As
formas de dissolução da pintura
Depois
de um longo intervalo, eu volto a essa série que eu gosto tanto de escrever.
Como eu tinha dito, a expansão capitalista do pós-Segunda Guerra permitiu que
as instituições artísticas e o mercado de arte absorvessem a arte moderna. Não
necessariamente o conteúdo crítico de grande parte da produção modernista
precisaria ser “neutralizado” para que essa absorção fosse realizada. O próprio
ato de colocar as obras num “pedestal” seria suficiente para transformá-las no
produto de indivíduos altamente criativos, sem nenhuma consequência social,
como um ponto de vista liberal poderia sustentar. Na verdade, a própria forma não-representativa da arte moderna facilitaria esse esforço.
Expressionismo
abstrato
Nos
Estados Unidos, a evolução para a dissolução informal da pintura foi mais
rápida, e o uso político que foi feito do abstracionismo informal deixa mais
evidente o que estava em jogo. Com a abstração geométrica do entreguerras tendo
virado “arte de museu”, alguns pintores tentaram criar uma escola
especificamente americana de abstração. Sob influência do automatismo
surrealista, De Kooning e, principalmente, Jackson Pollock fazem uma pintura violenta,
em que a forma musical de Kandinsky ou a construção rigorosa de Mondrian eram
deixados de lado, o centro da obra passando a ser o próprio gesto do pintor.
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Pollock, N. 5 (1948) |
Pollock
se tornou, no final dos anos 1940, o “showman” do expressionismo abstrato.
Passou a pintar as telas no chão, e inventou a técnica do dripping (deixar a tinta pingar no quadro). O seu estilo passou a
ser chamado de action painting
(pintura de ação). A performance era quase um espetáculo à parte. Dessa
maneira, Pollock poderia pintar centenas de quadros, que tinham uma estrutura
formal irreconhecível. Essa desvalorização do ato de pintar em detrimento da
obra foi uma ponte para outras formas pós-modernas, como o happening.
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Rothko, sem título |
A morte
precoce de Pollock em 1956, num acidente de carro, interrompeu a sua carreira,
que já estava em declínio.
O expressionismo abstrato foi utilizado pela política cultural americana, no início da Guerra Fria, como forma de exaltar a “liberdade” dos EUA, diante da arte acadêmica e controlada pelo Estado que era o realismo socialista. O governo americano foi
mecenas de pintores expressionistas abstratos e promoveu o estilo, não por
acaso o mais subjetivista e individualista da arte moderna.
Ainda
nos EUA, cabe lembrar que não houve hegemonia absoluta do expressionismo
abstrato. Existiram experiências importantes de manter a estrutura formal nas pinturas
abstratas, o maior exemplo talvez seja Rothko. Os seus lindos quadros
monocromáticos remaram contra a maré, e foram uma ponte entre o modernismo e o
minimalismo.
Tachismo
e informalismo
Ainda durante
a ocupação nazista, foi formado o grupo Pintores de Tradição Francesa. Era, de
certa forma, uma corrente retardatária da abstração, como mostra
essa obra de Bazaine, Casas em Saint Guénole:
Outros
artistas independentes também vão ficar a meio caminho do informalismo, como é
o caso da portuguesa Vieira da Silva e Dubuffet.
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Soulages, Pintura, 23 de maio de 1953 |
É com os
tachistas ou abstracionistas informais ou abstracionistas líricos que a
dissolução da forma começa em terras europeias, mesmo que de uma maneira menos
radical e violenta que nos EUA. Em Soulages ou Wols ainda é possível
reconhecer resquícios da figuração.
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Alberto Burri, sem título |
Através
da França, a abstração informal atinge a Itália e a Espanha, e depois o Japão. Burri
e Tapiès fazem um percurso semelhante ao dos informalistas, mas trabalhando
sobre materiais inéditos na pintura, como sacos, panos, pedaços de madeira etc,
para conseguir novas texturas e romper com a tela plana (essas experiências,
alguns anos depois, vão levar à dissolução da própria pintura, na Arte Povera e
na Arte da Terra).
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Yoshihara, obra (1965) |
No
Japão, como já foi dito, o grupo Gutai fez uma síntese entre o informalismo e a
caligrafia tradicional do seu país, revelando pintores como Jiro Yoshihara e
Shozo Shimamoto. Depois dessa atualização em relação à Europa, as artes
plásticas no Japão passam a assumir um papel de vanguarda, como mostra, por
exemplo, a participação de artistas japoneses como Yoko Ono no grupo Fluxus, na
década de 1960. No Manifesto do Gutai existia a mesma intenção de ultrapassar a
tela, usando novos materiais:
“Ainda assim, o que é interessante a esse respeito é a nova beleza encontrada nas obras de arte e arquitetura do passado que mudaram de aparência devido à passagem do tempo ou destruição causada por desastres no decorrer dos séculos.Isto é descrito como a beleza da decadência, mas não seria talvez a beleza que o material assume quando se liberta da feitura artificial e revela as suas características originais?”
A
questão da autonomia da obra
Desde o
dadaísmo, existiu uma corrente subterrânea de negação da forma na arte moderna.
No começo, se tratava de uma tentativa de abolir a separação entre a arte e a
vida, dentro do espírito utópico e revolucionário de algumas vanguardas.
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Motherwell, Elegia à República Espanhola n. 110 |
Com o
expressionismo abstrato e a abstração informal, desaparece a estrutura formal
do quadro, que ainda existia na geração anterior de abstracionistas. Se torna,
então, impossível dizer que uma pintura está “completa”. O processo de pintar passa a ser mais importante que as obras. Como
perguntou o expressionista abstrato Robert Motherwell: “como saber quando uma
obra está terminada?”.
O passo
seguinte foi abolir a própria pintura. Já no pós-modernismo propriamente dito,
a própria ideia de obra é que é abolida, agora com a perspectiva de não mais
criar objetos que possam assimilados pelo mercado da arte.
Como toda
utopia, a ideia de transformar a vida em obra de arte ignorava as condições
sociais que faziam das obras de arte mercadorias (necessidade do metabolismo
com a natureza através do trabalho, divisão entre trabalho manual e intelectual,
indústria cultural etc). Então, esse impulso utópico ou se transformava num
desafio estéril (situacionistas, Lygia Clark, Fluxus etc) ou era assimilado por
um mercado de arte que não conseguia compreender e, portanto, não saberia como
combater (arte conceitual, arte povera, arte da terra, body art etc).
Quem diz
autonomia diz separação, até mesmo separatismo, como foi constatado em vários
movimentos revolucionários, desde movimentos de libertação nacional até feministas,
passando por coletivos artísticos. Sem a manutenção de uma esfera própria da
arte, delimitada e com um processo de produção específico, é impossível sequer mostrar
como é o mundo, quanto mais mudá-lo. Por isso, a dissolução formal na pintura
abstrata foi o passo que permitiu a produção de quadros quase em escala
comercial, o que foi um dos passos para a sua banalização e dilução artística.
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