Umas das "aventuras" que eu mais gostei de entrar nessa pandemia foi terminar de ler Em Busca do Tempo Perdido. Tô com dois livros pra ler depois, Proust e os Signos, do Deleuze, e Lukács, Proust e Kafka, do Carlos Nelson Coutinho. Mas resolvi não ler antes de terminar tudo, pra não influenciar as minhas impressões.
E a minha maior impressão - entre todas as coisas que tem ali, que eu não vou falar nesse texto - é que a modernidade da obra tem uma característica muito semelhante ao queer: é um jogo de dissimulações, em que a própria noção de orientação sexual se esvai entre as camadas da narração.
É um livro escrito por um autor gay que faz uma autoficção em que, pra evitar o escândalo, o personagem do narrador é hetero e em que, em quase metade da obra, paira a dúvida sobre se Albertine, a namorada dele, é lésbica e, em geral, essa suspeita sobre serem homossexuais se estende sobre vários outros personagens. O personagem que mais claramente é gay, o Barão de Charlus, começa adotando um comportamento hipermasculino, e vai ficando cada vez mais afeminado conforme vai envelhecendo, e que tem o que está mais perto de ser um relacionamento homossexual explícito nos livro, com o Charles Morel.
No meio de tudo isso, em A Raça Maldita, um tipo de prefácio do volume Sodoma e Gomorra, onde ele defende longamente uma visão sobre a sexualidade que é a teoria protocientífica do primeiro movimento homossexual, de fins do século XIX e começo do século XX, escrito com o tom objetivo e distanciado:
Além do mais, eu compreendia agora por que,ainda há pouco quando o vira sair da casa da Sra. de Villeparisis, pudera achar que o Sr. de Charlus tinha um jeito de mulher: pois era uma! Pertencia à raça daquelas criaturas, menos contraditórias que parecem, cujo ideal é viril, justamente porque seu temperamento é feminino, eque na vida são semelhantes outros homens, porém apenas na aparência; aí onde cada um traz constantemente, nesses olhos com os quais vê todas as coisas no universo, uma silhueta gravada na pupila não é para eles a de uma ninfa, mas de um efeboy.
Todo esse registro da homossexualidade como uma possibilidade, virtualidade ou, pra usar um jargão, um devir, me fez pensar em como a crítica literária pós-estruturalista/queer leu esses livros e como se viu neles. Realmente, tem muitas publicações sobre a homossexualidade e o Proust, algumas que se concentram em tentar desvendar o que tem de experiência vivida dele transfigurada na obra (e que, por exemplo, tentam procurar quais homens seriam a inspiração das personagens femininas).
Mas o que eu achei de mais interessante foi um ensaio da Eve Kosofsky Sedgwick (1950-2009), uma crítica que eu não conhecia. Ela tem um livro chamado Epistemology of the Closet, que tem um ensaio sobre o que ela considera o dispositivo principal no Proust, Proust and the Spetacle of the Closet, sobre, como ela define, "a teatralização de um armário-figurado-como-espetáculo para preservar a privacidade do armário-ocluído-como-ponto-de-vista de outrem".
Segundo ela
A eficácia do Senhor de Charlus para o romance como um todo depende tanto da apresentação de Proust do espetáculo do armário como a verdade do homossexual, e isso é realizado com tal completude aparente, que um dos problemas mais difíceis da leitura de Proust passa a ser encontrar um espaço nesse mundo orientado para Charlus onde os outros desejos homossexuais no livro possam até mesmo ficar visíveis. Especialmente, tentar colocar o eros que rodeia o narrador e Albertine em qualquer foco binocular com a apresentação que o romance faz de Charlus é uma tarefa esmagadoramente difícil. Existe uma explicação simples para essa dificuldade: é exatamente em sua relação com a visibilidade que os dois loci eróticos são tão violentamente incomensuráveis. Aparentemente, o armário de Charlus é espetacularizado para que o erótico em torno de Albertine (ou seja, ao redor do narrador) possa continuar a resistir à visualização; é esse espaço incipiente que incluirá Albertine e, para garantir a sua isenção privilegiada em relação à visão, é que o narrador prepara a apresentação de Charlus; é ao redor do eixo perceptual entre um armário visto e um armário habitado que um discurso sobre o mundo toma forma.
Essa é a forma simples de formular a dificuldade, e penso que é a crucial; mas, se a dificuldade fosse tão simples assim, seria fácil dominá-la analiticamente. Em vez disso, a diferença de visibilidade se realiza através de todos os canais através dessas grandes e intratáveis incoerências das definições homo/heterossexuais e de gênero estabelecidas na crise do discurso sexual na virada do século.
Para começar: enquanto o espetáculo do Senhor de Charlus é ostensivamente o de um armário com um homossexual escondido, com uma ineficiência fascinante, no seu suposto interior, por outro lado, é difícil localizar um homossexual em qualquer lugar na privacidade flutuante ao redor de Albertine. Com toda a pluralidade de caminhos interpretativos, não há nenhuma forma de ler os volumes de Albertine sem encontrar desejo pelo mesmo sexo em algum lugar; ao mesmo tempo, aquela especificidade do desejo, no plot de Albertine, notoriamente se recusa a permanecer fixado a um único tipo de personagem, a um único personagem, ou até mesmo a um único nível ontológico do texto. Dado um narrador masculino fixado sobre a interpretação de uma Albertine feminina que, por sua vez, tem, ou tem tido, conexões sexuais com numerosas outras mulheres, se esperaria que o narrador mobilizasse, para "explicá-la" e "entendê-la", todos os clichês sobre o assunto exótico da inversão em geral, e Gomorra em particular, laboriosamente reunidos por ele em "La Race maudite." Mas isso quase nunca acontece. A terrível dilatação da pressão interpretativa sobre Albertine é posta sobre ela esmagadoramente, não sobre a categoria da "invertida", e sim sob a categoria do "objeto amado" ou, como se fossem sinônimos, simplesmente de "mulher". E, é claro, enquanto o "invertido" é definido em Proust como uma pessoa sobre a qual todo os outros no mundo têm, potencialmente, privilégio epistemológico, "o objeto amado" e "mulher" são definidos, ao contrário, pelo eclipse completo do poder de saber sobre eles da pessoa, o amante, que é quem mais precisa dele.
É interessante ver que a crise do sujeito, que é um dos motores do modernismo na literatura, se expressa nesse tema do mascaramento e da indefinição do desejo.
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