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Manfredo Tafuri sobre as vanguardas e o papel da arquitetura moderna


O Manfredo Tafuri (1935-1994) foi um historiador da arquitetura italiano. No começo da carreira dele, era marxista (os trechos que eu traduzi são do livro mais importante dele, Projeto e Utopia, de 1973), mas depois virou pós-estruturalista. Estou traduzindo porque tem um ponto de vista relativamente raro dentro do marxismo, de rejeição em bloco do modernismo, como o Jameson notou, se eu não me engano, em A Virada Cultural

Sobre a tradução: infelizmente, eu só encontrei a tradução em inglês, que é ruim e, às vezes, difícil de entender. Se alguém tiver o original em italiano e puder me mandar, eu reviso.


Aldo Rossi, Architecture Assassinée, 1976


Em vez de escolher de fato entre a aspiração pela autonomia absoluta e o autoapagamento voluntário em uma missão "classista", a ideologia terminou, na maior parte dos casos e com uma consistência de comportamento surpreendente, oscilando precariamente na fronteira entre essas duas escolhas. 

A aspiração pela autonomia da realização intelectual foi uma continuação do projeto de recuperar a subjetividade expropriada pela divisão capitalista do trabalho. O trabalho intelectual como “serviço classista” foi um projeto de restaurar – indiretamente – a mesma subjetividade para a classe de que ela tinha sido expropriada. Parece que não é preciso sublinhar a “miséria” dessas duas direções ideológicas; aqui, estou apenas expondo o caráter complementar dos seus objetivos. A literatura e a arte como meios de recuperar a Totalidade e transferi-la ao novo sujeito histórico eleito – a classe operária – foram parte de um desígnio que teve lugar na retaguarda do desenvolvimento capitalista. E isso é verdade mesmo que esse desígnio tenha cumprido tarefas precisas dentro deste desenvolvimento.
 
O que é de mais interesse é a forma em que essas duas escolhas (e o compromisso mediando entre elas) se realizaram. Entre todos os movimentos históricos de vanguarda, a autonomia da construção formal não significava mais necessariamente controlar a experiência diária através da forma. Agora, eles estavam dispostos a aceitar a ideia de que é a experiência que domina o sujeito. O problema era planejar o desaparecimento do sujeito, cancelar a angústia causada pela resistência patética (ou ridícula) do indivíduo às estruturas de dominação que se fecham sobre ele, indicar a dócil e voluntária submissão a estas estruturas de dominação como terra prometida do planejamento universal: o paraíso na Terra é realizado através do “desaparecimento do trágico”. 

A salvação não está mais na “revolta”, e sim na rendição sem resistência. Só uma humanidade que tenha absorvido como sua a ideologia do trabalho, que não continue a considerar a produção e a organização como diferentes dela mesma ou simples instrumentos, que se reconheça como parte de um plano geral e que, como tal, aceite completamente que deve funcionar como engrenagem de uma máquina global: só essa humanidade pode expiar o seu “pecado original”. E esse pecado não é ter criado um sistema de meios sem saber como controlar a “revolta dos objetos” contra o seu inventor, como Lowith e o jovem Lukács entendiam a alienação marxista. Em vez disso, esse pecado consiste na insistência “diabólica” do homem em continuar homem, em tomar o seu lugar como uma “máquina imperfeita” num universo social em que o único comportamento consistente é o do puro silêncio.

Essa era exatamente a ideologia que informava os manifestos futuristas, o mecanicismo dadaísta, o elementarismo do De Stijl e o construtivismo internacional. Mas o que é realmente surpreendente nessa ideologia do consenso incondicional é o seu radicalismo ingênuo. Em todos esses manifestos literários, artísticos e cinematográficos a favor da mecanização do universo, não há um que não falhe em surpreender quando comparado com os fins que parece propor. Esses convites a se tornar uma máquina, à proletarização universal, à produção forçada, ao revelarem explicitamente demais a ideologia do plano, não têm como deixar de levantar suspeitas sobre as suas reais intenções.

O “pensamento negativo” enunciou o seu próprio projeto de sobrevivência na sua refutação da dialética hegeliana e na redescoberta das contradições que ela tinha eliminado. O “pensamento positivo” não faz nada para superar a negatividade em si mesmo. O negativo se revela como tal, mesmo na sua “inelutabilidade”. A resignação diante dele é só a primeira condição para tornar possível a perpetuação das disciplinas intelectuais; para tornar possível a redescoberta para o trabalho intelectual (ao preço de destruir a sua “aura”) da tradição da sua estranheza “sagrada” diante do mundo; para dar uma razão, mesmo que mínima para a sua sobrevivência. A queda da razão é agora aclamada como a realização da própria realização da missão histórica da razão. Nesse cinismo, o trabalho intelectual joga as suas cartas no limite ambíguo da ironia. 

A demonstração, além de qualquer dúvida, de que não existe outra forma de nulificar o sujeito humano no sujeito do desenvolvimento, é uma tarefa que tende a preservar a ideologia como o maior projeto cultural. A “neutralidade de valores”, a separação do Geist em relação ao processo geral da racionalização, e a neutralização de qualquer projeto de justificação ética da lógica do sistema, já aconteceram. Elas agora devem se impor com a força de um datum. Podem, pelo menos, demonstrar a sua eficiência. É por isso que qualquer resíduo de valor deve ser violentamente profanado. A luta contra o homem é condicionada pelas necessidades do desenvolvimento e, só se o desenvolvimento encontrar obstáculos – devido à existência de preconceitos tradicionais – será possível propor novamente uma mitologia humana. Ela será, é claro, uma mitologia cínica e regressiva, servindo para quebrar somente uma fraca resistência.

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O fato é que, para os arquitetos, a descoberta de seu declínio como ideólogos ativos, a consciência das enormes possibilidades tecnológicas disponíveis para racionalizar cidades e territórios, junto com o espetáculo diário do seu desperdício, e o fato de que métodos específicos de design se tornam ultrapassados ainda antes que seja possível verificar as suas hipóteses de base na realidade, tudo cria uma atmosfera de ansiedade.

E, ominosamente presente no horizonte, está o maior dos males: o declínio do status "profissional" dos arquitetos, e a sua introdução em projetos em que o papel ideológico da arquitetura é mínimo. Essa nova situação profissional já é uma realidade nos países de capitalismo avançado. O fato, temido pelos arquitetos e só afastado pelas contorções formais e ideológicas mais neuróticas, é somente uma indicação do atraso político desse grupo de intelectuais.

Os arquitetos, depois de terem antecipado ideologicamente a lei de ferro do plano, agora são incapazes de entender historicamente o caminho percorrido; e, assim, eles se rebelam contra as consequências extremas dos processos que ajudaram a colocar em movimento. Pior ainda, eles tentam relançamentos “éticos” patéticos da arquitetura moderna, atribuindo a estes tarefas políticas adaptadas somente a aplacar temporariamente as preocupações, de forma tão abstrata como injustificável.

Em vez disso, há que se reconhecer uma verdade. É que todo o ciclo da arquitetura moderna e dos novos sistemas de comunicação audiovisual surgiram, se desenvolveram e entrarem em crise como uma enorme tentativa – a última feita pela grande cultura artística burguesa – de resolver, no nível cada vez mais ultrapassado da ideologia, os desequilíbrios, as contradições e os atrasos característicos da reorganização capitalista do mercado mundial e do desenvolvimento produtivo.
Ordem e desordem, entendidas dessa forma, não mais se opõem. À luz do seu significado histórico real, não existe contradição entre o construtivismo e a “arte de protesto”, entre a racionalização da construção civil e o subjetivismo do expressionismo abstrato ou a ironia da pop arte; entre o plano capitalista e o caos urbano; entre a ideologia do planejamento e a “poesia dos objetos”.

Por esse viés, o destino da sociedade capitalista não é, de forma alguma, estranho ao design arquitetônico. A ideologia do design é tão essencial à integração do capitalismo moderno em todas as estruturas e superestruturas da existência humana quanto o é a ilusão de ser capaz de se opor a esse design com o instrumento de um novo tipo de design ou de um “antidesign” radical.

É até mesmo possível que existam muitas tarefas específicas para a arquitetura. O que é do maior interesse para nós aqui é pesquisar como é possível que, até agora, a cultura inspirada pelo marxismo tenha, com um cuidado e uma insistência que poderia ser melhores usadas alhures, negado com culpa ou encoberto uma simples verdade. A verdade é que, assim como não pode haver uma economia política de classe, mas somente uma crítica de classe à economia política, também não pode haver estética, arte ou arquitetura de classe, e sim uma crítica de classe da estática, da arte, da arquitetura, da própria cidade.

Uma crítica marxista coerente da ideologia da arquitetura e do urbanismo não pode menos que desmistificar as realidades contingentes e históricas, vazias de objetividade e universalidade, escondidas por trás dos termos unificadores “arte”, “arquitetura” e “cidade”. Da mesma forma, deveria reconhecer os novos níveis atingidos pelo desenvolvimento capitalista, com o qual deveriam se confrontar as descobertas dos movimentos de classe.

A primeira das ilusões intelectuais a ser desfeita é a que tenta, somente através da iamgem, antecipar as condições da arquitetura “de uma sociedade liberada”. Quem propõe tal slogan, evita se perguntar se, à parte o utopismo óbvio, esse objetivo é atingível sem uma revolução da linguagem, do método e da estrutura da arquitetura, que vai muito além da simples vontade subjetiva ou da simples atualização da sintaxe.

A arquitetura moderna selou o seu próprio destino ao fazer de si mesma, dentro de uma estratégia política autônoma, a portadora dos ideais de racionalização pelos quais a classe operária só é afetada em segunda instância.

A inevitabilidade histórica desse fenômeno pode ser reconhecida. Mas, ao reconhecê-la, não é mais possível esconder a realidade que torna dolorosamente inúteis as escolhas dos arquitetos, desesperadamente atados às ideologias disciplinares .

"Dolorosamente inúteis", porque é inútil lutar por uma saída, estando completamente preso e confinado. De fato, a crise da arquitetura moderna não é o resultado de cansaço ou dissipação. Em vez disso, é uma crise da função ideológica da arquitetura. A "queda" da arte moderna é o testemunho final da ambiguidade burguesa, dividida entre objetivos "positivos" e a autoexploração impiedosa da sua própria comercialização objetiva.

Nenhuma “salvação” pode mais ser encontrada nela. Nem perambulando sem fim no labirinto de imagens tão multivalentes que terminam em silêncio, nem aprisionada no silêncio insistente do conteúdo geométrico com a sua própria perfeição.

Por isso, é inútil propor alternativas puramente arquitetônicas. A busca por uma alternativa dentro das estruturas que condicionam o próprio caráter do design arquitetônico e, na verdade, uma contradição em termos.
A reflexão sobre a arquitetura, à medida em que é uma crítica da ideologia concreta “realizada” da própria arquitetura, só pode ir além dela e chegar a uma dimensão especificamente política. 

Só nesse ponto – ou seja, depois de ter se livrado de qualquer ideologia disciplinar – é permissível encarar a questão dos novos papeis do técnico, do organizador da construção civil, e do planejador, dentro do compasso das novas formas do desenvolvimento capitalista. E, assim, também considerar as possíveis tangências ou contradições inevitáveis entre esse tipo de trabalho técnico-intelectual e as condições materiais da luta de classes. 

A crítica sistemática das ideologias que acompanham a história do desenvolvimento do capitalismo é, assim, somente um capítulo dessa ação política. Hoje, de fato, a principal tarefa da crítica ideológica é se livrar dos mitos impotentes e inefetivos, que permitem a sobrevivência de esperanças anacrônicas no design.


(Architecture and Utopia, The MIT Press, 1976, pg. 72-77 e 176-182.) 

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