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Aristocracia Operária


Aristocracia operária

Por causa da praga do 3G, e não tenho como baixar as imagens pra continuar a Pequena História da Pintura Abstrata. Por isso, e também pra mudar o assunto de novo, vamos voltar à crítica da economia política.

Esse assunto de hoje é um dos mais sérios de todos, e um dos mais esquecidos e mais instrumentalizados pra objetivos de batalhas políticas mesquinhas. Mas tem a ver com o grande assunto que eu tenho pesquisado há um bom tempo, que tem a ver com a teoria da decadência do capitalismo: a classe operária pode ser considerada uma classe revolucionária? em que condições? isso muda com o tempo?

Por isso, essa postagem é o prelúdio pra outra que eu ainda estou pesquisando, mas que vai se chamar Revolução!


Pra quem não lembra

Essa ideia de que existe uma aristocracia operária, que tem condições de vida semelhantes às das camadas médias urbanas, e que é a base social para o reformismo, se imortalizou com o Lênin, mas tem base nos escritos de Marx e Engels.

Em A Situação da Classe Operária Inglesa, do Engels, e em O Capital, do Marx, termo aparece, mas sem ser definido e, na verdade, sem função nenhuma.

No prefácio que o Engels escreveu pra segunda edição da Situação da Classe Operária Inglesa, entre outras cartas dele e do Marx, o conceito surge, tem uma explicação baseada na dinâmica do capitalismo, e dele sai uma conclusão política clara. Foi daí que o Lênin pegou a ideia:

A verdade é esta: durante o período do monopólio industrial inglês, a classe trabalhadora inglesa compartilhou, em certa medida, dos benefícios do monopólio. Esses benefícios foram divididos muito desigualmente entre eles; a minoria privilegiada ganhou a maior parte, mas até a grande massa teve, pelo menos, uma parte temporária então e agora. E esta é a razão por que, desde a morte do owenismo, não houve socialismo na Inglaterra.

Aqui, a passagem famosa do Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo, em que o careca explica o conceito e dá uma explicação diferente da do Marx:

Como demonstramos neste livrinho, o capitalismo deu agora uma situação privilegiada a um punhado (menos da décima parte da população da Terra, ou, calculando de um modo muito «generoso» e muito acima, menos de um quinto) de países particularmente ricos e poderosos que, com o simples «corte de cupões», saqueiam todo o mundo. A exportação de capitais dá rendimentos de oito a dez mil milhões de francos por ano, de acordo com os preços de antes da guerra e segundo as estatísticas burguesas de então. Naturalmente, agora são muito maiores.
É evidente que tão gigantesco superlucro (visto ser obtido para além do lucro que os capitalistas extraem aos operários do seu «próprio» país) permite subornar os dirigentes operários e a camada superior da aristocracia operária. Os capitalistas dos países «avançados», subornam-nos efetivamente, e fazem-no de mil e uma maneiras, diretas e indiretas, abertas e ocultas.
Essa camada de operários aburguesados ou de «aristocracia operária», inteiramente pequenos burgueses pelo seu gênero de vida, pelos seus vencimentos e por toda a sua concepção do mundo, constitui o principal apoio da II Internacional e, hoje em dia, o principal apoio social (não militar) da burguesia. Porque são verdadeiros agentes da burguesia no seio do movimento operário, lugar-tenentes operários da classe dos capitalistas (labor lieutenants of the capitalist class), verdadeiros veículos do reformismo e do chauvinismo. Na guerra civil entre o proletariado e a burguesia colocam-se inevitavelmente, em número considerável, ao lado da burguesia, ao lado dos «versalheses» contra os «communards».


Qual é o tamanho da aristocracia operária?

Até aqui, é como se formou a tradição marxista-leninista sobre o assunto. O que se vê em todas as correntes do trotskismo é o desprezo pelo conceito, já que o trotskismo se baseia na ideia de que o conjunto da classe trabalhadora pode ser ganho pra luta revolucionária através de suas reivindicações que entram em conflito com as possibilidades de serem realizadas pelo capitalismo (as famosas reivindicações transitórias).

É lógico, que dentro de um esquema assim, não se pode levantar o problema de setores inteiros da classe trabalhadora que não têm interesse em lutar pela revolução, porque vivem muito bem com as migalhas que caem da mesa dos imperialistas.

Também essa discussão quase não se faz no Brasil, em parte pelo sindicalismo e movimentismo da esquerda daqui, em parte pela concepção ultrapassada de que o Brasil é um país semicolonial, o que excluiria a possibilidade de existir uma aristocracia operária seguindo a definição do Lênin.

Ainda assim, existe um setor da classe trabalhadora no Brasil com todas as características que sempre foram atribuídas à aristocracia operária (nível de vida semelhante ao das camadas médias urbanas, estabilidade, direitos reconhecidos, tendência ao reformismo e conciliação de classes), composta pelo funcionalismo público federal e parte das outras esferas, pelos metalúrgicos, bancários, petroleiros etc, por "mera coincidência" os setores que formaram a CUT e o PT.

Esse fato, logicamente, nos leva a pensar se o conceito do Lênin é aplicável, se a explicação dele faz sentido, e quais as consequências da existência da aristocracia operária, se ela existir.

Na época da Primeira Guerra Mundial, um dos motivos dados pelos comunistas para o racha com a Segunda Internacional era que a socialdemocracia representava a aristocracia operária, e não a grande massa da classe trabalhadora. Se fosse assim, os revolucionários precisariam insistir que a aristocracia operária era uma minoria. Em O Socialismo e a Guerra, é isso o que o Lênin tem a falar sobre o tamanho dessa camada:

A base econômica do oportunismo e do social-chauvinismo é a mesma: os interesses de uma ínfima camada de operários privilegiados e da pequena-burguesia, que defendem a sua situação privilegiada, o seu 'direito' às migalhas dos lucros obtidos pela 'sua' burguesia nacional com a pilhagem de outras nações, com as vantagens da sua situação de grande potência etc.

Como todo mundo sabe, a previsão da Internacional Comunista, de que a crise revolucionária aberta pelo fim da guerra ia se alastrar para a Europa Ocidental, nunca se confirmou. Mais ainda, alguns países do continente passaram todo o restante do século XX sem nenhuma crise revolucionária nem dualidade de poderes.

A explicação mais tradicional para isso, dada tanto pelos trotskistas de todos os sabores como pelos "marxistas-leninistas", é a de que a socialdemocracia traiu os trabalhadores (e depois os partidos comunistas, ou porque eram stalinistas ou porque, ao contrário, tinham abandonado o marxismo-leninismo da época do Stálin e se tornado revisionistas, respectivamente). Ou seja, que tudo aconteceu por causa de uma crise de direção (no caso dos partidos comunistas, eles logicamente não viam nada de errado, ainda mais porque diziam que o caminho para o socialismo era pela via eleitoral).

Se fazia sentido falar em crise de direção, por exemplo, no caso da Revolução Espanhola de 1936, em que os anarquistas e stalinistas desviaram as ocupações de fábricas, terras e a formação de milícias pela classe trabalhadora, qual a lógica de dizer que uma classe que fica durante décadas fazendo somente lutas sindicais, na maior parte do tempo dentro da institucionalidade, está sendo traída por uma direção que não quer fazer revolução?

Podemos chamar de classe revolucionária (se essa expressão for mais do que metafísica) uma classe que fica em passividade permanente durante a maior ascenso revolucionário da história, a época da revolução chinesa, da descolonização na África, de insurreições por toda a América Latina? Nessas condições, os trabalhadores dos países imperialistas "não têm nada a perder, a não ser os seus grilhões"?

E não venham com chorumelas, citando o Maio de 1968, o Outono Quente italiano, ou essas greves de massas tipo Bélgica em 1960, Inglaterra em 1971 etc. Todos esses exemplos são de lutas econômicas de massas em que nem mesmo se cristalizou uma dualidade de poderes (onde estavam os sovietes no maio de 1968?).

Fico feliz do Omali Yeshitela ter falado, já na época, que o Maio de 1968 não provava o potencial revolucionário da classe operária dos países imperialistas, e sim o seu reformismo, já que ela calou a boca rapidinho com um aumento de salário.

Se a crise de direção for usada como justificativa até o ponto de dizer que as direções impediram que acontecessem crises revolucionárias, isso já significa abandonar qualquer noção de determinação da superestrutura pela infraestrutura. Nesse caso, a política dos partidos operários seria capaz até mesmo de desviar crises econômicas e estabilizar o capitalismo!

O Marcuse, se eu não me engano em A Esquerda sob a Contrarrevolução, explicou (vou citar de cabeça, não tenho o livro) que, no jovem Marx, o proletariado era a classe revolucionária por três motivos:

1 - sua localização na produção, que o permite mudar as relações de produção
2- a sua condição de vida nega a vida humana
3 - as suas necessidades são radicais, ou seja, não podem ser satisfeitas sem destruir toda a sociedade existente

E ele falava, com razão, que só o primeiro continua válido. Depois da Segunda Guerra, nos países imperialistas, em parte como resposta à existência da União Soviética e em parte por exigência do desenvolvimento das forças produtivas absurdo que aconteceu na época, o nível de consumo dos trabalhadores teve que ser aumentado, destruindo os motivos 2 e 3.

É por isso que o Marcuse vai falar que, para que aconteça uma revolução no capitalismo avançado, é necessária a formação de uma nova sensibilidade, que coloque novas necessidades ao povo. Eu não vou falar disso aqui, pra não desviar o assunto, mas posso falar nos comentários.

A única exceção real nos países imperialistas foi o caso da Revolução dos Cravos. Sendo a exceção que confirma a regra, a revolução foi provocada justamente pelo colapso do regime salazarista devido à perda de todas as colônias portuguesas de uma porrada só. O que nos deixa bem perto de uma explicação da hegemonia reformista.

Aí entra o nosso querido Nicolai Bukhárin, ligando diretamente o imperialismo com a hegemonia reformista sobre toda a classe trabalhadora dos países centrais. A citação é de Imperialismo e Economia Mundial:

A política colonial fornece uma renda colossal às grandes potências, ou seja, às suas classes dominantes, ao "truste capitalista estatal". É por isso que a burguesia tem uma política colonial. Nesse caso, existe a possibilidade de aumentar os salários dos trabalhadores às expensas dos povos conquistados e selvagens explorados das colônias (sic).
Esses são, realmente, os resultados da política colonial das grandes potências. A conta dessa política é paga não pelos trabalhadores do continente, e não pelos trabalhadores da Inglaterra, mas pelos povos das colônias. É nas colônias que o sangue e o nojo, o horror e a vergonha do capitalismo, todo o cinismo, cobiça e bestialidade da democracia moderna estão concentrados. Os trabalhadores europeus, considerados do ponto de vista do momento, são os vencedores, porque recebem aumentos para os seus salários devido à "prosperidade industrial".


Aí a porra ficou séria!

Se for assim, quer dizer que as revoluções só podem acontecer em países do Terceiro Mundo. Ou que a base revolucionária nos países imperialistas são os setores que vivem neles em condições "de terceiro mundo", as minorias nacionais, imigrantes etc. E que as revoluções só podem ser possíveis nos países imperialistas se eles sofrerem reveses catastróficos diante de lutas antiimperialistas.

Essa posição já foi defendida dentro da IC pelo indiano M. N. Roy (o fato dele depois ter virado um nacionalista tem a ver com o assunto, mas não vou falar disso aqui). No II Congreso da Internacional Comunista, ele propôs uma tese sobre a questão do Oriente em contraposição à escrita pelo Lênin. Na tese, Roy disse que a classe operária dos países imperialistas não seria capaz de fazer revolução se não secasse a fonte dos superlucros do imperialismo no Oriente. Por isso, a iniciativa da revolução mundial pertencia às massas asiáticas.

Já os Panteras Negras, o único partido real de extrema-esquerda que se formou nos EUA depois da Segunda Guerra , se consideravam "nacionalistas revolucionários" defendendo a libertação da nação negra americana como parte da luta anticolonialista mundial.

Hoje em dia, além das organizações terceiromundistas normais, que acham que somente a derrota do imperialismo poderia abrir possibilidades para revoluções nos países centrais (posição também defendida pelo Paul Sweezy e pelo Samir Amin), o caso mais extremo da teoria da aristocracia operária baseada no imperialismo é o dos pós-maoístas da LLCO, que negam até mesmo que os negros e latinos dos EUA possam cumprir algum papel revolucionário.


Mas como eles foram comprados?

A explicação do Bukhárin, em termos de vantagens dadas pelo mercado garantido das colônias e semicolônias, é muito melhor do que a do Lênin. O Charlie Post, que escreveu The Myth of Labor Aristocracy, que foi o pontapé pra isso que eu tô escrevendo agora, mostrou por a + b que é impossível os países atrasados, com a sua produtividade muito mais baixa, "pagarem" o patamar de salários bizarramente mais alto dos países centrais.

O que eu não gosto no artigo dele (e que eu discuti com ele por email, ele é muito gente fina) é que ele, ao falar em "reformismo condicional", não assume inequivocamente que, com o capitalismo estabilizado, a classe trabalhadora se torna uma classe reformista. Ele nega a explicação do Lênin, mas não tira as conclusões políticas devidas: que não precisam existir esses superlucros pagos aos trabalhadores para eles serem reformistas.

O Mandel, que foi a maior influência do Post e do Robert Brenner (que também escreve sobre essa questão com o Post), e que eu considero como o maior teórico trotskista depois do Trotsky, apesar de ter feito uma análise até hoje insuperada do capitalismo pós-Segunda Guerra  (Capitalismo Tardio), e de ter dado uma entrevista sobre estratégia revolucionária na Europa que é a melhor referência que eu conheço sobre isso, recaiu na visão ortodoxa (que poderia ser chamada de "síndrome da revolução na esquina") ao analisar todos os processos prerrevolucionários nos países imperialistas.

O trotskismo, pelo menos o ortodoxo, depende, pra existir, daquele esquema em que a crise empurra o movimento para a radicalização, e ele é embarreirado pelas direções.

Como explicação alternativa, o Post diz, retomando o Brenner, que os trabalhadores são, ao mesmo tempo, uma classe e indivíduos que vendem a sua força de trabalho. Em momentos de estabilidade, em que as lutas não colocam uma alternativa concreta de sociedade, é o aspecto individualista que prevalece, por isso os trabalhadores caem fácil na demagogia racista, xenofóbica, elitista etc (qualquer dúvida, favor ir a uma agência do Banco do Brasil) - não falo de machismo aqui porque, como já falei antes, a situação é diferente.

Isso é um fato, mas eu acho que dá pra ir mais além e usar uma distinção feita, se eu não me engano, pelo meu heroi Ruy Mauro Marini, da Dialética da Dependência: os trabalhadores explorados através da extração da mais-valia relativa e através da absoluta.

 Se a exploração através da extração da mais-valia absoluta (prolongamento da jornada de trabalho puro e simples) literalmente rouba o tempo de vida dos trabalhadores, quando se trata da mais-valia relativa, o eixo da luta passa a ser a divisão entre o trabalho necessário e o excedente - uma relação essencialmente reformista, principalmente se a produtividade estiver aumentando muito e a exploração puder aumentar ao mesmo tempo em que o poder de compra do salário.

Então eu acho que, a partir do momento em que a extração da mais-valia relativa para a ser a forma principal da exploração (o que acontece quando ocorre a subordinação real da produção ao capital, em oposição à subordinação formal, ou seja, quando o capital "se ergue sobre os seus próprios pés" e molda o processo de produção segundo o seu funcionamento), a classe trabalhadora se torna reformista. Inclusive nos setores "de ponta" dos países atrasados.

A não ser, é claro, que algum fato externo à exploração agrave qualitativamente a condição dos trabalhadores (guerras, opressão nacional, colapso econômico, racismo etc), obrigando-os a lutar além dos limites reformistas se quiserem conquistar suas reivindicações.


A classe trabalhadora é ontologicamente reformista?

O Jacob Gorender, em Marxismo sem Utopia, generalizou a partir dos quase duzentos anos de movimento operário e disse que a classe operária é ontologicamente (ou seja, por essência) reformista.

Se alguém me apontasse uma arma pra cabeça e exigisse eu escolher entre isso ou dizer que ela é revolucionária, se eu não tivesse como fazer nenhuma qualificação, nenhum porém, eu diria que é isso mesmo.

Comentários

Guilherme disse…
Link pro texto do Gorender está quebrado.

Como não podia deixar, fica a pergunta sobre o que mais vc teria dizer sobre a fala do Marcuse? Que necessidades seriam essas que o Marcuse sugere necessárias para uma levante pré-revolucionário? Ou seja, o que a cultura pode fazer para que essa classe que após coerção vc concluí ser essencialmente reformista?

Isso me lembrou algo vago na minha memório. Num memento que fazias uns cursos de empreendedorismo e marketing (A Arte de inventar novas necessidades). Uma professora falou da importância desses autores da teoria crítica, que tinha lido o Adorno e o Marcuse. Falava algo que o trabalhador (ou melhor o "colaborador) hoje não quer só o salário a empresa precisava entender outras demandas como reconhecimento, felicidade, etc. Me soou algo como aquele lance da Pirâmide Maslow ( https://pt.wikipedia.org/wiki/Hierarquia_de_necessidades_de_Maslow ) da psicologia organizacional, não uma política revolucionária... Mas vai que..? kkkk
rodrigodoo disse…
Acertei aqui o link.

O Marcuse tá falando das "cadeias radicais", pra usar a expressão que tá na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. A ideia é que a condição dos trabalhadores na época da revolução industrial era tão desumana que a simples exigência de condições humanas poderia destruir o sistema.

Mas isso não existe. O capitalismo pôde absorver essas reivindicações e, mais importante... Tem uma frase do Rimbaud: "a única coisa insuportável é que nada é insuportável".

Esse texto envelheceu bastante pra mim. Eu ainda penso parecido, mas com uma fundamentação bem diferente. Mas eu acho que a questão da hegemonia tem a ver com isso, mudar as expectativas. Eu tenho falado isso às vezes. O grande problema da política hoje (e no Brasil é bem mais grave) e que as expectativas que existiram durante mais de um século, tanto de forma revolucionária (muito minoritária) como reformista, entraram em colapso. Até o lema do Fórum Social Mundial, "um outro mundo é possível" tem a ver com isso. Essa é a grande dificuldade ideológica hoje