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Pequena História da Pintura Abstrata (1) - A desintegração do realismo


Impressão: nascer do Sol (1872)

Depois dessa parte conceitual, vamos à história em si.

Foram dois os fatores que criaram a situação social que levou ao enfraquecimento da figuração na pintura. E os dois são relacionados ao desenvolvimento das forças produtivas. Eles são


1) A invenção da fotografia

Não vou falar das descobertas e da evolução da fotografia. O que interessa é que, na segunda metade do século XIX, na mesma época do auge do realismo, a pintura, que era vista como uma reprodução da realidade, perdeu o terreno rapidamente para a fotografia.

Então, pra quê serviria a pintura? Foram os impressionistas que tentaram dar uma resposta a essa pergunta. O que é mais interessante é que a resposta deles foi progressiva, uma crítica imanente (ou seja, baseada nos mesmos pressupostos do que ela pretende criticar, e não em algo exterior a ele) que, em vez de cair no caminho fácil e romântico de negar a ciência, tentava usar as novas descobertas científicas na pintura, sem desnaturar a arte.

A solução foi linda: pintar a luz. E assim, o primeiro quadro famoso do Monet, Impressão: nascer do Sol (1872), que depois deu o nome ao novo estilo. Se o modelado e o claro-escuro que vigoravam desde o Renascimento não poderiam competir com a fotografia, estava surgindo uma pintura das cores e dos seus efeitos, feita ao ar livre, mais sensorial do que a pintura acadêmica.







Um dos exercícios mais famosos dos impressionistas era pintar a mesma cena em várias horas diferentes, captando a variação da luz durante o dia. Aqui, algumas (das mais de trinta) famosas pinturas da Catedral de Rouen feitas pelo Monet:


Foi a partir do impressionismo que começou a evolução que vai até a pintura moderna. Mas, até então, apesar da ruptura com a pintura acadêmica, ainda se tratava de reproduzir a aparência da realidade. Isso mudou a´partir do segundo fator:







2) O imperialismo e a redescoberta da arte dos povos não-europeus

Não cabe aqui definir rigorosamente o imperialismo e os seus mecanismos. Só pra ficar com a famosa definição do Lênin (em Imperialismo, etapa superior do capitalismo), vamos dizer que

Por isso, sem esquecer o caráter condicional e relativo de todas as definições em geral, que nunca podem abranger, em todos os seus aspectos, as múltiplas relações de um fenômeno no seu completo desenvolvimento, convém dar uma definição do imperialismo que inclua os cinco traços fundamentais seguintes: 1) a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse "capital financeiro" da oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4) a formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.

Ondas, Hokusai
Mas o que realmente interessa no assunto é que a descoberta da arte dos povos vistos como "primitivos" abalou as artes europeias, ainda mais porque já existia a busca por elementos que pudessem ajudar na ruptura com a tradição.




Estátua makonde, de Gana. Sem data. 



Diferente de todos os preconceitos racistas que diziam que os povos não-brancos eram inferiores, a arte africana, a japonesa, a do Egito Antigo e a da polinésia (que foram as maiores influências sobre os pintores pós-impressionistas) são diferentes da arte europeia pós-renascentista porque são mais conceituais.  A forma é abstraída até o artista encontrar os traços fundamentais que definem a figura, lição que foi aprendida pelos cubistas e que foi uma ponte para o abstracionismo. As cores são mais "livres" em relação ao objeto, as formas ganham uma qualidade decorativa, de desprendendo da reprodução pura e simples e, talvez mais importante, tudo isso feito sem as regras do claro-escuro e da perspectiva da pintura ocidental.

E foi esse pensamento conceitual que foi incorporado pelos três caras que foram a ligação entre o impressionismo e a modernidade, o Van Gogh, o Paul Gauguin e o Paul Cézanne. É sobre eles que vamos falar agora.


Os pós-impressionistas

Esses caras foram heroicos, o Gauguin e o Van Gogh passaram miséria, mas sabendo que estavam preparando a maior revolução da arte ocidental. Todos sabemos um pouco deles, o Van Gogh que começou como pastor nas minas de carvão, mas que foi expulso da igreja porque não aceitava a miséria em que os trabalhadores viviam, e  então uma vida de crise em crise. O Gauguin largando trabalho e família pra pintar e, num adeus que o Mário Pedrosa comparou ao do Rimbaud, foi para o Taiti, onde procurou as formas e cores mais puras. Enquanto isso, o caretão do Cézanne, refazendo infinitamente os quadros, tentando tornar o impressionismo "sólido como a arte dos museus".


O Van Gogh, influenciado pela pintura japonesa, foi o precursor do Expressionismo, porque libertou as cores, usando elas diretamente para se exprimir. Aqui a Noite Estrelada:



Mas, para a evolução do abstracionismo, foram os outros dois que deram a maior contribuição. Se o Van Gogh já sofria influência da arte japonesa, o Gauguin aboliu a perspectiva e simulou a profundidade com o jogo de cores puras, chapadas em superfícies planas e delimitadas com linhas, evocativas.

De onde viemos? Quem somos? Aonde vamos?



O Cézanne, por sua vez, corrigiu o fim da delimitação rígida das formas, que o impressionismo trouxe, com uma preocupação pela estrutura da obra, baseada nas formas geométricas puras a que se reduziam as figuras pintadas. Como nessa natureza-morta:

Antes disso, só pra lembrar, eu tô falando da linha que vai até a pintura abstrata, essa redescoberta da chamada "arte primitiva" e a crescente autonomia da pintura em relação à reprodução da realidade marcaram toda a arte do final do século XIX também se refletiram nas correntes que foram "becos sem saída". Uma delas é o simbolismo (com pintores como os franceses Odilon Redon e Puvis de Chavannes), e um movimento inglês muito parecido, os pré-rafaelitas (o nome é justamente porque eles queriam resgatar a pintura anterior a Rafael, ou seja, ao Renascimento), assim como a linda obra de Klimt e Franz von Stuck. Um cara que tem os traços mais tendendo pra abstração é o Aubrey Beardsley. A história não é uma linha reta, e esses caras, além da importância em si da obra deles, apontam outros caminhas, abertos e por abrir.


A modernidade

Com esses caras, chegamos ao começo do século XX. Muitos tentaram entender o significado da arte moderna e, entre várias explicações psicológicas, formais, subjetivas etc, os marxistas costumam interpretar os estilos modernos como uma expressão, na arte, da decadência da civilização capitalista, chegada ao período imperialista, nas últimas décadas do século XIX (seja pra condenar ela como "arte decadente", seja para ver nas suas formas distorcidas a única maneira de expressar as contradições da época).

Desenvolver essa tese custaria um livro inteiro, mas eu me resumo aqui a dizer que a arte moderna expressa a desintegração do sujeito burguês, que tinha sido construído ideologicamente pela filosofia desde Descartes, passando pelo Iluminismo e que, com a transformação da burguesia em uma classe conservadora, e diante das crises que afetam a sociedade capitalista (que, como a burguesia vê o capitalismo como a "ordem natural das coisas", só pode conceber como catástrofes irracionais), entra em decomposição, revelando em fratura exposta os seus componentes.

Se o marxismo, a psicanálise e a filosofia de Nietzsche mostram, cada uma do seu ponto de vista, o que está por trás do discurso ideológico da burguesia (no caso do Nietzsche em forma de apologia indireta, exigindo que a burguesia abandone o Iluminismo e defenda abertamente a sua dominação), na arte o que aparece é a própria fragmentação do mundo e do próprio ser humano: os dois maiores poetas modernos, Fernando Pessoa, em que a fragmentação chega ao ponto do próprio poeta se dividir em quatro ou mais, e T. S. Eliot, com a sua Terra Devastada ("foi com esses fragmentos que escorei minhas ruínas") povoada de Homens Ocos, a pintura metafísica de De Chirico, com os manequins abandonados em cidades vazias, o cinema dos vagabundos, ou dos operários esmagados pelas máquinas, de Chaplin, os romances de Kafka, com uma burocracia sobrenatural, o teatro de Pirandello, em que a realidade aparece como simulação e vice-versa, a música de Schönberg, feita de gemidos e dissonâncias etc.

No começo do século XX, foram vários movimentos de vanguarda que tentaram elaborar conscientemente a arte moderna, partindo do que os pós-impressionistas tinham feito. Na próxima parte, eu não vou falar de todas (até porque algumas foram posteriores e/ou não relacionadas com o abstracionismo), só das quatro que foram as que desembocaram na revolução abstracionista, pouco antes da Primeira Guerra Mundial.


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