Escrito por Kátia Cajá e Rodrigo Silva
Como trotskistas, temos
imensa preocupação com o que nos parece uma tendência de desintegração das
organizações de extrema-esquerda, processo esse que se acelera desde a crise de
2008. Mas primeiro, o que estamos chamando de extrema esquerda? Uma definição formal
diria que são as organizações socialistas que não aceitam as regras da
democracia parlamentar e que, portanto, usam principalmente meios
extraparlamentares de luta. Mais especificamente, eu estamos falando das
organizações políticas de extrema esquerda, e não dos movimentos sociais. É um
campo que vai de setores do PSOL, passando pelo PCB, PCR, PSTU até as seitas
marxistas-leninistas, trotskistas, maoístas e anarquistas, além dos poucos e
pequenos grupos não afiliados a nenhuma dessas correntes.
(Nem todo grupo pequeno é
uma seita, para ter a "honra" de ser chamada assim, a organização
deve se considerar a detentora da Única Política Correta, intervir no movimento
para impor essa política e tentar derrotar todas as outras organizações.)
Esse campo transcende a
antiga divisão entre stalinismo e antistalinismo, porque muitas características
de que eu vamos falar se infiltraram nos grupos que reivindicavam a democracia
socialista também.
I.
Dentro do esquema trotskista, apregoa-se que os trabalhadores se moveriam espontaneamente em luta pelas suas reivindicações imediatas, e a tarefa imediata dos comunistas seria aproveitar esse momento de ascenso para dar passos em direção à construção de um partido revolucionário.
I.
Dentro do esquema trotskista, apregoa-se que os trabalhadores se moveriam espontaneamente em luta pelas suas reivindicações imediatas, e a tarefa imediata dos comunistas seria aproveitar esse momento de ascenso para dar passos em direção à construção de um partido revolucionário.
O que a realidade mostrou, nos
atos dos dias 18 e 20 de junho, foi que não necessariamente a atividade das
massas gira em torno das suas reivindicações. Por vezes são defendidas as
demandas da elite que aliena, ou até mesmo espantalhos e bodes expiatórios. O
peso da hegemonia conservadora na sociedade, principalmente através da mídia de
massas, das igrejas evangélicas e das forças armadas enquadrou ideologicamente
o movimento dentro de várias bandeiras demagógicas, "contra a
corrupção", "contra os partidos" etc. Os atos de massa da direita
em 2015 são, nesse ponto, os herdeiros diretos de junho. No fracasso de junho
podemos enxergar o fracasso de toda uma forma de fazer política.
II.
A estas reflexões posso somar lições adquiridas na militância feminista, que ensinam uma forma totalmente diferente de fazer política, sem sair do materialismo histórico-dialético como ferramenta de análise da sociedade e intervenção na realidade. Ainda assim, uma forma ignorada pela extrema esquerda por motivos profundos, que vão desde dogmatismo até o próprio fato de que homens de esquerda simplesmente não querem abrir mão dos vários benefícios objetivos de se viver em um patriarcado.
II.
A estas reflexões posso somar lições adquiridas na militância feminista, que ensinam uma forma totalmente diferente de fazer política, sem sair do materialismo histórico-dialético como ferramenta de análise da sociedade e intervenção na realidade. Ainda assim, uma forma ignorada pela extrema esquerda por motivos profundos, que vão desde dogmatismo até o próprio fato de que homens de esquerda simplesmente não querem abrir mão dos vários benefícios objetivos de se viver em um patriarcado.
Aqui vemos o primeiro grande problema da
extrema esquerda: uma política que gira em torno do Estado (inclusive no caso
dos anarquistas), seja para reivindicar do Estado, seja para lutar contra ele.
Uma parte importante da tessitura do tecido social é deixada de fora de
qualquer análise política: coisas como relacionamentos, meios de comunicação,
medicina, educação infantil, o impacto social das ciências e tecnologias,
alimentação etc.
Essas questões políticas só
são discutidas por movimentos alternativos, muitas vezes a partir de um ponto
de vista anticapitalista reacionário, ou por reformistas, na perspectiva de
democratizar a sociedade. Para a extrema-esquerda, não são questões dignas
da luta, são diversionistas ou classificadas abusivamente de
pós-modernas. Quando muito, aparecem em notas de rodapé da política principal
quando a popularidade delas pode render alguns contatos para a organização.
Então, a extrema esquerda
funciona com um repertório muito limitado de temas que são considerados
legítimos. Geralmente são lutas econômicas, a denúncia da política dos governos
e o apoio a algumas lutas internacionais. Não só qualquer coisa fora desse
repertório é vista com desconfiança, como inclusive uma ênfase maior em algum
ponto que as organizações formalmente apoiam, mas não priorizam, é considerada
sinal de desvio político. É necessário refletir seriamente as causas profundas
desse alarmismo.
III.
Muito pior é o total cinismo com que são tratadas as lutas que acontecem "no lugar errado". Qualquer luta que não possa ser instrumentalizada para os "objetivos maiores" é ignorada, quando não é atacada como se fosse uma manobra da direita. Isso é descarado no caso dos "antiimperialistas" que escondem sistematicamente todo tipo de repressão e luta de classes que aconteça nos países não-alinhados com os EUA. Por outro lado, as organizações supostamente independentes também não demonstram quase nenhum interesse.
III.
Muito pior é o total cinismo com que são tratadas as lutas que acontecem "no lugar errado". Qualquer luta que não possa ser instrumentalizada para os "objetivos maiores" é ignorada, quando não é atacada como se fosse uma manobra da direita. Isso é descarado no caso dos "antiimperialistas" que escondem sistematicamente todo tipo de repressão e luta de classes que aconteça nos países não-alinhados com os EUA. Por outro lado, as organizações supostamente independentes também não demonstram quase nenhum interesse.
O dogmatismo dessas
correntes é explicação insuficiente para o fenômeno, pois esse mesmo dogmatismo
é jogado fora quando é do interesse delas. O discurso "teórico" é,
muitas vezes, somente uma fachada para uma política pragmática de
antiamericanismo, que se torna o apoio a regimes que de forma nenhuma
representam nenhum tipo de progresso social ou político. Aqui podemos ver um
caso típico de confusão entre meio e fim, consequência e causa: denunciar a
potência hegemônica no cenário econômico mundial tem validade e propósito
específicos dentro de um contexto mais geral de luta contra o capitalismo, não
deveria ser tomado intransigentemente como dogma.
IV.
Não que o dogmatismo não faça diferença. Quase todas as correntes da extrema esquerda se baseiam em posições teóricas na melhor das hipóteses dos anos 1930, amplamente ultrapassadas, muitas vezes até dentro do marxismo. É só pensar em teses como a de que as forças produtivas pararam de se desenvolver, que o imperialismo significa reação em toda linha, de que é impossível o desenvolvimento do capitalismo nos países semicoloniais etc.
IV.
Não que o dogmatismo não faça diferença. Quase todas as correntes da extrema esquerda se baseiam em posições teóricas na melhor das hipóteses dos anos 1930, amplamente ultrapassadas, muitas vezes até dentro do marxismo. É só pensar em teses como a de que as forças produtivas pararam de se desenvolver, que o imperialismo significa reação em toda linha, de que é impossível o desenvolvimento do capitalismo nos países semicoloniais etc.
Para impedir que os dogmas
da organização sejam questionados, é necessário que ela tenha uma direção que
monopolize a elaboração política. É por isso que a quase totalidade dos grupos
da extrema esquerda são controlados por um dono ou uma panelinha, e que a
inexistência de democracia interna faça com que qualquer divergência, mesmo que
seja apenas de tática, seja suficiente para rachar esses grupos.
Esse dono, pelo menos no
Brasil em todos os casos, é homem, o "macho alfa" da organização. A
composição das organizações da extrema-esquerda geralmente é mais masculina do
que a das organizações reformistas e do movimento como um todo. Dentro dessas
organizações, os militantes são "administrados" com métodos
capitalistas, como metas de venda de jornais, cobranças para fazer mais
atividades, assédio moral etc, muitas vezes combinados com formas militaristas
de hipermasculinidade ("tropa de choque da revolução", fetiche pela
luta armada e pela "violência revolucionária", entre outras).
Sendo as "donas da verdade", a relação delas com os movimentos é de parasitismo. Ou criam as suas "emanações", na forma de movimentos sob o seu total controle, ou trabalham dentro de movimentos amplos com o objetivo de rachá-los pra criá-las ou colocar os movimentos sob seu controle.
O que justifica haver mais
mulheres nas organizações reformistas e nos movimentos sociais? A resposta que
paira sem ser dita nas organizações de extrema-esquerda é totalmente
desamparada de sustentação em fatos verificáveis ou em lógica e racionalidade:
um suposto caráter intrinsecamente conservador nos movimentos de mulheres.
Quanto menos contaminado por presença de mulheres e ideias de igualdade entre
os sexos, portanto, mais revolucionária a organização, e mais à esquerda.
Só isso merecia um texto de
denúncia à parte, mas falando em poucas linhas, podemos dizer que, quando o
feminismo reivindica que é a própria ideia radical de que mulheres são gente,
ele está apontando para a desumanização das mulheres, seja através da
objetificação, da animalização ou de outros mecanismos. Quando os socialistas
falam em uma sociedade igualitária e sem exploração, mulheres se veem como
seres humanos e sociais necessariamente contempladas por essa proposta - o que
homens de extrema-esquerda frequentemente encaram como uma pretensão.
Inúmeras mulheres partiram
das propostas de Marx e Engels, de maneira acertada e sem distorções, para
analisar os problemas que atravessam nesta sociedade de classes. Ultrapassaram
o que eles tinham condições de escrever em suas épocas sem descaracterizar suas
obras. A recusa em incorporar essas análises e tudo que advém delas parte de
dogmatismo, mas mais do que isso, parte também do mesmo motivo pelo qual os
banqueiros não incorporam críticas marxistas absolutamente acertadas ao
capitalismo: os homens têm interesse, inclusive econômico, em se manter sobre
as mulheres.
Com uma quantidade crescente
de mulheres se apropriando do legado socialista, e reivindicando sua
participação nos movimentos anticapitalistas, a extrema-esquerda se vê diante
de uma situação que beira o cômico: para não mexer em seus dogmas centrais
(ainda que com mais materialismo), enxerta artificialmente proposições do
feminismo pós-moderno. Assim, mantém seu núcleo inalterado e atende à pressão
de mulheres para entrar em suas fileiras.
E é desta maneira, e apenas
desta, que se verifica "quanto menos contaminado por ideias de igualdade
entre os sexos, mais revolucionária a organização".
V.
São as características listadas nos 4 pontos acima que permitem a simbiose entre a extrema-esquerda e a extrema-direita.
A contrarrevolução fundamentalista que se seguiu à revolução iraniana de 1979 marcou o fim do período em que a hegemonia das lutas contra o imperialismo esteve nas mãos de setores nacionalistas de esquerda e socialistas (período refletido nas teses da Internacional Comunista sobre a Frente Única Antiimperialista), e o começo da época da hegemonia de setores fundamentalistas e xenófobos. Isso mudou radicalmente as condições em que se dá a luta antiimperialista.
Se na época da URSS já
existia o apoio de setores do movimento comunista a ditaduras, por pragmatismo
político e pela perspectiva de que era possível que esses governos fizessem uma
transição para o socialismo, hoje, em que só Cuba e Coréia do Norte podem ser
considerados como "países socialistas", o pragmatismo significa
apoiar até mesmo regimes declaradamente anticomunistas, como o Irã.
E o fim da URSS acelerou uma
tendência, que era latente desde a década de 1930, ao surgimento de correntes
que combinam elementos de extrema-esquerda e extrema-direita, como o
nacional-bolchevismo e o nacional-anarquismo. O papel dessas correntes em
conflitos como a guerra civil ucraniana é evidente, assim como o peso delas em
alguns países.
Mas não é necessário chegar
ao nível da fusão para que exista essa simbiose. Hoje em dia, vários temas e
métodos da extrema-direita estão se infiltrando na extrema-esquerda, como as
teorias da conspiração, a rejeição às lutas feministas e homossexuais em nome
da crítica ao "pós-modernismo", a recusa não só do capitalismo, mas
também do legado secular e científico trazido por ele (visto como colonizador),
antissemitismo disfarçado de antissionismo, antiamericanismo disfarçado de
antiimperialismo, só pra citar alguns.
Conforme cresce a
referência popular nas ideias da extrema-direita, a tendência é que cada vez
mais setores da esquerda capitulem e assumam, em maior ou menor medida, essas
ideias.
VI.
Não são as seitas que vão fazer uma análise marxista de si mesmas e reconhecer as suas ideologias como ideologias.
VI.
Não são as seitas que vão fazer uma análise marxista de si mesmas e reconhecer as suas ideologias como ideologias.
Sem entrar muito nessa
questão, que por si só exigiria uma análise bem mais elaborada, cremos que a
resposta deve ser procurada nos dois pólos da relação classe-organização. Na
maioria dos casos, as organizações de extrema-esquerda tentam cumprir o papel
de um movimento revolucionário num momento de desorganização, apatia e
despolitização da classe trabalhadora.
Nessas condições, é possível
que um grupo sem nenhuma relação com o movimento real ("reformista")
possa surgir. Sem possibilidade de aplicar o seu programa, a própria
preservação dele passa ao primeiro plano e, consequentemente, qualquer
atualização ou mudança é vista como "revisionismo" ou
oportunismo.
A classe trabalhadora
ignora solenemente a organização. A organização desconfia da classe e,
principalmente, da sua atividade ("reformista") e, por isso, tenta
enquadrar e controlar essa atividade, mesmo que faça discursos sobre o
"instinto revolucionário" da classe (ou seja, as raras ocasiões
em que uma pequena minoria age de acordo com os manuais da organização).
E, finalmente, quando se
forma um movimento ou organização política de massas, as seitas ficam de fora,
criticando o reformismo das massas, geralmente. Raras vão dar o passo certo
e romper com a sua lógica e construir o movimento real, trazendo o que houve de
útil na sua bagagem teórica.
VII.
De forma nenhuma pretendemos convidar as pessoas à sair das organizações de extrema-esquerda. Porém, diante desse cenário infelizmente é justificável que cada vez mais pessoas coerentes com a tentativa de construção de uma sociedade igualitária se encontrem muito mais nos movimentos sociais do que nas organizações de extrema-esquerda. Mesmo que os primeiros não tenham uma proposta mais geral de transformação da sociedade, as segundas estão totalmente impossibilitadas de levar adiante essa proposta geral, não sobrando portanto motivo para disputá-las. Esperamos que estas palavras possam ajudar na compreensão desse fenômeno.
VII.
De forma nenhuma pretendemos convidar as pessoas à sair das organizações de extrema-esquerda. Porém, diante desse cenário infelizmente é justificável que cada vez mais pessoas coerentes com a tentativa de construção de uma sociedade igualitária se encontrem muito mais nos movimentos sociais do que nas organizações de extrema-esquerda. Mesmo que os primeiros não tenham uma proposta mais geral de transformação da sociedade, as segundas estão totalmente impossibilitadas de levar adiante essa proposta geral, não sobrando portanto motivo para disputá-las. Esperamos que estas palavras possam ajudar na compreensão desse fenômeno.
As organizações atuais da
extrema-esquerda não são regeneráveis, principalmente por causa da sua
composição de classe, sexo e raça e sua relação parasitária com os movimentos,
mas também porque elas se estruturam em torno da ideia de que são a "única
esperança" da humanidade. É recorrente que elas façam o movimento de
entrar em movimentos, dos mais promissores, apenas para implodi-los, levando
para si o máximo de militantes que for possível, porém adiando consecutivamente
vitórias da classe contra a burguesia - é a construção do partido a qualquer
preço.
A longo prazo, nós que
militamos nos movimentos sociais precisamos criar condições para que, num
possível novo ascenso prolongado de autoorganização (como o que aconteceu na
década de 1980), seja possível formar novas organizações, à altura das tarefas.
Isso não é idealizar os movimentos sociais, muitas vezes eles carregam uma bagagem
parecida com a que criticamos aqui, além dos seus problemas específicos. Mas a
própria ideia de que é necessária uma luta política no interior deles já é um
alerta contra a idealização.
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