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Modelo econométrico e materialismo histórico (Michal Kalecki)


O modelo econométrico e o materialismo histórico constituem duas abordagens distintas do desenvolvimento de uma sociedade. O primeiro está baseado em relações funcionais entre as variáveis econométricas no período considerado, bem como entre essas variáveis e as mesmas variáveis em períodos anteriores. Supõe-se que essas relações são dadas e não sujeitas a modificação. Dessa forma, estabelece-se um processo dinâmico definido, o qual, no entanto, corresponde ao desenvolvimento real apenas no caso em que o suposto básico de invariabilidade das relações funcionais, a que nos referimos acima, se verifique.

O materialismo histórico considera o processo de desenvolvimento de uma sociedade como o de suas forças produtivas e relações de produção (base), que configuram todos os outros fenômenos sociais, como o governo, cultura, ciência e tecnologia, etc. (superestrutura). Existe aqui um efeito recíproco envolvido, com a superestrutura influenciando a base também.

As duas abordagens não parecem ser irreconciliáveis. No final das contas,os esquemas de reprodução de Marx nada mais são do que modelos econométricos simples. De fato, num caso especial em que não ocorram modificações nos recursos naturais, relações de produção, na superestrutura que afetem o desenvolvimento das forças produtivas, sistema seguirá o curso determinado por um modelo econométrico, pois a condição de as relações entre as variáveis econômicas não se modificarem é então preenchida. No caso mais geral, essas relações funcionais se alteram sob o impacto do que ocorre nas três outras esferas do sistema, e o desenvolvimento econômico é, então, bem mais complicado que o apresentado por um modelo econométrico, na medida em que reflete a evolução da sociedade sob todos os aspectos.

O propósito deste texto é investigar mais profundamente o problema acima indicado em termos muito gerais. Vamos considerar um sistema fechado, de forma que nos possamos concentrar nos fluxos básicos.

I

Vamos denominar Bt o conjunto de variáveis que caracterizam a situação econômica do sistema no período t. Vamos supor que as variáveis em questão, nesse período, podem ser representadas como funções dessas variáveis nesse período t e nos v períodos anteriores. Representaremos isto simbolicamente da seguinte forma:

Bt=f(Bt,Bt-1,·.··,Bt-v)        (1)

onde f representa o conjunto de relações envolvidas. Bt pode ser considerado, como é costume atualmente, um vetor que é função de si mesmo (isto é, algumas de suas coordenadas são interdependentes) e dos vetores Bt-1,.··, Bt-v, que representam a situação econômica dos v períodos anteriores. Aqui, v é constante, o que é importante para o suposto de que as variáveis de períodos mais remotos do que t- v não têm influência direta sobre a situação econômica do período t. Outro suposto básico é o da invariabilidade da função f, ou seja, do conjunto de relações que ela representa. Se isso ocorrer, a equação acima determina o curso das modificações econômicas, pois temos:

Bt+1=f(Bt+1,Bt,·..,Bt-v+1)
Bt+2=f(Bt+2,Bt+1,·.·,Bt-v+2)

com a determinacão de B, levando à de Bt+1, esta à de Bt+2, etc. Esta é a essência da abordagem pelo modelo econométrico.

A hipótese crucial da invariabilidade está longe de se verificar. Pois ela pressupõe que o desenvolvimento economico, determinado pela equação acima, não causa transformações tais nas esferas de recursos naturais, relações de produção ou superestrutura que levem por sua vez a mudanças nas relações entre as variáveis econômicas simbolizadas por f.

Em particular, a abstração da interdependência entre o desenvolvimento econômico e as relações de produção confere um caráter mecanicista ao modelo econométrico. Mas isso não o impede de ser um instrumental útil de análise, desde que se tenha consciencia de suas limitações. No entanto, o que é totalmente inadmissível é a construção de um modelo econométrico do desenvolvimento futuro, que postule tacitamente a inexistência de relações de produção.


II

Deve-se notar que, mesmo num modelo econométrico, as relações representadas pela função f não podem ser consideradas estritamente invariáveis. Pois as relações econômicas são, por sua própria natureza, um tanto mutáveis: os parâmetros considerados não são perfeitamente constantes,mas constantes a que se soma algum pequeno elemento aleatório. Assim, as relações entre as variáveis econômicas representadas por f são quase invariáveis, na medida em que estão sujeitas a pequenas perturbações aleatórias.

Surge aqui a questão de se as pequenas modificações aleatórias dos parâmetros levam a correspondentes pequenas alterações nas variá-veis econômicas em questão, ou se o efeito é desproporcionalmente grande. Podemos chamar essas duas alternativas de processo estável e processo instável, respectivamente. Num processo instável, uma pequena variação nos parâmetros resulta em brusca mudança no curso do sistema. Isto leva, finalmente, a um novo processo, estável, que representa o desenvolvimento real, enquanto o processo instável considerado é efêmero. Pois se este tivesse ocorrido, seria suplantado, sob o impacto de perturbações aleatórias, pelo processo estável a que nos referimos acima1.
 
Assim, pode-se afirmar que as relações representadas pela função f geram um processo dinâmico estável, isto é, que o caráter dessas relações impede a geração de grandes mudanças nas variáveis, causadas por pequenas mudanças nos parâmetros envolvidos. Esta quase invariabilidade de f não exclui, de forma alguma, a existência de fenômenos como o ciclo econômico, Significa apenas que pequenas mudanças nos para-metros das relações entre as variáveis econômicas não afetarão consideravelmente, em geral, o curso do ciclo econômico.


III

Passemos agora do modelo econométrico à consideração do desenvolvimento da sociedade em todos os seus aspectos. Indicaremos a situação dos recursos naturais, das relações de produção e da superestrutura no período t por At, Ct, e Dt, respectivamente. Contudo, a situação de Ct, e Dt pode ser descrita apenas parcialmente por conceitos quantitativos (tais como o grau de concentração de riqueza e da renda na classe capitalista); elementos qualitativos não mensuráveis estão aqui envolvidos e contrapostos a Bt, que é um agregado de relações quantitativas. Deve-se notar que Bt, cobre a esfera das forças produtivas e seus efeitos.

O processo gerado pelo modelo econométrico pode ser denotado por B→B, que indica uma mudança “autônoma” na esfera B. De forma correspondente, os desenvolvimentos autônomos nas outras esferas po-dem ser denotados por A → A, C→C e D→D. Destas, A→A, que indica “mudança natural” nos recursos naturais, embora possivelmente significativa em longos períodos (por exemplo, o recuo dos mares), não tem maior importância e pode ser desconsiderada em nossa análise.

Adicionalmente aos processos “autônomos” existe obviamente inter-dependência entre as várias esferas, por exemplo, o efeito do desenvolvimento econômico passado e presente sobre as relações de produção e vice-versa: B→C e C→B. As interdependências significativas são:

B →A e A →B
B→C e C→B
B→D e D→B
C →D e D →C

isto é, o efeito do desenvolvimento econômico sobre todas as demais esferas e vice-versa, bem como o efeito das mudanças nas relações de produção sobre a superestrutura e vice-versa.

Agora, o postulado básico do materialismo histórico é o de que mudanças autônomas na superestrutura são de menor importância, quando comparadas com o efeito que têm sobre esta o desenvolvimento econômico e as mudanças nas relações de produção. Aceitando este postulado, chegamos ao seguinte esquema de conexões importantes:




onde x indica a existência de relações de causa e efeito.


IV

Voltemos agora ao problema do desenvolvimento econômico (pelo qual entendemos o processo dinâmico da economia, incluindo as flutuações cíclicas), tomando em consideração sua interdependência com a evolução nas esferas de recursos naturais, relações de produção e superestrutura. O desenvolvimento econômico afeta profundamente o estado dos recursos naturais (por exemplo, através da exaustão e descoberta de depósitos minerais), as relações de produção e a superestrutura. Além disso, as relações de produção estão sujeitas a mudanças endógenas (por exemplo, pelo desenvolvimento da luta de classes, num quadro determinado de relações econômicas). Sua evolução também tem influência importante sobre a superestrutura.

O desenvolvimento econômico, por sua vez, recebe o impacto das alterações nas três outras esferas do sistema. Em particular, existirá aqui uma relação recíproca. O desenvolvimento econômico, por exemplo, provoca alterações nas relações de produção, as quais, por sua vez, afetam o curso do desenvolvimento econômico.

Segue-se obviamente que o suposto básico do modelo econométrico - de que a função f, que representa todas as relações entre as variáveis econômicas presentes e passadas, não está sujeita a variações - não pode ser mantido. A função experimenta mudanças período após período, determinadas pelas influências de A→B, C→B e D→B. Assim, a equação (1) deve agora ser escrita da seguinte forma:

Bt= tf (B1,Bt-1,..,Bt-v)         (2)

Esta equação representa um modelo econométrico somente no caso especial em que f é invariável. Isto ocorrerá sob as duas condições seguintes: a) não há mudanças autônomas em outra esfera que não estritamente a das condições econômicas ou, se houver, não afetam significativamente o padrão de desenvolvimento econômico; b)  não há efeito recíproco significativo devido ao impacto do desenvolvimento econômico sobre as outras esferas do sistema.


V

Na seção II discutimos o problema da estabilidade do processo gerado pelo modelo econométrico a partir da função f. Chegamos ali à conclusão de que é plausível atribuir a f a caracteristica de dar origem a um processo dinâmico estável, que não será significativamente deslocado de seu curso por uma pequena mudança em f. Nesse caso, as pequenas variações aleatórias em f, que sempre estão presentes, não criam maiores perturbações à evolução do sistema.

Surge agora o problema de se a função ft - que em geral experimenta fortes variações como resultado da influência da evolução na esfera de recursos naturais, de relações de produção e da superestrutura - apresenta também esta característica. Vamos supor que fn, no período n, tem essa característica. Com o passar do tempo, f se vai modificando, e assim, em algum período n+ k, pode alterar-se em tal extensão que não deixaria o sistema imune a que pequenas variações em f perturbem consideravelmente o curso do desenvolvimento. Se este for o caso, as pequenas mudanças aleatórias em fn+k logo causarão um abrupto deslocamento no desenvolvimento econômico. Então,como indicado na seção II, o sistema adquiriria logo um novo curso estável2.

Pode-se, portanto, concluir que ft é normalmente uma função de tipo tal que pequenas mudanças em sua forma não levam a mudanças maiores nas variáveis econômicas; mas em certos períodos críticos, que não duram muito, pode não apresentar esta característica. Em tais períodos, o curso do desenvolvimento econômico será alterado abrupta-mente e, eventualmente, o sistema poderá mostrar por algum tempo extrema instabilidade das condições econômicas.


VI

As mudanças abruptas no desenvolvimento econômico discutidas na seção anterior eram causadas apenas por fatores endógenos. É verdade que a mudança na forma da função f, de fn para fn + k, foi resultado da influência das esferas A, C e D no sistema. Mas o deslocamento do curso do desenvolvimento econômico ocorreu porque pequenas variações aleatórias em fn+k levaram a grandes mudanças nas variáveis econômicas. Podem ocorrer, no entanto, bruscos desvios do curso passado de desenvolvimento, causados muito mais diretamente por ocorrências nas esferas das relações de produção e superestrutura.

Nessas esferas, observa-se freqüentemente o fenômeno de certos eventos, que aparecem gradualmente, culminarem numa explosão; tais explosões modificam o padrão de desenvolvimento econômico, mudando abruptamente a função f.

Os processos explosivos em questão e suas causas podem ser de diferente caráter. As relações de produção existentes podem entravar o desenvolvimento econômico (o que pode mesmo levar à estagnação ou retrocesso); e a superestrutura (forma e composição de governo, etc.) pode até não corresponder ao estágio de relações de produção atingido. Isto leva a uma revolução, na qual tanto as relações de produção quanto a superestrutura experimentam uma transformação violenta. Mas a situação pode também terminar numa reforma e, nesse caso, a transformação das relações de produção e da superestrutura está muito longe de se estender e disseminar por um período mais longo. Em ambos os casos, o desenvolvimento econômico será profundamente alterado, mas de modo diferente.

Algumas vezes, a reforma provocada pelo fraco desempenho do sistema pode até não alterar de maneira fundamental as relações de produção ou a forma e composição de governo. Pode consistir na mera implementação de políticas governamentais que, no entanto, tem importante efeito sobre a dinâmica econômica do sistema. Exemplificando: a Grande Depressão da década de 1930 abalou profundamente o capitalismo. O que resultou disso, porém, foi simplesmente uma técnica governamental antidepressiva, que arranhou levemente a superfície do sistema capitalista, mas de forma nenhuma afetou significativamente o padrão do ciclo econômico.


Conclusão 

Da discussão anterior surge uma nova maneira de aquilatar a evolucão da sociedade. Seu ponto focal é num semtido o desenvolvimento econômico, cujo curso é determinado por um "modelo econométrico generalizado" que envolve relações mutáveis entre as variáveis econômicas presentes e passadas (ver equação 2). Essas mudanças resultam do impacto da evolução nas esferas de recursos naturais, relações de produção e superestrutura, que por sua vez são profundamente afetadas pelo curso do desenvolvimento econômico.

1Cf. KALECKI,M. Observations on the theory of growth. Economic Journal, mar. 1962. É teoricamente possivel que o processo instável não leve a um estável mas, em virtude de distúrbios aleatórios, o sistema seja submetido continuamente a fortes flutuações. Tal sistema, contudo, dificilmente seria viável, e - antecipando aqui o argumento de seções subseqüentes - de um modo experimentaria transformações institucionais que poriam um fim a sua extrema instabilidade.

2 É possivel, teoricamente, que o sistema esteja sujeito a fortes flutuaçōes (cf. nota 1). Estas, contudo, durariam pouco, porque a inviabilidade do sistema provavelmente resultaria numa reação da esfera das relações de produção e da superestrutura, que colocaria um fim à extrema instabilidade.



Reproduzido de KALECKI, M. Econometric model and historical materialism. In: On political economy and econometrics- Essays in honour of Oskar Lange. Varsóvia, Panstwowe Wydawnictwo Naukowe,1964. Trad. por José Bonifácio de Souza Amaral Filho.

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