música de vanguarda. Eu não entendo nada de música, então nem tentei escrever nada (por outro lado, o capítulo bom que fala sobre música do Tomo IV da Estética do Lukács eu encontrei online aqui - os quatro tomos em espanhol dá pra encontrar aqui). Por outro lado, no caso do teatro, até pouco tempo atrás o Gustavo Moreira Alves estava escrevendo no blog dele, o Pensamento em Cena, que infelizmente ele tirou do ar. 

De todas as artes, a mais difícil até agora foi a dança. Me parece que tem sido considerada uma arte "menor" diante da música e muito "feminina". Só recentemente eu soube da Susanne Langer (1895-1985), discípula do Cassirer e influenciada pela filosofia do Whitehead. Muito diferente, pelo menos para mim, que não conheço quase nada da corrente principal da filosofia americana. Mas que eu gostei muito. 

Me parece que o ponto de vista é parecido com o da estética do Goethe que o Lukács poliu pra transformar na sua própria: a arte também traz um conhecimento sobre a realidade, mas com uma grande vantagem: enquanto toda a estética do Lukács parte do princípio da mímesis, a Susanne Langer entende a arte como a articulação do sentimento através de símbolos significativos porém não-discursivos. Ver a arte como mímesis leva a um desequilíbrio da apreciação para o lado do realismo, privilegiando a literatura e o teatro que, por serem discursivos, se aproximam mais da filosofia e da teoria social. Como falar de realismo em música, dança, arquitetura?

Outro ponto em comum é a rejeição ao positivismo. Como eu já falei aqui, a filosofia analítica é incapaz de compreender o que não pode ser analisado com a metodologia das ciências naturais, e faz dessa fraqueza uma força, qualificando como metafísica toda pesquisa que não siga esses critérios. Então, não tive uma grande surpresa quando vi que, além de existir pouca produção sobre a estética da dança, a única contribuição dos analíticos é a classificação formal dos aspectos básicos da dança. A Susanne Langer entende essa limitação, faz essa crítica, e tenta entender de que maneira funcionam os símbolos nas artes.

Para analisar as diferentes formas de arte, ela pega as informações antropológicas disponíveis na época e vai vendo como as formas primitivas de arte vão surgindo, e de que forma elas criam uma realidade artística de aparência onde tentam expressar o conteúdo de sentimento através da forma: o espaço virtual das artes plásticas, o tempo virtual da música, a vida virtual da literatura e, no caso da dança, os poderes virtuais. A explicação da antiguidade da dança, que já existe de forma consumada em povos tribais é justamente a antiguidade da visão mítica do mundo, em que poderes ocultos agem sobre as pessoas e a natureza em geral, e os gestos dos dançarinos expressam o corpo sob a influência desses poderes. 

Aqui vão trechos do livro Sentimento e Forma




A solução dessa dificuldade está em perceber-se que a abstração básica é o gesto virtual, e que esse gesto é tanto um fenômeno visível quanto um fenômeno muscular, isto é, pode ser visto e sentido. O gesto consciente é essencialmente comunicação, como a linguagem. Na escuridão total, ele perde o seu caráter comunicativo. Se estamos em comunhão conosco mesmos, imaginamos seu caráter visível, e isso, é claro, podemos fazer também no escuro; mas para uma pessoa cega, o gesto consciente é tão artificial quanto a fala para um surdo. Nosso conhecimento mais direto da expressão gestual é a sensação muscular, mas a sua finalidade é ser vista. Consequentemente, a ilusão do gesto pode ser produzida em termos de aparência visual ou cinestésica; mas onde na realidade se faz apelo a apenas um dos sentidos, o outro deve ser satisfeito por implicação. Em virtude de o gesto de dança ser simbólico, toda dança destinada a ter significação balética fundamentalmente para as pessoas nela empenhadas, é necessariamente extática. (...) 


Cada dançarino a dança suficientemente para permitir que a sua imaginação a apreenda como um todo; e com sua sensação do próprio corpo, compreende as formas gestuais que são elementos básicos, nela entretecidos. Não pode ver sua própria forma como tal, mas conhece sua aparência - as linhas descritas por seu corpo estão implícitas nas mudanças de sua visão, mesmo que esteja dançando só, e são garantidas pelo jogo rítmico dos seus músculos, a liberdade com que seus impulsos se consomem em movimentos completos e intencionados. Ele vê o mundo em que seu corpo dança, e essa é a ilusão primária de seu trabalho; nesse reino fechado, ele desenvolve suas ideias. 


A dança em seu vigor prestivo é completamente criativa. Os poderes tornam-se aparentes dentro de uma moldura de espaço e tempo; mas essas dimensões, como tudo o mais na esfera balética, não são reais. Da mesma maneira como os fenômenos espaciais na música apresentam-se mais como o espaço plástico do que como os espaços da geometria ou da geografia, assim, na dança, tanto o espaço como o tempo, tal como entram na ilusão primária e ocasionalmente aparecem por direito próprio como ilusões secundárias, são sempre elementos criados, isto é, formas virtuais. (...)


A “postura corporal” dos dançarinos, mantida pela concentração extática para grandes feitos, os de saltar, girar,  bater os pés como pistões, conserva a estrutura de tempo num só todo, e a própria atividade dá origem ao acompanhamento tonal que é ao mesmo tempo um produto derivado musical e um forte artifício de coesão. (...) O elemento tonal é uma atividade da dança, um meio de preencher e vitalizar a estrutura temporal de sua execução. 


Efeitos musicais e pictóricos, que têm sido ampla e variadamente considerados como a essência, o alvo ou os modelos controladores da arte do dançarino, parecem, de preferência, terem se desenvolvido de modo inteiramente independente das artes plásticas ou da harmonia, como elementos de dança com funções estruturais, puramente baléticas. Em virtude da natureza complexa de sua ilusão primária - a aparência de Poder - e de sua abstração básica - o gesto virtual -, a dança primitiva exerce completa hegemonia sobre todos os materiais e recursos artísticos, embora sem explorá-los além de suas próprias necessidades. (...)


A relação entre dança e música é mais óbvia, e tem sido estudada muito mais exaustivamente. Quer uma dança seja ou não acompanhada de música, ela se move sempre em tempo musical; o reconhecimento dessa relação natural entre as duas artes é subjacente à sua afinidade universal. Em desempenhos altamente extáticos, a autonomia temporal da dança não requer uma estrutura musical muito bem feita a fim de dar-lhe ênfase e garanti-la; fragmentos de canto e as batidas atonais de bastões e tambores , meras pontuações de som, bastam. As sensações corporais dos dançarinos, fundindo-se com coisas vistas e ouvidas, com todo o caleidoscópio de figuras (frequentemente mascaradas) e gestos místicos sustentam o grande ritmo. O dançarino individual dança  não tanto com os seus parceiros - eles todos são transformados em seres de dança, ou mesmo em meras partes de um organismo demoníaco - quanto com o mundo; dança com a música, com sua própria voz, com a lança que se equilibra em sua mão como que por um poder próprio, com a luz, e a chuva e a terra.


Mas uma nova exigência é feita à dança quando ela deve encantar não apenas seus próprios executantes, mas uma audiência passiva (as audiências rústicas que fornecem a música cantando e batendo palmas são na realidade participantes: elas não estão incluídas aqui). A dança enquanto espetáculo é geralmente considerada como um produto da degenerescência, uma forma secularizada do que na realidade é uma arte religiosa. Na realidade, porém, ela é um desenvolvimento natural, mesmo dentro dos confins da “consciência mítica”, pois a magia da dança pode ser projetada para um espectador, a fim de curar, purificar, ou iniciá-lo. (...)


Do ponto de vista artístico, esse uso da dança representa um grande progresso em relação ao puramente extático porque, dirigida a uma audiência, a dança se faz essencialmente, e não apenas incidentalmente. um espetáculo e, assim, acerta seu verdadeiro alvo criativo - tornar visível o mundo dos Poderes. Esse objetivo dita toda a sorte de novas técnicas, porque não se pode mais depender de experiências corporais, tensões musculares, momento, as sensações de equilíbrio precário ou os impulsos do desequilíbrio, para dar forma e continuidade à dança. Cada um de tais elementos cinestésicos deve ser substituído por elementos visuais, audíveis ou histriônicos, a fim de criar ilusão extática comparável para a audiência. Nesse estágio , os problemas da dança tribal ou de culto são praticamente aquele do balé moderno: romper o senso de realidade do espectador e erigir a imagem virtual de um mundo diferente; criar um jogo de forças que confronta quem percebe, em vez de engolfá-lo nelas, como acontece quando ele está dançando e sua própria atividade é um dos principais fatores na feitura da ilusão da dança.

(Susanne Langer, Sentimento e Forma. São Paulo: Editora Perspectiva, 1980, pp. 205-9)

Comentários

Thiago Sobral disse…
Do ó, não esta aparecendo os trechos da autora.
rodrigodoo disse…
Valeu, Thiago! acertei aqui
Thiago Sobral disse…
Adorei conhecer essa autora. Valeu Rodrigo.