O Luther Blisset, leitor do blog, mandou esse artigo do Zizek sobre Guerra nas Estrelas, já que ele gosta da série (que eu acho muito ruim, além de ser de fantasia muito maldisfarçada de ficção científica), enão concorda comigo. O artigo é muito bom, deem uma lida:
Eis o
interesse ideológico da saga de Guerra nas Estrelas – mais exatamente,
de seu momento central: a inversão do ”bom”
Ken Anakin no “mau” Darth Vader. Aqui, Guerra nas Estrelas aproveita o
paralelo explícito entre os níveis individual e político. No nível individual,
a “explicação” refere-se a um clichê budista pop:
Ele se transforma em Darth Vader porque começa a se
apegar às coisas. Não consegue se separar da mãe; não consegue se separar da
namorada. Não consegue se separar das coisas. Isso o torna ganancioso. E quem
se torna ganancioso envereda pelo caminho do lado negro, porque teme perder
suas coisas. (George Lucas, citado em “Dark Victory”, Time, 22/4/2002).
A Ordem Jedi,
portanto, é apresentada como uma comunidade masculina fechada, que proíbe o apego
romântico aos seus integrantes – uma nova versão da comunidade do Graal que se
encontra em Parsifal, de Wagner. Mas
o paralelo político é ainda mais revelador: “Como a Republica se transformou em
Império? Isso é paralelo a: como Anakin se transformou em Darth Vader? Como uma
pessoa boa se torna má e como uma democracia vira uma ditadura? Não é que o
Império tenha vencido a República, é que o Império é a República”. O Império,
portanto, nasceu da corrupção inerente à República: “Certo dia, a princesa Léia
e seus amigos acordaram e disseram: ”Não há mais República, agora é o Império.
Somos nós os bandidos”. Não se pode deixar de ver as conotações contemporâneas
desta referência à Roma antiga: a passagem do Estado-nação para o Imperio
global. Portanto, devemos ler a problemática de Guerra nas Estrelas sob este
pano de fundo de Estado-nação para Imperio.
(E se politicamente, então, Herói, de Zhang Yimou, resposta da Repúplica Popular da china a
Hollywood, for a verdadeira alternativa a Guerra
nas Estrelas? Um guerreiro sem nome (Jer Li) envolve-se numa conspiração
complexa para matar o rei de Qin, cuja obsessão é tornar-se o primeiro
imperador da China, unificando seus sete Estados em guerra; entretanto, no
decorrer da trama, o guerreiro sem nome fica sabendo que o imperador, apesar de
ser um déspota impiedoso, persegue o grande sonho psicótico de uma China
unificada e decide sabotar sua própria conspiração, sacrificando a si mesmo e
aos seus amigos mais íntimos em prol da unidade da China “sob um único céu”.
Conseguiríamos imagina a saga de Guerra
nas Estrelas reescrita desse modo, tendo o imperador como o grande
Unificador galáctico e Anakin sacrificando os amigos pela paz global e pela
unidade “sob um único céu”?)
As
conotações políticas do universo de Guerra
nas Estrelas são múltiplas e inconsistentes, e essa é a chave do poder
“mítico” desse universo: o mundo livre contra o Império do Mal: o recuo dos
Estados-nações, que pode ter uma conotação direitista do tipo Buchanan-Le Pen;
a contradição sintomática de pessoas de condição nobre (princesa, membros da elite da Ordem Jedi) defendendo a
república “democrática” contra o Império
do Mal; e finalmente, a correta noção-chave de que “somos os bandidos”(o
Império mau não está lá fora; ele surge da própria maneira como nós, os
“mocinhos”, combatemos o Império mau, o inimigo que está lá fora – na atual
“guerra ao terror”, o problema é em que essa guerra transformará os Estados
Unidos). Ou seja, o mito político
propriamente dito é menos uma narrativa com determinado sentido político do que
o receptáculo vazio de uma miríade de sentidos inconsistentes e até mutuamente
exclusivos; é errado perguntar: ”Mas o que esse mito político realmente
significa?”, já que seu “sentido” é exatamente servir de receptáculo para a miríade
de sentidos.
Guerra nas Estrelas I: a ameaça fantasma
já nos dá a pista fundamental para nos orientar nesta confusão: em primeiro lugar, as características “cristológicas” do
jovem Anakin (sua mãe afirma ter engravidado por meio de uma concepção imaculada;
a corrida que vence lembra nitidamente a famosa corrida de bigas de Ben Hur, essa “história de Cristo”); em
segundo lugar, o fato de ser identificado como o único com potencial para
“restaurar o equilíbrio da Força”. Já que o universo ideológico de Guerra nas Estrelas é o universo pagão
da Nova Era, é bastante lógico que a figura central do Mal lembre Cristo - no horizonte pagão, o Evento de Cristo é o
supremo escândalo.
Isso
nos leva à Vingança dos Sith,
capítulo mais recente da saga: o preço que se paga por continuar nesses mesmos
temas da Nova Era é a qualidade inferior da narrativa. Esses temas são a
principal causa para a falta de uma grandeza trágica adequada na transformação
de Anakin em Darth Vader , momento central de toda a série. Em vez de
concentrar-se no húbris de Anakin como um desejo avassalador de intervir, de
fazer o Bem, de ir até o fim por aqueles que ama (Amidala) e assim cair no Lado
Negro, o filme mostra Anakin simplesmente como um guerreiro indeciso, que aos
poucos escorrega para o mal quando dá espaço para a tentação do Poder, ao cair
como presa do cruel imperador. Em outras palavras, faltou energia a Lucas para
aplicar de fato o paralelo que ele mesmo propôs entre a transformação da
República em Império e de Anakin em Darth Vader. Anakin deveria ter se tornado
um monstro por sua fixação em ver o Mal por toda parte e em combatê-lo. Em vez
de oscilar entre o Bem e o Mal, ele deveria ter se voltado para o Mal pelo
próprio modo errado como se apegava ao Bem. Por exemplo, quando Palptine, o
chanceler da República, lhe conta a verdade sobre sua identidade como cruel
mestre sith e revela sua intenção de formar um império, ele joga com o medo e
com as outras fraquezas de Anakin, explora o ego e a arrogância do jovem jedi,
mostrando os jedis como corruptos e ineficientes, como a causa de todo o seu
sofrimento.
Quase
no final do filme, quando Anakin descobre que Padme ajudou Obi-wan a
encontrá-lo, ele a ataca e estrangula com tanta força que a ergue do chão,
porque é incapaz de controlar sua terrível paixão, e depois a joga contra a
parede, onde ela bate a cabeça com força. Mais tarde, depois do duelo com
Obi-wan, quando recupera a consciência e pergunta onde está Padme e Palpatine
lhe diz que foi ele mesmo quem a matou, Anakin grita, transformando a força
numa tempestade de fúria – as paredes se dobram com o ataque, os médicos
andróides são jogados de um lado para o outro e Palpatine tem de se proteger...
Essas duas cenas simbolizam o fracasso do filme: dois acessos idênticos de
fúria destrutiva incontrolável, o primeiro contra Padme e o segundo como
representação do remorso pelo primeiro; aqui, Anakin parece simplesmente
oscilar entre posições diferentes, a “má” (fúria contra Padme) e a “boa”
(remorso e amor por ela). O correto a fazer seria mostrar como o próprio amor
excessivo de Anakin por Padme, seu apego excessivo a ela, o fez seguir o
caminho do Mal...
O
duelo final entre Obi-wan e Anakin termina quando ele perde o equilíbrio e cai
num poço de lava, ficando horrivelmente ferido e queimado. Quase morto, Anakin
é salvo pelos auxiliares de Palpatine e levado para a ala medica, onde é
mantido vivo, mergulhadoem fluido curativo, sem pernas nem braços e
horrivelmente deformado. Os médicos andróides imperiais conseguem curá-lo,
transformando-o no terror blindado das estrelas que todos conhecemos como Darth
Vader. No final, Anakin-transformado-em-Vader sai da ala medica e caminha pela
ponte do destróier estelar, juntando-se ao novo mestre, Darth Sidious, o
imperador da galáxia. Pela janela, eles observam sua arma suprema, a Estrela da
Morte, que começa a ser construída. Vader respira miseravelmente, agora mais
máquina do que homem.
Aqui,
dois momentos são fundamentais. Pouco antes do fim do duelo, Obi-wan faz um
último apelo a Anakin para que volte para o caminho do Bem; Anakin rejeita o
apelo e, embora já esteja gravemente ferido, conjura suas últimas forças na
tentativa desesperada de contra-atacar. Não consigo resistir à tentação de
percebera insistência de Anakin como uma postura adequadamente ética, parecida
com a do Don Giovanni de Mozart, que recusa a última oferta de salvação do
Convidado de Pedra. Em ambos os casos, o que, no nível de conteúdo parece ser a
escolha do Mal é, no nível formal, o ato de reafirmar a coerência ética. Ou seja,
ambos têm consciência de que, do ponto de vista do cálculo egoísta pragmático,
é preferível renunciar ao Mal; ambos estão no fim da vida, sabem que nada têm a
ganhar persistindo na escolha do Mal; ainda assim, num ato de desafio que só
pode parecer estranhamente ético, eles permanecem corajosamente fieis à sua
escolha, por princípio, não por conta da promessa de ganhos materiais ou
espirituais.
Por
meio dessa coerência ética, por meio dessa fidelidade à escolha existencial,
Anakin surge como sujeito – o único sujeito verdadeiro em toda a saga de Guerra nas Estrelas. Aqui, daremos à
palavra “sujeito” seu status filosófico estrito: o sujeito em oposição à pessoa
(humana), o sujeito como núcleo excessivo da monstruosidade inumana bem no
cerne do ser humano. É por isso que Darth Vader não é simplesmente uma máscara
de Anakin; parafraseando a velha Formula de Althusser, podemos dizer que
Anakin, o indivíduo humano, é interpelado no sujeito Darth Vader.
O
meio privilegiado dessa subjetividade recém-nascida é a voz – a estranha Voz
ecoante, a marca registrada de Darth Vader nos capítulos subseqüentes da saga, a voz na qual o externo e o interno
estranhamente coincidem. A voz dele é
melhorada por uma máquina, amplificada artificialmente; entretanto, por essa
mesma razão, parece que, por causa dessa respiração captada de perto, a própria
vida interior reverbera diretamente nele. É uma voz espectral, não é uma voz orgânica de um corpo; não é um som que
faça parte da realidade externa cotidiana, mas é a expressão direta do Real da
“realidade psíquica”.
Sendo
assim, o fracasso de Guerra nas Estrelas
III é duplo. Em primeiro lugar, falha em seus próprios termos: não mostra a
virada de Anakin para o Mal como resultado de seu apego excessivo ao Bem.
Entretanto, a idéia de que o apego excessivo ao Bem pode levar ao Mal faz parte
do senso comum e é advertência costumeira contra os perigos do fanatismo
moralizador.; o que deveríamos fazer – e aqui reside a segunda falha do filme,
a verdadeira oportunidade perdida – é virar a constelação inteira de cabeça pra
baixo e apresentar Anakin-Vader como um personagem bom, um personagem que defende a base “diabólica” do Bem. Ou seja,
a origem do nosso compromisso ético não é exatamente nosso carinho e nosso
apego “excessivos”, nossa disposição de romper o equilíbrio do fluxo ordinário
da vida e arriscar tudo pela Causa a que aderimos? É disso que trata o amor
cristão: carinho excessivo pelo amado, dedicação “tendenciosa” que perturba o
equilíbrio do Todo. É por isso que, no fim da terceira parte da saga, quando
Darth Vader pede ao filho, Luke, que tire sua máscara e veja o rosto humano do
pai, essa exibição do rosto se equipara à regressão ética à dimensão do que
Nietzsche chamou de “humano, demasiadamente humano”. Em seus últimos instantes,
Darth Vader se dessubjetiviza e se transforma em um mortal comum: o que se
perde é Vader como sujeito, aquele que reside no vazio por trás da máscara de
metal preto (não confundir com o rosto humano por trás da máscara), o sujeito
que ecoa na voz artificialmente ecoante.
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