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Ecologismo e anticapitalismo reacionário


É um fato que a biosfera está sofrendo graves transformações, causadas pela espécie humana, que podem levar a uma extinção em massas e inviabilizar a vida de grande parte da humanidade. Também é um fato que essas transformações não são causadas igualmente por todas as pessoas, e que os maiores responsáveis são os grandes monopólios capitalistas, começando pelo petrolífero e pelo complexo industrial-militar. Diante disso, a necessidade da luta ecologista é incontornável, bem como a necessidade de uma reorganização da produção sobre bases ecológicas, para o que seria preciso uma revolução internacional.

 Dito isso, o grande debate é o que exatamente significam as “bases ecológicas” para a reorganização da produção. Ao contrário do Bellamy Foster, eu não quero tapar o Sol com a peneira, e não vou dizer que algumas citações esparsas que existem na obra do Marx e do Engels são uma concepção marxista da ecologia. A contribuição real que o marxismo pode dar para a ecologia não é essa, e sim a visão de que os resultados do progresso técnico são afetados pelas relações sociais. E essa contribuição é fundamental porque, como eu vou tentar mostrar, a maioria das correntes radicais do movimento ecologista acredita que a “produção” é intrinsecamente destrutiva para a natureza e que, portanto, a solução para a crise ecológica é frear o desenvolvimento industrial.


Decrescimento

O movimento ecologista nasceu, assim como a segunda onda do feminismo e o moderno movimento homossexual, durante a situação revolucionária mundial do final da década de 1960. Apesar de já existir, desde meados do século XIX, um movimento conservacionista, ou seja, que lutava pela conservação dos ambientes ainda intocados pelos seres humanos, a precursora imediata do movimento foi a bióloga Rachel Carson, autora do livro Primavera Silenciosa, de 1962. O tema era como o uso indiscriminado dos pesticidas estava atingindo várias espécies. O nome é uma referência à morte dos pássaros por causa disso.

Já no período 1968-1972, em que surgem as principais organizações ecologistas que existem hoje (Greenpeace, Amigos da Terra etc), a maior parte das análises assumia um tom claramente neomalthusiano. Por exemplo, Paul Erlich publicou um livro chamado A Bomba Populacional. Mais importante ainda, o Clube de Roma publicou o relatório Os Limites do Crescimento.

Rapidamente, os principais agrupamentos ecologistas tentaram conciliar as suas reivindicações com a manutenção do capitalismo, criando a concepção que atualmente é chamada de desenvolvimento sustentável.

Ela é pura ilusão, porque o capitalismo tende a destruir qualquer tipo de tentativa de controle extraeconômico da acumulação de capital. Por isso, as políticas de implementação de modelos de desenvolvimento sustentável são sempre uma combinação de reformas paliativas com apelos à responsabilidade individual (reciclar, economizar água etc), como se o consumo individual fosse o mais destrutivo - o que, aliás, está perfeitamente dentro da visão liberal de que a sociedade é uma soma dos indivíduos.

Dentro das correntes mais “duras” do ecologismo, a ideia de limites do crescimento levou à formulação, como resposta, da estratégia de decrescimento (décroissance, em francês), ideia criada pelo economista romeno-americano Nicholas Georgescu-Roegen, no seu livro Amanhã, o Decrescimento (1979).

Já que eles extrapolavam o impacto ambiental sem levar em conta a possibilidade de novas tecnologias menos agressivas e, principalmente, de novas relações de produção que pudessem minimizar o desperdício e a destruição dos recursos naturais, só poderiam enxergar como saída impedir ou retardar o crescimento econômico, defendendo uma vida “mais simples”, com limitação do consumo e exclusão de algumas formas de tecnologia (energia nuclear, agrotóxicos etc).

Do ponto de vista ideológico, a acusação feita tanto ao capitalismo quanto ao marxismo era de que ambos eram “produtivistas”, ou seja, consideravam que o aumento da produção era um fim em si mesmo. O que é errado nos dois casos, porque o objetivo da produção no capitalismo é a busca do lucro, e no socialismo, segundo a concepção marxista, a satisfação das necessidades humanas.


Ecologia profunda

No lugar de ideologias consideradas produtivistas, o filósofo norueguês Arne Naess, da ala radical do movimento ecologista, criou a ideia de ecologia profunda. Diferente da compreensão da maioria das organizações ecologistas, que eles consideram superficial e antropocêntrica, ou seja, defendendo a proteção da natureza somente na medida em que isso favorece a espécie humana, os defensores da ecologia profunda veem valor intrínseco em todas as formas de vida.

A ecologia profunda parece concordar com a compreensão da ciência da ecologia sobre a interdependência dos seres vivos, assim como parece aprofundar o que Freud chamou de “ferida narcísica” produzida pelas ciências – primeiro mostrando que a Terra não é o centro do Universo, depois mostrando como a humanidade surgiu através da evolução, e finalmente colocando o inconsciente como a instância mais importante da personalidade. 

Ou seja, ela teria tudo para ser assimilada à visão de mundo materialista e científica. Passa pela minha cabeça o exemplo de Vladimir Vernadsky.

Infelizmente, não é isso o que acontece. As várias correntes da ecologia profunda, a partir de uma posição idealista, colocam em pé de igualdade os seres humanos e os demais seres vivos, ignorando as diferenças ontológicas entre eles. Ou seja, se iguala o ser biológico ao ser social, que é definido pela teleologia (a capacidade de se orientar intencionalmente para uma finalidade), segundo Lukács. A consequência é que se atribuem aos animais direitos análogos aos humanos, mesmo que seja impossível que eles os exerçam.

Por exemplo, não existe o menor sentido em imaginar que os animais na floresta tenham direito à vida, mas mesmo assim se exige que a humanidade respeite esse “direito”, não utilizando os animais como alimento.

Essa ética abstrata se combina com a ideia de que a técnica é inerentemente destrutiva, e o resultado é a utopia reacionária de acabar com a sociedade industrial. Segundo o Earth First!:

Guiada pela filosofia da ecologia profunda, Earth First! não aceita a visão de mundo antropocêntrica da "natureza para o povo". Em vez disso, acreditamos que a vida existe como um fim em si mesma, que a civilização industrial e sua filosofia são anti-Terra, anti-mulher e anti-liberdade.

Nem é preciso explicar aqui como uma economia preindustrial significaria a simples morte por fome e privação da grande maioria da humanidade, a começar pelas pessoas com deficiências ou doenças crônicas. Aqui está uma crítica anarquista mais detalhada sobre esse pontos.

As diferenças entre as principais correntes políticas da ecologia profunda não são de objetivo, e sim de estratégia. Não existe uma separação rígida entre elas, por exemplo, uma ecofeminista pode ser anarquista e participar de atividades da Frente de Libertação dos Animais. 

Grosso modo, as principais correntes da ecologia profunda são:

- anarcoprimitivismo: são os anarquistas que concluem que a tecnologia, a partir do estágio da agricultura, é reacionária por natureza. Por isso, propõem a volta às sociedades primitivas, ou melhor, a uma versão altamente idealizada delas, como se nelas não houvesse violência, dominação masculina, fome etc.

Françoise D'Eaubonne
- ecofeminismo: o conceito foi criado em 1974, por Françoise D'Eaubonne, em seu livro Le Féminisme ou La Mort. O ecofeminismo identifica a dominação da natureza com a dominação das mulheres. Junto com o posicionamento antitecnologia da ecologia profunda, o ecofeminismo recicla os estereótipos patriarcais de que as mulheres são naturalmente pacíficas, cuidadoras, e que a civilização é masculina.

- Earth First!: é um movimento, criado em 1979, formado por grupos autônomos. O objetivo do Earth First! é realizar ações diretas não-violentas. Provavelmente é o movimento mais conhecido dentro da ecologia profunda. A Frente de Libertação da Terra (ELF, na sigla em inglês) é uma organização formada em 1992, semelhante ao Earth First!, mas com um perfil mais militarizado. Já a Frente de Libertação dos Animais (ALF) é uma marca usada tanto por ações da ELF especificamente para proteger animais, como para ações do mesmo tipo feitas por outros grupos. Essas organizações foram os maiores alvos das operações de contraterrorismo do governo americano na década de 1990.

- Deep Green Resistance: formado em 2011, eles rompem com o pacifismo e anarquismo, porque são uma organização hierarquizada que defende a sabotagem violenta em larga escala como estratégia para destruir a sociedade industrial.

Tanto o decrescimento como a ecologia profunda são correntes ideológicas anticapitalistas reacionárias, ou seja, criticam o capitalismo pregando uma volta a formas de sociedade superadas há muito tempo, e imbuídas com uma rejeição da tecnologia em si. Esse anticapitalismo reacionário está em conflito direto com as aspirações ecofeministas ou feministas radicais do Deep Green Resistance, não só porque todas as sociedades "primitivas" conhecidas são patriarcais, como pelo fato de que é impossível que as mulheres tenham qualquer controle sobre a sua capacidade reprodutiva numa sociedade em que seja necessário estar grávida a maior parte do tempo, devido à alta mortalidade infantil provocada pela ausência de tecnologia médica.  


Ecossocialismo

Murray Bookchin
Como vimos, a maior parte das organizações ecologistas radicais se baseia em propostas reacionárias e utópicas para lutar contra o ecocídio. Mas, paralelamente à ecologia profunda, uma tradição socialista tentou pensar a crise ecológica, defendendo a superação das contradições do capitalismo, e não a sua supressão. Podemos citar, já na década de 1970, Barry Commoner e Murray Bookchin. Foi a partir dessa corrente que, no começo do século XXI, se criou o ecossocialismo.

Como um pequeno parêntese, eu considero o Bookchin, junto com o Daniel Guérin, um dos maiores teóricos anarquistas do século XX, não só por ter criado o conceito de ecologia social, mas também pela sua luta, nos anos 90, contra o "anarquismo estilo de vida", contracultural e individualista.A obra dele sobre municipalismo libertário está tendo a sua criatividade mostrada na prática hoje, servindo como inspiração para os revolucionários curdos em Rojava.

O ecossocialismo se propõe a analisar as condições sociais que obrigam o sistema capitalista a destruir a natureza, e quais são as condições para que uma economia planificada não acabe fazendo a mesma coisa. Assim, abre várias possibilidades de luta política e novos objetivos para os movimentos: o combate ao racismo ambiental, a luta pela ruptura com uma economia baseada no petróleo, a luta contra o monopólio dos transgênicos, a solidariedade com as lutas dos povos indígenas e quilombolas, a luta contra a privatização da água etc.

Ou seja, o ecossocialismo orienta a luta ecologista a se apoiar em uma base de massas e estratégia de ruptura com o capitalismo. Hoje, então, podemos ver movimentos ecossocialistas em todo o mundo, começando pelo MST (que defende a reforma agrária ecológica), as lutas indígenas no Canadá e EUA, campanhas contra as consequências do aquecimento global no Bangladesh etc.

O grande problema é que, dentro do ecossocialismo, o decrescimento é hegemônico. Por exemplo, no próprio manifesto internacional, de 2003:

O ecossocialismo retém os objetivos emancipatórios do socialismo da “primeira época”, ao mesmo tempo em que rejeita tanto os objetivos reformistas da social-democracia quanto às estruturas produtivistas das variações burocráticas do socialismo. O ecossocialismo insiste em redefinir a trajetória e objetivo da produção socialista em um contexto ecológico. Ele o faz especificamente em relação aos “limites ao crescimento”, essencial para a sustentabilidade da sociedade. Isso sem, no entanto, impor escassez, sofrimento ou repressão à sociedade.

O problema aqui não é uma simples escolha de palavras: a ambiguidade conceitual (o manifesto é e não é decrescimentista) transparece na ambiguidade política. Por exemplo, as campanhas do Secretariado Unificado da Quarta Internacional, que é a corrente que formulou a ideia de ecossocialismo, contra os transgênicos e a energia nuclear nunca deixam claro se o que é criticado e rejeitado são as formas de utilização dessas tecnologias no capitalismo, ou se são as próprias tecnologias. Isso é um problema grave, porque coloca em risco exatamente a vantagem teórica do ecossocialismo sobre o decrescimento.

Felizmente, dentro do ecossocialismo, existe uma diversidade de posições sobre a questão da tecnologia. Por exemplo, a posição majoritáriado Partido de Esquerda/França e do movimento System Change, Not ClimateChange/EUA, não são a favor do decrescimento.

Pra deixar bem claro: eu não nego que existam limites absolutos técnicos no metabolismo da humanidade com o restante da natureza. Por exemplo, provavelmente, com qualquer  tecnologia que a gente possa imaginar hoje, é impossível a Terra sustentar uma população de 250 bilhões de pessoas.

Nesse ponto, por exemplo, é possível que uma transição para uma planificação ecológica exija a redução do nível de consumo em alguns países avançados, como os EUA.

Mas isso são limites da tecnologia, sempre dentro de uma perspectiva em que a solução para a crise da biosfera não é o recuo da tecnologia, e sim o seu avanço para formas que tenham efeitos destrutivos menoresatravés da ruptura com o capitalismo e seus monopólios energéticos, para construir uma economia planificada democrática e feminista em escala planetária

Comentários

Olá, Rodrigo!

Tô muito feliz de achar esse texto no seu blog. Eu te seguia pelo facebook quando usava aquela rede e lembro de já ter lido algum comentário seu sobre a questão ambiental. Espero que você ainda use esse espaço porque preciso te perguntar umas coisas sobre esse texto, hehe.

O que você leu sobre a história do movimento ecológico, especialmente sobre essa parte dos ecologistas tentarem conciliar as pautas ecológicas com o capitalismo?

Você diz que o desenvolvimento sustentável é uma ilusão porque o capitalismo tende a destruir qualquer tentativa de controle extraeconômico da acumulação de capital. Como, então, a luta ecologista deveria agir para tentar reverter os danos causados pelas transformações da biosfera? Destruir o capitalismo para então buscar solucionar o problema ambiental me parece inviável, mas o contrário também, rs. Indica alguma coisa pra ler sobre esse dilema?

Sou urbanista e uma coisa que tem me chamado atenção é que no campo do planejamento urbano as questões urbana e ambiental são tratadas como inseparáveis, apesar de serem vistas em outros campos como irreconciliáveis. Poderia ser por uma superação da dualidade humanidade x natureza, mas tendo a achar que é só por um desconhecimento ou falta de análise crítica das teorias nas quais a prática deveria se apoiar. Não que eu saiba exatamente do que tô falando porque estou começando a me aprofundar nesse tema agora, mas nunca vi essas duas questões (homem x natureza e capitalismo x biosfera) serem debatidas durante toda minha graduação.

Se você puder trocar uma ideia sobre esse assunto vou ficar muito agradecida. Adoro seu blog e o Sem Camundongos também!

Abraço
rodrigodoo disse…
Oi, Mariana!

Obrigado pelo comentário e pelo interesse! Eu continuo com o blog (só não tô conseguindo atualizar como eu gostaria, por causa de problemas pessoais, mas aqui é a minha plataforma preferida).

Então, nem nos primeiros ambientalistas como o John Muir e o Aldo Leopold, nem nos movimentos desde os anos 1960 pra cá que viraram a ala principal do ambientalismo, existe essa compreensão de que existe uma lógica do capital. Pra falar a verdade, dentro do próprio marxismo isso não é muito claro, e muitos marxistas pensam no capitalismo como se ele fosse simplesmente o resultado das decisões políticas da burguesia. Então, na prática, a Greta Thunberg, por exemplo, vai propor uma série de soluções tecnológicas e sociais, sem entender porque elas não são aplicadas em grande escala, mesmo sendo as melhores cientificamente. E vai achar que isso não é feito por falta de vontade política dos governos. Até num movimento mais radical, como o Extinction Rebelion, existe essa visão.

Isso leva à outra coisa que você perguntou. Essa coisa de "primeiro a gente faz a revolução, depois resolve isso", que é usada em várias outras situações, não adianta nada (quem garante que vai acontecer uma revolução internacional antes de ser tarde demais?). Eu prefiro dois tipos de coisas: primeiro, propostas como a do Green New Deal ou a Meia Terra (Half-Earth) do E. O. Wilson. Elas confrontam a lógica do capital, mas se baseiam em propostas concretas, "reformistas", que podem servir como bandeiras de luta e serem exigidas dos governos. E em segundo lugar, algumas iniciativas de ação direta (hortas comunitárias, tecnologias sociais etc) que têm uma escala menor, mas podem servir de apoio pra autoorganização popular, e se generalizarem numa situação política favorável.

Vamos conversando por aqui.

Um abração!