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"A Destruição da Razão", do Lukács (1)

  

O Instituto Lukács, antes de encerrar as atividades esse ano, publicou a primeira tradução em português de A Destruição da Razão, do Lukács. Eu ia comprar em janeiro, acabei me enrolando, mas depois peguei o e-book. Esse livro, como vocês devem perceber pelo blog, foi uma influência muito forte pra mim, mesmo eu nunca tendo conseguido terminar de ler da primeira vez, no ano que eu estudei na UFRJ e peguei na biblioteca da Letras. Hoje, depois de vinte anos, eu reli e quero, ao mesmo tempo, fazer uma resenha e falar das minhas impressões nesse intervalo tão grande

Vou dividir em três ou quatro partes pra leitura não ficar cansativa.

O livro é dividido em sete capítulos e o epílogo. Nessa edição, vem mais um texto, sobre como lidar com o passado alemão. Vou falar de um por um, depois vou dizer como eu avalio a influência desse livro e da corrente lukacsiana em geral (quem lê aqui sabe que eu sou muito crítico a eles).

A introdução situa o irracionalismo, colocando como a corrente principal mas não única do pensamento reacionário, que levou até à justificativa da Segunda Guerra Mundial, e coloca a história do crescimento do irracionalismo especificamente na Alemanha, delimitando o campo dos autores que ele vai pesquisar. E até fala dos elementos irracionalistas na filosofia do Bergson, e da influência dele sobre o Sorel e o fascismo italiano, mas todo o foco do livro vai ser a Alemanha. 

Eu, tendo lido o Zeev Sternhell, reparo que ele tá focando justamente onde a ideologia fascista se desenvolveu mesmo do ponto de vista intelectual, e rapidamente virou uma justificativa do regime. Hoje se sabe (mas isso não era compreendido nos anos 1950) que o fascismo surgiu na França no começo do século XX, e lá floresceu e teve várias expressões, antes de chegar à Alemanha. Na Alemanha existem teóricos interessantes, como o Otto Strasser, mas os fascistas e os precedentes do nazismo, na forma da revolução conservadora, também são parte de um contexto internacional mais amplo. 

Se perde uma parte importante das conexões com esse olhar centrado na Alemanha. Só para dar um exemplo, os tradicionalistas franceses que hoje são recuperados pelos fascistas duginistas e pela extrema direita populista, também influenciaram o fascismo italiano e o romeno com posições sobre a tradição, e essa conexão não tem como ser feita, porque eles não foram tão importantes na Alemanha. Pode ser que o desprezo dele em relação à ideologia fascista (como se fosse simplesmente pura demagogia) faz ele perder o senso de que existe uma concepção política nova nela, que não se reduz a uma função instrumental nas mãos do capital monopolista (conforme a concepção da Internacional Comunista) e que merece uma análise própria.

Mas até aí, tudo bem. No primeiro capítulo é que ele tenta fundamentar essa escolha, mostrando como a Alemanha, por ter um destino histórico específico, fruto da destruição da Guerra dos Trinta Anos e de uma unificação tardia do Estado nacional, acabou não tendo uma tradição democrática popular, e isso criou um ambiente de servilismo, atraso, autoritarismo que foi capitalizado pelo nazismo (e inclusive uma parte importante da ideologia reacionária alemã retratava esse autoritarismo como uma vantagem positiva contra as democracias parlamentares da Alemanha e Reino Unido).

Se olharmos, vamos ver que realmente os dois  países em que o fascismo chegou ao poder (o salazarismo, o franquismo e várias ditaduras no Leste Europeu na mesma época tinham traços fascistas, mas não eram regimes fascistas plenos) são os dois únicos da Europa que tiveram a unificação já no final do século XIX. 

É sempre muito difícil ter um juízo definitivo sobre esse tipo de questão, já que não podemos comparar com uma história alternativa mas, acho menos temerário dizer que esses países precisaram dessa forma de política imperialista que é o fascismo porque chegaram tarde demais na partilha do mundo do final do século XIX. Não sei se a falta de tradição democrática consegue explicar isso tudo (inclusive lá no epílogo ele fala que é possível uma transição dos EUA para o fascismo por vias democráticas).

No segundo capítulo, partindo desse diagnóstico sobre o atraso alemão, ele vai começar a procurar as origens do irracionalismo moderno. Ele fala de três filósofos: Schelling, Schopenhauer e Kierkegaard. 

Toda essa polêmica vai ser feita em cima do legado do Hegel, e depende de pressupostos sobre a filosofia do Hegel e da dialética com que eu não concordo e que eu vou tentar explicitar aqui.

O Lukács diz que o irracionalismo não tem história própria. Ele é uma atitude do pensamento quando encontra um problema de grande alcance filosófico e, em vez de resolver, recua e, como conclusão, declara que ele não é passível de resolução. Ou seja, transforma a incapacidade de resolver num fetiche, como se fosse um limite do conhecimento. 

Então, ele vai dizer o seguinte: a filosofia do Iluminismo, absorvendo as descobertas das ciências, criou o materialismo mecanicista dos séculos XVII e XVIII, apesar das muitas teses dialéticas em filósofos como Hobbes, Spinoza, Rousseau etc. A biologia e a história colocaram problemas que não poderiam ser resolvidos dentro desse quadro, então a filosofia clássica alemã a partir do Kant e, principalmente do Hegel, começa a desenvolver as categorias dialéticas de forma cada vez mais consciente. E o Hegel é o ponto máximo da filosofia burguesa que, depois, só pode avançar mais se colocando do ponto de vista do proletariado.

Ele identifica o primeiro aparecimento do irracionalismo moderno na filosofia do Schelling. O jovem Schelling estudou junto com o Hegel e o Hölderlin no seminário da Universidade de Tübingen, onde eles formularam os seus primeiros sistemas filosóficos embrionários na juventude. 

O Lukács diz que a filosofia da natureza do Schelling é uma passagem dialética importante para o idealismo objetivo do Hegel, mas que, a partir de 1804, ele recua, mantendo essas categorias dialéticas só na filosofia da natureza e colocando a intuição como o instrumento para o conhecimento que vai além da natureza, e que esse irracionalismo se torna o centro da filosofia dele quando ele vira um tipo de filósofo “oficial” da Prússia depois da  derrota da revolução de 1848. 

Nesse momento, ele coloca a dialética como uma filosofia negativa, que destroi as ilusões sobre a natureza, e que tem que ser complementada por uma filosofia positiva, que busca as suas fontes nos mitos e na religião. Com isso, sempre segundo o Lukács, ele articula as classes tradicionais do período anterior à revolução francesa, que estavam no poder na Alemanha no período depois da derrota da revolução burguesa.

Eu não conheço nada do Schelling, então não tenho como saber se é isso mesmo, a não ser que ele realmente virou um ideólogo reacionário. Outros caras estudam a obra dele e veem elementos interessantes, o Zizek é um

Mas quem eu li alguma coisa foi o Schopenhauer. Ele aparece aqui como o primeiro representante burguês do irracionalismo moderno. Diferente do Schelling, e dos contrarrevolucionários franceses (como o Joseph de Maistre), ele não defende mais uma forma específica de monarquia tradicional que deveria ser restaurada, e sim qualquer governo que imponha a ordem, independente da forma política. O Lukács cita o episódio em que, durante a revolução de 1848, o Schopenhauer emprestou a sacada da casa e uma luneta pras tropas do governo atirarem nos revolucionários. 

E, mais importante, ele diz que o Schopenhauer cria uma nova forma de apologia do capitalismo, que é a apologia indireta. Diferente da apologia direta liberal, que retrata o capitalismo como um sistema de harmonia, em que as partes ruins são defeitos que podem ser corrigidos, a apologia indireta reconhece a realidade incontornável da crise e das contradições do sistema, mas coloca os elementos negativos como se fossem positivos. 

Por exemplo, o fato de existir uma camada intelectual que não precisa trabalhar é visto pelo Schopenhauer como uma garantia de independência intelectual. Daí, o Lukács, corretamente, caracteriza que a filosofia dele propõe o abstencionismo diante das lutas sociais. 

Qual é a relação disso com a dialética? O Schop diz que não é possível estender a razão até compreender a história (aí o irracionalismo), então deve haver um recuo para a divisão entre fenômeno e coisa-em-si da filosofia kantiana. Mais ainda, como a coisa-em-si não pode ser apreendida pela razão, ela é irracional. Raciocinando por analogia, ele vê nesse impulso uma forma que, na sua manifestação mais desenvolvida, é a vontade (por isso o mundo é Vontade, ou seja, coisa-em-si, e Representação, aparência). Daí ele tira a filosofia de desengajamento diante do mundo, e de cultivo estético desse isolamento como virtude. 

Com o Kierkegaard, ele diz que o irracionalismo passa a falsificar a dialética. O Kierkegaard começa a escrever no momento de dissolução do sistema hegeliano, quando ele morre e a contradição entre o método e o sistema começam a esgarçar a filosofia dele. O Lukács dá razão a uma crítica e ignora a outra.

A que ele reconhece é a crítica que também foi feita pelo Tredelenburg (1802-1872) de que o movimento dos conceitos na filosofia do Hegel é completamente arbitrário, e muito provavelmente é da forma que é por pura conveniência para a organização do sistema e da exposição. O Lukács vai dizer que isso é porque é uma dialética idealista. Não é. O fato de “inverter” a dialética, alegando que as categorias são reflexos da realidade exterior, não muda que as categorias não necessariamente se encadeiam segundo essas categorias (inclusive existe um risco real do movimento falso se transpor para a dialética supostamente materialista, criando coisas do tipo “inevitabilidade do socialismo”, como o Castoriadis lembra bem).

E, talvez a mais importante, na dialética do Hegel não existe espaço para a subjetividade. O sujeito da história é o Espírito, os indivíduos no máximo são instrumentos para o movimento do Espírito na história. Não tem como existir uma ética hegeliana (nem marxista, aliás), e a isso o Kierkegaard vai responder, do ponto de vista religioso protestante, insistindo na interioridade do indivíduo o que, na filosofia dele, significa uma ruptura com a história (o paradoxo, segundo o Kierkegaard, é Cristo ultrapassando a história de dentro da história). 

Que é um sistema religioso, sem conexão com a realidade social, não tem dúvida. O Lukács coloca o Kierkegaard nessa sucessão dos irracionalistas aqui, pra mim, atirando à distância pra acertar nos existencialistas lá no século XX. Falando da filosofia da vida, eu vou escrever mais sobre esse método estilo KGB de “acusação por associação” e da crítica que ele faz ao ateísmo religioso.


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