Pular para o conteúdo principal

Comentários sobre alguns temas da direita brasileira

Essa semana eu li a monografia A História fetichista: o aparelho de hegemonia filosófico Instituto Brasileiro de Filosofia/Convivium (1964-1985). Fiquei pensando numa coisa que de vez em quando me passa pela cabeça, um tipo de história alternativa: vamos dizer que o olavismo fosse mesmo uma direita conservadora, e não um tapa-buraco ideológico/ folha de parreira do populismo de direita. O que eles iam fazer? 

Se eles acreditassem mesmo em recriar a alta cultura no Brasil, uma das primeiras tarefas seria disputar a historiografia. Pelo caráter polêmico e decisivo, cinco momentos da história do Brasil teriam que ser reavaliados e colocados numa nova narrativa:

- a colonização, que teria que ser transformada, de extração das matérias-primas pra vender no mercado mundial, em alguma coisa como uma obra civilizatória cristã. Talvez o Gilberto Freyre pudesse der invocado pra essa leitura mais positiva da colonização.

- o Império, em que a persistência da escravidão e o processo de transformismo (pra usar o conceito do Gramsci) seriam varridos pra debaixo do pano, enquanto o que seria valorizado seria o parlamentarismo "liberal" do Segundo Reinado. 

Pra esse serviço tem gente que já se prestou, como o João Camilo de Oliveira Torres, que escreveu A Democracia Coroada (1957) e Construtores do Império (1968). Aliás, ele seria o melhor antecedente direto pra formar essa hegemonia conservadora, já que os teóricos da República Velha, como o Alberto Torres e o Oliveira Vianna, ou os do Estado Novo, como o Francisco Campos e o Azevedo Amaral, defendiam concepções que hoje só podem sobreviver na extrema-direita.

- colocar a República unilateralmente como golpe, o que é um tema que foi muito usado pelos poucos monarquistas do começo do século XX, e que pode ser encontrado por exemplo, na História do Liberalismo no Brasil (1995) do João de Scantimburgo. 

- se esses conservadores não forem estatistas e defenderem uma política privatizante, seria interessante atacar o varguismo por esse ângulo. Essa era uma preocupação do grupo da revista Convivium. Como vira-latas que eram, atribuíam o estatismo brasileiro e o atraso à herança ibérica, ou seja, a solução seria a "aproximação" com os Estados Unidos. 

- finalmente, colocar o golpe militar como um mal necessário. Essa tarefa foi feita por boa parte da direita brasileira, então o grupo da Convivium não tem o mérito duvidoso da exclusividade.

O grupo da revista Convivium foi a tentativa mais consistente de formular uma corrente conservadora no Brasil. E essa consistência se baseia em duas posições, uma sobre política e outra sobre filosofia.

A primeira, defendida no livro A Consciência Conservadora no Brasil (1965) do Paulo Mercadante, é a tese de que toda a política brasileira, desde o Império, se baseia na conciliação. É lógico que não é verdade, nem mesmo na política institucional, mas essa tese funcionou para criar precedentes históricos para a política que eles defenderam depois do golpe, que seria uma frente de todos os setores "conciliadores" da direita contra o "radicalismo" dos nacionalistas e comunistas. 

Para facilitar essa frente, nada como falsificar as posições dos possíveis aliados, como fizeram com os tradicionalistas católicos, que eles retratavam como conservadores. Mas a corrente católica no Brasil que começa com o Jackson de Figueiredo e vai dar frutos como a TFP e a revista Permanência é reacionária, e inclusive entrou em rota de ruptura com a igreja católica, enquanto os representantes mais moderados acabaram evoluindo para posições de esquerda no mesmo período, junto com a igreja católica como um todo no país, como foi o caso do Alceu Amoroso Lima, do Dom Hélder Câmara e outros. O José Pedro Galvão de Souza, que era integrista, por exemplo, era um dos autores que escreviam para a Convivium.

Essa análise política tem uma fundamentação filosófica, que é a parte mais interessante desse grupo. O Antônio Paim, que é o autor mais importante deles, publicou em 1967 e revisou várias vezes a sua História das Ideias Filosóficas no Brasil. Nesse livro, ele divide a filosofia brasileira em três períodos iniciais. O primeiro é a fase final do tomismo, até o século XVIII. O segundo, a partir da época do Marquês de Pombal, é o do empirismo mitigado. Com esse conceito ele está se referindo a tendências do iluminismo sem a devida fundamentação teórica e com o objetivo de intervir na realidade pra desenvolver o país.

Ele vai ver no empirismo mitigado a raiz de vários fenômenos autoritários na política brasileira, sendo os principais o positivismo e o marxismo brasileiro, que realmente foi muito influenciado pelo positivismo, mesmo que a influência iluminista no período pombalino tenha sido muito mais na forma de um despotismo esclarecido do que através das alas iluministas radicais. 

E o Paim acha que o Brasil chegou à maturidade filosófica na época do Segundo Reinado, através da escola eclética. O ecletismo foi uma filosofia da época da restauração monárquica francesa, criada por Victor Cousin, um tipo de idealismo em "tom menor" que pegava emprestado vários elementos de outras correntes (daí o nome), e que teve como primeiro representante no Brasil o Gonçalves de Magalhães, que também foi o primeiro autor romântico do país. Paim e os outros autores da Convivium vão ver no ecletismo o fundamento pra posição conciliadora que defendem, e vão atribuir à hegemonia eclética o suposto liberalismo do Segundo Reinado. O que não quer dizer que eles tenham se visto como uma continuidade do ecletismo, e sim como um grupo plural, com uma tendência a negar um enfoque único e que buscava analisar a sociedade brasileira à luz da sua matriz cultural. A essa concepção, eles chamavam de culturalismo. 

Na tentativa de provar que existiu uma continuidade da Escola Eclética até eles, eles precisaram "anexar" a Escola de Recife, da década de 1870, colocando ela como fundadora do culturalismo no país, mesmo que, pelo contrário, a Escola de Recife tenha sido evolucionista e muito influenciada pelo materialismo. Tendo dessa forma fabricado uma continuidade, eles podem alegar que representam a legítima tradição filosófica brasileira de mais de um século.

Eles também não ficaram imunes a esse tipo de uso. A extrema direita brasileira tenta se passar por conservadora, e por isso tenta fabricar uma continuidade com a obra do grupo da Convivium. O cara que é o instrumento para realizar essa tarefa é o Ricardo Vélez Rodríguez, que foi da Convivium e é o elo de ligação do grupo com o Olavo de Carvalho. Mas é uma falsa continuidade. Em vez da conciliação, a extrema direita populista defende a ruptura institucional e, em vez do culturalismo e do ecletismo, o núcleo olavista defende uma versão também falsificada (pró-Estados Unidos) do tradicionalismo guénonista (ver o mesmo link anterior). 


Enfim, a monografia é interessante. O que eu não gostei é que, marxista vulgar, ela analisa somente as contribuições sobre política do grupo, descartando os artigos sobre literatura e artes, quando o posicionamento sobre estética é tão importante pra definir uma corrente filosófica. Mas tem muita informação boa lá. 

Comentários