Eu tô lendo a
coletânea Sociologia, do Della Volpe, e vou falar de umas
impressões que eu tive.
Eu vou falar mais sobre
estética, mas a estética materialista que ele tentou formular
sistematicamente é parte de uma interpretação global do marxismo,
que tem paralelos interessantes com o althusserianismo.
E qual é essa
interpretação? Ele tenta formular uma leitura rigorosamente
materialista do marxismo, projeto que envolve uma crítica à
influência do Hegel, que é anterior à feita pelo Althusser. Para o
Della Volpe, a “linha evolutiva” não é Hegel-Feuerbach-Marx,
como no “materialismo dialético” “oficial” dos partidos
comunistas ou, como o Althusser defenderia depois,
Demócrito-Spinoza-Marx, e sim Aristóteles-Galileu-Marx. A crítica
ao idealismo não passa pela ideia de “inversão” da dialética,
conservando o seu método mas sobre bases materialistas, e sim por
uma crítica à “tautologia real”, que cria conceitos
que são hipóstases de objetos reais, crítica que ele viu pela
primeira vez na história na Crítica da filosofia hegeliana do
direito, do jovem Marx (essa é mais uma diferença com o
Althusser, porque ele imagina o “corte epistemológico”
acontecendo tão cedo, em 1843, que não faz sentido falar em um
“jovem Marx” idealista).
Essa forma de colocar a
crítica ao idealismo não é uma crítica imanente, e dá margem
para uma interpretação positivista do marxismo, em que o
idealismo é rejeitado juntamente com as categorias dialéticas, e
elas passam a ser substituídas por categorias formalistas tiradas
das “ciências humanas”. Esse tipo de desvio é comum no
marxismo italiano, por exemplo no Labriola ou no Bordiga, e parece
que tem a ver com uma reação exagerada à filosofia idealista
hegemônica no país. Mais à frente vou tentar explicar como eu vejo
as consequências dele na dissolução do dellavolpismo.
Como toda estética
marxista, a do Della Volpe é uma estética objetiva, ou seja a
questão da qualidade de uma obra de arte não é dependente do gosto
individual, e sim de critérios objetivos sobre como a obra reflete
as tendências da realidade. Por isso, a arte é considerada uma
forma de conhecimento, paralela às ciências, diferente das
estéticas idealistas que criam uma hierarquia entre arte e filosofia
(de Platão a Hegel) ou baseiam a arte numa intuição suprarracional
(como a tradição romântica irracionalista de Novalis a Heidegger),
ou reduzem a arte à pura criação de formas (Reigl, Worringer,
Pound).
No marxismo, o
conhecimento obtido através da arte é principalmente o conhecimento
sobre a sociedade, e a sociedade está presente não só no conteúdo
da arte, como na forma, porque os gêneros artísticos são
históricos e refletem as transformações sociais. Seguindo a
tradição materialista de Lessing, Diderot e Goethe, o elemento
principal do reflexo da sociedade na arte são os tipos, ou seja, as
categorias sociais construídas através das formas artísticas.
Esse primado do
conteúdo sobre a forma fez com que a maior parte da crítica
marxista, principalmente no marxismo vulgar dos partidos comunistas
stalinizados, deixasse em segundo plano a questão da forma. Esse é
o diferencial do Della Volpe, ele procura evitar não só o
formalismo como o conteudismo. O Marx falou lá nos Manuscritos
que a essência da poesia é a forma, e o Della Volpe vai justamente
mostrar como o conteúdo social é articulado através da forma
poética, primeiro no cinema, depois na literatura, analisando os
recursos formais que articulam semanticamente os conteúdos expressos
na arte, por exemplo na montagem (no caso do cinema) ou nas metáforas
(na poesia). Essa abordagem cria uma abertura para a semiótica, que
é rara no marxismo (eu lembro só do Jameson como outro
representante dessa tendência).
Como os outros
intelectuais ligados aos partidos stalinistas, Della Volpe também
defende a concepção do realismo socialista. Dentro do leque de
possibilidades da defesa disponíveis, que vai desde o Ernest
Fischer, por exemplo, que defendia que deveria haver liberdade das
técnicas artísticas, até o Lukács, que defendia um realismo
crítico dentro dos moldes do estilo realista, e criticava a arte
oficial soviética veladamente, vendo nela um retorno do naturalismo,
o Della Volpe tendia a uma visão mais flexível na técnica, apesar
de ortodoxa no conteúdo. Só fora dos partidos comunistas é que foi
possível surgir uma crítica marxista ao realismo socialista, por
exemplo com o Mário Pedrosa (que o criticava através do conceito de
“romantismo socialista”), o Adolfo Sanchez Vásquez e a escola de
Frankfurt.
No texto principal em
que critica o Lukács, Contradição da Estética de Lukács, Della Volpe pega uma citação (!!!) e deduz a
partir dela que o Lukács manteria o intuicionismo do seu período
idealista e, junto com ele, a ideia de que a obra de arte pode
refletir a totalidade, o que obviamente é desmentido por toda a obra
dele. Uma crítica mais pertinente é a que ele faz à falta de
elaboração sobre a questão da forma na estética lukacsiana, e
atribui a isso alguns erros do Lukács, como considerar o Flaubert um
naturalista ou desprezar o James Joyce. A argumentação de que o
papel da estética é reconhecer que, por exemplo, o Ulisses é
um grande romance, e então explicar o porquê não me convenceu,
porque faria a estética dependente de um juízo de valor exterior e
anterior a ela.
A crítica ao
conteudismo do Lukács é válida, mas eu vejo duas limitações
nela: primeiro, que logo depois da primeira edição da Crítica
do Gosto,o Lukács publicou a Estética, onde existem
avanços em várias questões formais, inclusive o segundo volume é
todo dedicado à questão psicológica da forma. Depois que a
estética dellavolpiana tem o mesmo problema de quase toda a produção
marxista sobre arte, que é ser quase totalmente centrada na
literatura (o que é compreensível, porque a literatura é muito
mais conceitual e aberta a uma abordagem social do que as outras
artes). Nesse ponto, também a Estética do Lukács é muito
superior, tendo uma discussão de fundo sobre a mímese na
arquitetura e na música, além de uma abordagem sobre as artes
plásticas que é insuficiente, mas é muito superior à do Della
Volpe.
Na verdade, quem quiser
encontrar elementos de uma estética marxista das outras artes tem
que procurar na obra de historiadores e críticos como o Mário
Pedrosa e o Meyer Schapiro (para as artes plásticas), Adorno (para a
música), Manfredo Tafuri (para a arquitetura) e, talvez o melhor de
todos, o Argan.
Infelizmente, as
perspectivas abertas pela estética materialista da Crítica do
Gosto não deram frutos. A maioria da escola dellavolpiana (Lucio Colletti, Nicolao Merker, Carlo Violi etc) se
preocupou muito mais com a questão da metodologia do marxismo e da
história do pensamento político. Não existe nenhum grande teórico
da estética que tenha avançado a partir da perspectiva do Della
Volpe.
Se o althusserianismo,
o seu “parente” mais próximo, colocava ênfase na suposta
cientificidade do marxismo para defender uma linha à esquerda dentro
do PCF, inviabilizando a aliança com a socialdemocracia, o Della Volpe usava o mesmo critério para defender que a defesa da
democracia era a “única leitura correta” do marxismo e, assim,
sustentava a política de “democracia avançada” do PCI.
Foi essa ênfase na
questão da cientificidade do marxismo que possibilitou a dissolução
da escola. O principal discípulo, Lucio Colletti, através de uma
crítica cada vez mais radical aos resíduos hegelianos na obra de
Marx, acabou, no começo dos anos 80, rompendo com o marxismo, ao
reconhecer que a seção 1 do Livro I do Capital, sobre a
mercadoria, era estruturada em torno de categorias hegelianas, como a
identidade dos contrários, e que esse era o núcleo da análise
marxista do capitalismo. O livro Ultrapassando o Marxismo
reflete sobre essa ruptura e, depois dela, Colletti se tornou
liberal, terminando a sua vida política como deputado do Forza
Italia, o partido do Berlusconi.
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