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A teoria marginalista do valor e a economia política neoclássica (Ernest Mandel)


Eu traduzi para o Núcleo de Estudos do Racionalismo Formal esse trecho do Tratado de Economia Marxista (1962), do Mandel, em que ele descreve em linhas gerais a escola neoclássica, que é a forma específica do formalismo reacionário na economia.


A teoria marginalista do valor e a economia política neoclássica

A economia política eclética fracassou, entretanto, em servir, seja aos acadêmicos que continuaram a tentar responder às questões deixadas a eles pelas gerações anteriores, seja à própria burguesia, que constantemente se expunha ao risco de que, partindo da popularização das ideias de Ricardo, os economistas pudessem prosseguir até algum ponto na direção do socialismo (como aconteceu com John Stuart Mill). A fim de neutralizar o “perigo socialista”, sentido mais agudamente a partir da revolução de 1848 e, acima de tudo, da Comuna de Paris (1871), toda a estrutura baseada na teoria do valor-trabalho teve que ser demolida. Essa foi a grande virada da economia política burguesa, rumo à teoria marginal do valor, que estava sendo preparada já em 1855, independentemente, por Hermann Gossen e Richard Jennings, e que culminou nas escolas neoclássicas britânica (Jevons, 1871), vienense (Menger, 1871) e suíça (Walras, 1874).

Comparada com as concepções ecléticas e vulgares, os neoclássicos se distinguiram por um maior rigor metodológico. Como os economistas clássicos, eles tentaram não deixar sem explicação nenhum fenômeno econômico, não passando por cima de nenhuma questão, para reunir materiais para a construção de uma estrutura coerente. A natureza apologética dessa estrutura não é vista tanto nas conclusões, e sim na metodologia e nas hipóteses iniciais. O sistema é coerente, mas é divorciado da realidade, a qual ele é incapaz tanto de apreender estatisticamente quanto a fortiori, de explicar as suas leis de desenvolvimento.

De Petty a Ricardo e Marx, toda teoria do valor foi objetiva. Ou seja, o seu ponto de partida era a produção; ou o valor se identificava com o custo de produção ou orbitava em torno dele. A influência da procura sobre o valor, como variável independente, era negada e, mesmo quando era levada indiretamente em consideração, só aparecia como uma função indireta da própria produção, já que todos os rendimentos eram considerados como tendo sido criados na produção. Na verdade, por essa razão, toda a teoria clássica era orientada para uma síntese entre as concepções micro e macroeconômicas, uma síntese que somente Marx se provou capaz de realizar com sucesso.

A escola neoclássica, entretanto, abordava o problema de uma forma totalmente diferente. Era uma escola de pura microeconomia, considerando que o valor poderia e deveria ser determinado para cada mercadoria separadamente. Ela encarava o valor não mais como uma função do custo de produção, e sim como uma função da influência independente da procura sobre o custo de produção. A separação do valor de troca e do valor de uso, o ponto de partida da escola clássica, era questionada. Se declarava, ao contrário, que o valor de troca era essencialmente uma função do valor de uso, da utilidade de uma dada mercadoria.

Mas como essa utilidade poderia ser medida? Aqui, os neoclássicos encontraram uma dificuldade que todos os seus predecessores tinham visto, de Aristóteles a Jean-Baptiste Say, incluindo tanto o monge francês Buridan como o Enciclopedista Condillac. Se perguntarmos a alguém, “Quanto é a utilidade desta faca para você?”, a pessoa vai responder: “Uma utilidade muito grande” ou “Eu a uso muito”, ou “Eu não preciso dela”. Ninguém responde a uma pergunta assim declarando uma quantidade, algum tipo de medida do valor de uso. Resignando-se a não serem capazes de expressar o valor de uso quantitativamente, os marginalistas caíram na expressão quantitativa das necessidades a que o valor de uso precisa atender. Eles elaboraram escalas individuais de necessidades; é por isso que esta escola tem sido descrita, corretamente, como subjetivista, já que o seu ponto de partida é puramente arbitrário, subjetivo. Como disse Rudolf Hilferding, enquanto Marx e os economistas clássicos partem do caráter social do ato de troca, e veem o valor de troca como um elo objetivo entre os proprietários (produtores) de diferentes mercadorias, os marginalistas partem do caráter individual das necessidades, e veem o valor de troca como um elo subjetivo entre o indivíduo e a coisa.

Mesmo assim, a expressão quantitativa das necessidades não é suficiente para superar a dificuldade. Um homem, obviamente, tem mais necessidade de pão e água do que de um diamante. Mesmo assim, o diamante tem um valor de troca mais alto do que o do pão. Um homem tem ainda mais necessidade de ar que, normalmente, não possui valor de troca. É por isso que a teoria neoclássica declara: não é a intensidade da necessidade em si, e sim a intensidade do último fragmento de necessidade não satisfeita (da utilidade marginal) que determina o valor.

Partindo desta ideia geral, a escola neoclássica elaborou uma série de curvas cujos pontos de interseção supostamente mostram as condições de equilíbrio: curvas de oferta e procura, determinando os preços de equilíbrio; curvas de indiferença e de preços, determinando as quantidades de mercadorias procuradas a cada nível particular de rendimento; curvas de custos marginais, determinando para os empresários os níveis de produção que vão garantir os maiores lucros; uma curva de salários e “desutilidade do trabalho”, determinando a procura de emprego; uma curva de taxas de juros oferecidos e lucros esperados, determinando o volume do investimento; uma curva do montante de capital acumulado e da massa de capital-dinheiro disponível, determinando a taxa de juros; e assim por diante. No fim, todo o sistema está em perfeito equilíbrio estático, o próprio “lucro” tendo desaparecido, pelo menos na obra de Walras, já que, em condições de concorrência perfeita, o valor do produto marginal – que determina o valor de toda a produção – se dissolve em capital depreciado, salários, juros e renda.

Aprendemos que “em condições de concorrência, o empresário aumenta o emprego de cada fator de produção até o ponto em que a produtividade marginal deste fator (o produto líquido obtido pela última unidade empregada) é igual ao preço deste fator no Mercado, e ele aumenta a sua produção até o ponto em que o custo marginal do produto (o custo da última unidade) é igual ao preço do produto’.
“Numa situação assim, as satisfações obtidas pelos consumidores são máximas, porque qualquer transferência de um fator de produção resultaria na redução do ‘valor’ criado por este fator. No caso de um trabalhador, por exemplo, ele produz em uma hora, onde ele está trabalhando neste momento, um ‘valor’ igual ao seu salário. Se ele fosse transferido para outro lugar, ele produziria um pouco menos, na verdade, ele seria ‘adicionado’ a um grupo de ‘trabalhadores cuja produtividade marginal seria necessariamente um pouco menor’”.

Eric Roll está certo em criticar a tese mecanicista de Bukhárin, segundo a qual a escola marginalista refletiria os interesses especiais de um novo estrato de rentiers que tinha aparecido no seio da burguesia. Mas Bukhárin estava certo quando ressaltou que a escola marginalista adota o ponto de vista do  rentier, ou, mais precisamente, do capitalista que se retirou da esfera empresarial, porque esta escola parte do consumo individual, em vez da produção social, que foi o ponto de partida dos economistas clássicos e de Marx. Não é acidental que os exemplos usados pelos fundadores da escola neoclássica sejam quase todos tirados da produção de luxo.

A natureza especial da escola neoclássica é mais enfatizada ainda pelo fato de que ela foi, durante um longo tempo, incapaz de determinar o valor marginal dos bens de capital. No fim, ela só conseguiu fazer isso introduzindo, com Böhm-Bawerk, a noção de um “percurso indireto” da produção, que se torna cada vez mais intensificado, conforme mais bens de capital entram no processo, um “percurso indireto” que tem que ser “pago”. Ela é, mais ainda, incapaz de explicar como, a partir do confronto entre milhões de “necessidades” individuais, emergem não só preços uniformes como preços que permanecem estáveis por longos períodos, mesmo em condições perfeitas de livre concorrência. Em vez de ser uma explicação de constantes, e da evolução básica da vida econômica, a técnica “marginal” fornece, no máximo, uma explicação para variações efêmeras, de curto prazo. É significativo que, na obra fundamental de Walras, ele parta do exemplo de vendedores e compradores “inclinados a negociarem”, ou seja, de especuladores da bolsa.

Hoje, a maioria dos economistas admite facilmente que o sistema de preços de equilíbrio dos neoclássicos é totalmente divorciado da realidade. Ele não leva em conta o padrão institucional do capitalismo, que torna bem absurda a noção de que os salários são determinados pelo “produto da última unidade de tempo que o trabalhador deseja [!] despender, em vez de utilizar para o lazer”. Ele não leva em conta o caráter dinâmico da concorrência e as perturbações contínuas do equilíbrio, que ela causa. Ele é essencialmente estático, e traz a dinâmica no máximo como um elemento perturbador do equilíbrio, enquanto, na realidade, o equilíbrio é apenas um momento transitório num movimento econômico espasmódico em oscilação incessante. Ele não tem explicação nem para as crises periódicas nem para as estruturais. Levado à sua conclusão lógica, ele até mesmo nega o fenômeno do imperialismo ou, mais precisamente, nega que exista alguma conexão entre o imperialismo e as leis de desenvolvimento do capitalismo.

A teoria neoclássica não é somente divorciada da realidade social como um todo. Ela também é divorciada da realidade prática da vida cotidiana. A teoria do valor-trabalho pode ser demonstrada empiricamente, ainda que somente no sentido de que, em última análise, todos os elementos do custo de produção de uma mercadoria tendem a ser reduzidos a trabalho, e somente trabalho, se formos longe o suficiente na análise. Apesar de todos os ensinamentos da escola neoclássica, os homens de negócios continuam a calcular os seus custos de produção nesta base. E, sempre que eles procuram comparar a produtividade, eles o fazem usando como padrão somente a “quantidade de trabalho despendida”.


A “revolução keynesiana”

A teoria marginalista do valor e a escola neoclássica baseada nela dominaram o pensamento econômico burguês durante três quartos de século. A sua função objetiva era, sem dúvida, puramente apologética – justificar a ordem capitalista como mais ou menos inevitável; justificar os salários, preços e lucros como o resultado de trocas efetuadas em condições de igualdade. À medida que a expansão capitalista que marcou a segunda metade do século XIX e a primeira década do século XX por si só constituiu um “argumento” muito mais poderoso a favor do capitalismo do que qualquer construção teórica, a burguesia não sentiu necessidade de uma tendência do pensamento econômico além desta escola puramente apologética.

Muitas gerações de economistas, contudo, se mostraram insatisfeitas com as respostas dadas pela escola neoclássica, especialmente aos problemas do investimento (a taxa de juros), do dinheiro (a teoria quantitativa da moeda) e das crises periódicas. E escola neoclássica começou a ceder nos seus pontos fracos, ou seja, as dificuldades que encontrou ao formular uma teoria dinâmica, uma teoria do crescimento, partindo dos dados microeconômicos do valor marginal, e da dificuldade de reconciliar a teoria dos preços da oferta e procura com uma teoria dos preços resultante da quantidade de moeda em circulação.

[Pode-se dizer que a escola marginalista nunca foi capaz de resolver o problema do “valor marginal do dinheiro” e que, por essa razão, ela continuou dualista, combinando uma teoria subjetiva do valor com uma teoria objetiva do dinheiro (por exemplo, a teoria da quantidade). É claro que um aumento do “estoque de moeda” não necessariamente reduz o “valor marginal” desse estoque, como aconteceria no caso de um aumento do estoque de milho, já que o dinheiro pode ser usado para comprar, uma após a outra, mercadorias que correspondem a necessidades diferentes de intensidade igual. O dualismo da teoria pode ser visto se imaginando um aumento do estoque de moeda subitamente causando um aumento dos salários, sem nenhuma mudança no valor marginal das mercadorias envolvidas.

A teoria quantitativa da moeda implica que os preços sobem ou descem, dependendo de se a quantidade de moeda em circulação aumenta ou diminui, em relação a um nível de equilíbrio definido.]

Foi desta forma que a ideia de uma taxa de juros resultante da oferta e procura de capital, uma taxa de juros que sobe até que a procura cesse, porque é excessiva, foi refutada no começo do século, pelo economista sueco Wicksell. Este mostrou que a taxa de juros em equilíbrio é determinada pela relação entre poupança e investimento; e Gunnar Myrdal, um discípulo de Wicksell, foi ainda mais longe, explicando que esta taxa de juros, na verdade, depende do retorno esperado dos investimentos, ou seja, da taxa de lucro, como Marx diz.


Enquanto, no século XIX, somente os críticos do capitalismo se preocupavam com o fenômeno das crises, depois do fim do século, Tugan-Baranovsky começou, sob a influência direta de Marx, o estudo empírico das crises periódicas, que levou à modernas teorias do ciclo econômico e do crescimento econômico. Ele se inspirou, além disso, por todos os procedimentos realizados por Marx, como a divisão da produção social em dois setores, a questão da renovação periódica do capital fixo etc. Seguindo Tugan-Baranovsky, Spiethoff, Aftalion, Bounatian, W. C. Mitchell, Schumpeter e outros também se preocuparam em estudar e tentar explicar os dados empíricos das crises. Em 1917, a Universidade de Harvard criou um instituto especial para o estudo das flutuações cíclicas (Harvard Committee for Economic Research). Mas foi somente depois da grande crise econômica de 1929-1933 que a teoria econômica oficial fez a virada que passou a ser conhecida como a “revolução keynesiana”.

Comentários

Unknown disse…
Excelente texto, muito bem escrito.

Talvez te interesse a obra de Tony Lawson, em particular o livro "Economics and Reality" no qual ele (utilizando-se de amplas bases filosóficas) desfaz um por um, os preceitos da microeconomia moderna.

Porém, dizer que a economia marginalista "só foi hegemônica durante três quartos do século" é uma afirmação demasiadamente otimista.
Na realidade em 95% dos cursos de economia no mundo se estuda AO MENOS duas cadeiras de microeconomia neoclássica.
Talvez te impressione também que grande parte (pra não dizer todas) das políticas sociais são pensadas a partir de princípios microeconomicos: sistema público de saúde, previdência, seguro-desemprego, etc.
Mas aí claro que são formulações muito mais complexas.

A gente pode trocar uma ideia sobre tudo isso depois com mais calma.

Abraços !

ps: falta um m no sem na 3a linha do segundo parágrafo.
rodrigodoo disse…
Valeu pelo comentário, Ícaro!

Fala em três quartos de século no texto porque ele é de 1962. O neoclassicismo continua aí até hoje mesmo.

Um abração, cara!