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A diferença entre os problemas econômicos cruciais das economias capitalistas desenvolvidas e subdesenvolvidas (Michal Kalecki)

 

I 
O principal problema de uma economia capitalista desenvolvida é a adequação da demanda efetiva. Tal economia possui um equipamento de capital que mais ou menos se equipara à força de trabalho existente, e, portanto, poderia gerar uma bem mais elevada renda per capita se seus recursos fossem plenamente utilizados. Isso, todavia, não é necessariamente o caso.
Acreditava-se no passado que isso ocorresse automaticamente, isto é, que tal economia tendesse para a manutenção do pleno emprego e que, assim, o desemprego pudesse ser considerado meramente um acidental e pouco durável desvio da plena utilização de '
recursos, uma fricção sem importância que poderia ser desprezada. Revisão básica dessa concepção se deu durante a grande depressão da década de 1930, em que o sistema capitalista foi abalado até seus fundamentos. De fato, é claro para nós, hoje em dia, que o problema da
subutilização de recursos é, em certo sentido, inerente a uma economia capitalista desenvolvida e que, pelo menos potencialmente, pode surgir a qualquer momento.

Isso pode ser melhor observado através de um exame da situação de pleno emprego. Uma parte do produto nacional, com pleno emprego, será consumida pelos trabalhadores e outra parte pelos capitalistas, mas restará ainda uma parte não consumida, que corresponde à poupança
de parte dos lucros. (Abstraímo-nos da poupança dos trabalhadores, que é sem importância.) Agora, se o investimento for suficientemente elevado para absorver esse excedente, o pleno emprego será mantido.
Se, entretanto, o investimento estiver aquém da poupança dos capitalistas, então parte do produto permanecerá não vendido, e assim os bens se acumularão em estoque. Em tal situação, é óbvio que a produção das empresas será reduzida até que o nível da renda nacional atinja o ponto em que a poupança é igual ao investimento prevalecente. A queda da renda nacional e do emprego obviamente causará declínio do consumo assim como da poupança. É fácil ver que o papel do investimento na determinação de um certo nível da renda nacional não está associado com a destinação final do investimento: não importa se o investimento se mostrará útil ou inútil no futuro, de qualquer forma gera a mesma demanda efetiva quando está sendo levado a cabo.
Portanto, é perfeitamente claro que o investimento pode ser substituído, nesse respeito, por despesas governamentais financiadas por empréstimos, desde que elas não envolvam nenhuma redução das rendas por meio de tributação. Assim, as despesas governamentais baseadas no déficit orçamentário podem solucionar o problema da demanda efetiva; e se são suficientemente elevadas, podem assegurar o pleno emprego. Esse é o atual fundamento da política governamental no capitalismo moderno. Quando o investimento está aquém do nível necessário para manter a demanda efetiva, a lacuna é coberta pelas despesas governamentais.

Pode parecer estranho que, dessa forma, uma das contradições básicas do sistema capitalista seja solucionada por uma espécie de truque financeiro. O que, entretanto, é estranho não é essa solução, mas a tendência para o subemprego de recursos através da inadequada demanda efetiva inerente ao sistema capitalista. Isso pode ser melhor observado por meio de uma comparação com o sistema socialista, onde o excedente econômico é usado pelo governo para a formação de capital, ou então para o aumento dos salários ou a redução dos preços, assim incrementando o consumo. Tal não é o caso no sistema capitalista. A artificialidade do subemprego de recursos é superada pela artificialidade do truque financeiro representado pelas despesas governamentais financiadas ad hoc por empréstimos.

É absolutamente necessário financiar a despesa governamental por meio do déficit orçamentário a fim de criar uma adequada demanda efetiva? Não. De fato, imaginemos que o pleno emprego é conseguido inicialmente por meio do déficit orçamentário, mas que em seguida a poupança de parte dos lucros gerados por esse déficit é retirada por meio de impostos. Desse modo os lucros são reduzidos aos níveis existentes antes do aumento da despesa governamental, mas nada se modifica na esfera da produção corrente. Assim, a despesa governamental financiada
pela tributação dos lucros pode também assegurar o pleno emprego. A diferença, em comparação com a forma de financiamento por meio do déficit orçamentário, está no impacto sobre os lucros causados pela tributação, e suas repercussões: no caso do financiamento por meio
do déficit orçamentário os lucros são incrementados no montante da despesa adicional do governo, o que leva a um aumento do consumo capitalista e do investimento privado; quando a despesa governamental é financiada pelos impostos sobre os lucros, estes mantêm-se inalterados, e o consumo dos capitalistas, assim como O investimento privado, não
tendem a elevar-se.

Consideremos agora a destinação da despesa governamental realizada a fim de manter o pleno emprego. Do ponto de vista da criação da demanda efetiva, a destinação da despesa governamental pouco importa, como foi dito acima; mais racional, todavia, e isso ocorreria
num sistema socialista, seria aplicá-la em investimento e assim acelerar o desenvolvimento da economia; ou contribuir, através da despesa governamental ou da redução dos impostos, para o aumento do consumo das amplas massas da população. No capitalismo, entretanto, isso não acontece necessariamente. De fato, atualmente o excedente econômico disponível é em grande parte usado para produzir armamentos. Assim a economia é mantida pelas despesas em armamentos e o povo tem assegurado seu meio de vida por meio da manufatura de meios de destruição. Para um observador de fora, isso parece um perfeito absurdo, porque o excedente poderia ser usado para incrementar o investimento ou o consumo. Mas, na verdade, o excedente é desperdiçado ou pior do que isso.

Mesmo que seja um absurdo, tal método de manter o pleno emprego assegura ao capitalismo moderno regular grau de estabilidade política, porque embora os níveis de consumo das massas não sejam tão altos como poderiam ser, ainda assim são muito mais altos do que os que prevaleceriam em condições de desemprego. Além disso, se o pleno emprego é consistentemente mantido e se a participação relativa do trabalho na renda nacional permanece constante, haverá também algum incremento contínuo do salário real, por causa da crescente produtividade do trabalho. Se a força de trabalho é continuamente empregada, se há aumento de produtividade e se a participação relativa do trabalho na renda nacional é mantida, é perfeitamente claro que o salário real é obrigado a elevar-se. Desse modo os trabalhadores nos países desenvolvidos alcançam, no presente, condições de vida toleráveis, que os impedem de revoltar-se contra o sistema que mantém pleno emprego por meio do desperdício de recursos ameaçador da paz mundial.

II

O problema crucial das economias subdesenvolvidas é diferente. Não pretendemos negar que numa economia subdesenvolvida possa haver deficiência da demanda efetiva. Há muitos exemplos de países cujo equipamento de capital, apesar de diminuto, ainda assim é subutilizado. Entretanto, em contraste com as economias desenvolvidas, mesmo se esse equipamento for plenamente utilizado, não será capaz de absorver toda a força de trabalho disponível — do que resulta um padrão de vida muito baixo. Muito baixo não para todo mundo, é claro, mas certa-
mente para as amplas massas da população. A situação, portanto, não pode ser remediada por um truque financeiro, o principal problema sendo aqui a deficiência da capacidade produtiva, mais do que a anomalia de sua subutilização. A capacidade produtiva deve não. somente ser
plenamente utilizada, mas também ser rapidamente expandida, e isso, como veremos, é uma proposição muito mais difícil.

O problema crucial dos países subdesenvolvidos é o aumento considerável do investimento, não a fim de gerar demanda efetiva — como é o caso numa economia desenvolvida mas com subemprego —, mas para acelerar a expansão da capacidade produtiva indispensável ao rápido crescimento da renda nacional. Haverá, todavia, três importantes obstáculos à aceleração do investimento. Primeiro, é possível que o investimento privado não se efetivará a uma taxa desejável. Segundo, poderá haver deficiência de recursos físicos para produzir mais bens de investimento. Terceiro, mesmo que as duas primeiras dificuldades sejam superadas, haverá ainda o problema do suprimento adequado de gêneros essenciais de consumo para cobrir a demanda resultante da expansão do emprego.

Primeiro, é perfeitamente claro que, especialmente nos países subdesenvolvidos, um alto nível de investimento privado não é fácil de se conseguir. Mas podemos supor que, toda vez que o investimento privado fracasse, o governo tomará medidas para que o investimento total alcance o nível desejado.

Segundo, se as capacidades para produzir bens de investimento já são plenamente usadas, é impossível aumentar sua produção no período considerado. Mas suponhamos que esse não seja o caso, isto é, que ainda existam algumas reservas nas indústrias de bens de investimento
especialmente nas indústrias de construção¹. Assim seria ainda possível aumentar o investimento.

Terceiro, se o investimento nessa situação for aumentado, surgirá uma pressão inflacionária sobre os bens essenciais de consumo porque sua oferta, especialmente a de gêneros alimentícios, é limitada. Isso infelizmente, não pode ser superado através do financiamento do investimento adicional por meio dos impostos sobre os lucros. Com tal tipo de financiamento do investimento, consegue-se meramente que, como foi mostrado acima, os lucros, depois de tributados, não se elevem e que assim o consumo dos capitalistas não tenda a crescer. Entretanto devido ao maior nível de emprego, haverá pressão dos salários sobre á
limitada oferta de bens essenciais de consumo, e os preços desses bens se elevarão até o ponto em que o valor real do acrescido montante de salários será igual à rígida oferta de bens essenciais de consumo. Os lucros, antes dos impostos, elevar-se-ão pelo montante do investimento adicional, mas essa elevação será eliminada pelos impostos. Desse modo, tanto o montante dos lucros depois dos impostos como o volume dos salários reais permanecerão inalterados. Todavia, com o maior emprego, mais trabalho será realizado pelo mesmo pagamento real, isto é, o salário real por trabalhador declinará, e será isso que possibilitará
maior nível de investimento — o que é a mais injusta forma de financiar o aumento de investimento necessário para a aceleração do crescimento econômico.

Os problemas descritos acima aparecerão mais manejáveis se forem considerados em termos de um plano de longo prazo, em vez de em condições de aceleração abrupta da expansão das capacidades produtivas. Em tal plano podemos considerar um gradual crescimento do investimento em relação à renda nacional, assim como um gradual crescimento da produção dos bens essenciais de consumo.

As pressões inflacionárias podem ser evitadas pela planificação de um aumento de oferta de bens essenciais de consumo equiparando-se à sua demanda, criada pelo aumento planificado da renda nacional. À parte isso, teremos de fazer face ao problema de uma gradualmente
crescente participação relativa do investimento na renda nacional como contrapartida de um gradual aumento na taxa de crescimento dessa renda. Isso envolve uma redução na participação relativa do consumo na renda nacional, e, a fim de consegui-lo corretamente, dever-se-iam
aplicar impostos para restringir o consumo de bens não-essenciais. Assim, uma gradual aceleração do crescimento da renda nacional seria acompanhada de aumento na oferta de bens essenciais, adequada para evitar pressões inflacionárias; e a participação relativa mais alta do investimento na renda nacional seria compensada por uma redução da participação relativa do consumo de bens não-essenciais, conseguida por meio de uma apropriada tributação, direta ou indireta, dos ricos e abastados.
III

Essa é uma solução teórica do problema do desenvolvimento equilibrado de uma economia mista subdesenvolvida. É fácil ver, contudo, que uma aplicação prática de tal solução encontrará obstáculos políticos formidáveis.

O primeiro obstáculo surge pura e simplesmente da tentativa de introduzir alguma espécie de planificação na economia. Nessa economia seria necessário planificar não somente o volume mas também a “estrutura do investimento" porque, como foi dito acima, uma apropriada aplicação de investimento na produção de bens essenciais, bens não-essenciais e bens de investimento é indispensável. Isso, obviamente, requereria intervenção governamental muito mais profunda do que a nas economias capitalistas desenvolvidas, que objetivam a plena utilização de recursos. De um lado, o governo terá de investir em todos os ramos da economia em que não haja adequado investimento privado, e, de outro lado, o investimento privado terá de ser regulado, a fim de se evitar que o investimento real em alguns setores da economia ultrapasse o nível planejado.

A tarefa seguinte, e a mais difícil, é a de assegurar um crescimento adequado da oferta de bens essenciais de consumo. Suponhamos que, de acordo com o plano, um apropriado investimento é aplicado tanto na agricultura como na indústria de fertilizantes, necessário para se atingir o aumento planejado da produção de bens alimentícios. Isso, no entanto, não soluciona completamente o problema. A questão é que, numa economia subdesenvolvida, a produção agrícola é obstruída por uma diversidade de limitações, as quais a impediriam de crescer a uma alta taxa, mesmo que todos os recursos materiais estivessem disponíveis. Esses poderosos obstáculos ao desenvolvimento da agricultura são as relações feudais e semifeudais no campo, assim como a dominação dos camponeses pobres pelos comerciantes e credores. Assim, uma aceleração radical do desenvolvimento da agricultura é impossível se não forem introduzidas mudanças institucionais substanciais. Nesse sentido, nem uma reforma agrária seria suficiente; porque, como o mostra a experiência, mesmo quando a reforma agrária é levada a cabo, permanece o domínio dos camponeses pelos emprestadores de dinheiro e comerciantes, para
não falar da fraude à própria reforma. É perfeitamente claro que a superação dos obstáculos às mudanças institucionais mantidos pelas classes privilegiadas é problema de solução mais difícil do que o truque financeiro para sanar a deficiência da demanda efetiva, crucial para as economias desenvolvidas.

Finalmente, surge o problema da tributação adequada dos ricos e abastados para se conseguir um mais alto investimento. Aqui, novamente, sérios obstáculos são encontrados. A coleta de impostos nas economias subdesenvolvidas é muito difícil, e a evasão dos impostos é imensa, mesmo quando as devidas leis são aprovadas. Esses fatos são também usados, por parte dos interesses afetados, como argumentos contra a utilização dos referidos impostos. Disso tudo resulta, usualmente, pouco progresso nessa matéria,

Os três problemas discutidos acima — a intervenção do governo na esfera do investimento objetivando assegurar seu volume e estrutura planejados, a superação das barreiras institucionais ao rápido desenvolvimento da agricultura, a tributação adequada dos ricos e abastados — constituem claramente um enorme problema político. Em teoria, muitos — incluindo até representantes das classes dominantes — aprovam a necessidade econômica de empreender as medidas em questão. Mas, quando se trata de sua aplicação, afetando todos os tipos de sagrados interesses, a situação se modifica radicalmente e uma imensa reação se
desenvolve em uma diversidade de modos. Porque, na realidade, a superação de todos os obstáculos ao desenvolvimento econômico enumerados acima significa mais do que a revolta criada no século XVII pela Revolução Francesa. Assim, não é surpreendente que essas reformas não sejam pacificamente levadas a cabo.

O firme mas equilibrado desenvolvimento do tipo esboçado acima dificilmente é encontrado na prática. De fato, encontramos dois tipos de desenvolvimento (talvez com alguns casos intermediários): ou o desenvolvimento é não-inflacionário, mas extremamente lento, ou é relativamente rápido e acompanhado por violentas pressões inflacionárias. E essa é a verdadeira razão da tensão política nos países subdesenvolvidos, mantida em xeque pelas ditaduras militares ou por outros mais sutis estratagemas. Pode-se ver agora que a diferença entre desenvolvimento e subdesenvolvimento em economias não-socialistas pode ser for-
mulada de uma forma muito simples. De um lado, os recursos existentes têm de ser mobilizados, e o capitalismo moderno aprendeu o truque de fazê-lo. De outro lado, os recursos têm de ser construídos, e isso requer profundas reformas que implicam mudanças revolucionárias. E
esse simples fato explica a diferença da situação econômica e política nos dois grupos de países, e, em certo sentido, determina a presente fase da história.

¹ De fato, uma razoável proporção de bens de investimento é obtida através do comércio exterior e pode-se supor que um aumento do investimento seja parcialmente assegurado por alguma expansão das exportações ou pela redução das importações de bens não-essenciais.

KALECKI, M. The difference between crucial economic problems
of developed and underdeveloped non-socialist economies. In: —, Essays on
planning and economic development. Varsóvia, P. W, N., 1968. v. 3. Trad. por
- Jorge Miglioli e publicado anteriormente em KaLeck, M. Crescimento e ciclo das
economias capitalistas, São Paulo, Hucitec, 1977



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