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Sobre a questão da transição para o socialismo (5)


O funcionamento do modo de produção comunista: o GIK

Queria agora passar da discussão sobre a transição para a definição do que seria a sociedade socialista. Para isso, vou pegar duas formulações, feitas em períodos históricos diferentes, as duas de marxistas antistalinistas, e depois eu vou tentar fazer uma síntese dessa série e dizer que eu vejo como necessário reformular na concepção de socialismo à luz do balanço das lutas do século XX e do estado atual do desenvolvimento das forças produtivas.

Antes, só um esclarecimento.

Para Marx, socialismo e comunismo, usados como modo de produção, eram sinônimos. Na distinção que é feita, na Crítica do Programa de Gotha, entre a fase inferior e a superior do comunismo, que para muitos é a distinção entre socialismo e comunismo, nas duas fases não existe trabalho assalariado, dinheiro, mercado, classes sociais e, portanto, Estado. A fase de transição até o socialismo é que Marx chama de ditadura do proletariado e, nessa fase, sim, a economia ainda tem esses elementos. Vou fazer aqui uma citação longa para mostrar que, para Marx (e isso também pode ser confirmado nos marxistas do século XIX), não haveria dinheiro no socialismo e a produção seria regulada pelo valor-trabalho. O meu objetivo não é usar isso como argumento de autoridade, até porque eu vou criticar essa tese na última parte, mas sim para explicar qual era a posição histórica do marxismo sobre o socialismo:
 Aquilo com que temos aqui a ver é com uma sociedade comunista, não como ela se desenvolveu a partir da sua própria base, mas, inversamente, tal como precisamente ela sai da sociedade capitalista; [uma sociedade comunista], portanto, que, sob todos os aspectos — económicos, de costumes, espirituais —, ainda está carregada das marcas da velha sociedade, de cujo seio proveio. Em conformidade, o produtor individual recebe de volta — depois das deduções — aquilo que ele lhe deu. Aquilo que ele lhe deu é o seu quantum individual de trabalho. Por exemplo, o dia social de trabalho consiste na soma das horas de trabalho individuais. O tempo de trabalho individual do produtor individual é a parte do dia social de trabalho por ele prestada, a sua participação nele. Ele recebe da sociedade um certificado em como, desta e daquela maneira, prestou tanto trabalho (após dedução do seu trabalho para o fundo comunitário) e, com esse certificado, extrai do depósito social de meios de consumo tanto quanto o mesmo montante de trabalho custa. O mesmo quantum de trabalho que ele deu à sociedade sob uma forma, recebe-o ele de volta sob outra.Reina aqui manifestamente o mesmo princípio que regula a troca de mercadorias, na medida em que ela é troca de equivalentes. Conteúdo e forma alteraram-se, porque, nas circunstâncias alteradas, ninguém pode dar algo excepto o seu trabalho e porque, por outro lado, nada pode transitar para a propriedade dos indivíduos a não ser meios de consumo individuais. Porém, no que diz respeito à repartição dos últimos entre os produtores individuais, reina o mesmo princípio do que na troca de mercadorias equivalentes, o mesmo montante de trabalho sob uma forma é trocado pelo mesmo montante de trabalho sob outra.

Nessa postagem, vou mostrar a formulação do GIK, na obra de 1929, Princípios Fundamentais da Produção e Distribuição Comunistas. O GIK (Grupo de Comunistas Internacionalistas) foi uma organização holandesa, comunista de esquerda (para quem não sabe, os comunistas de esquerda foram a corrente da Terceira Internacional que surgiu no III Congresso, discordando dos bolcheviques sobre a necessidade da frente única com a socialdemocracia, defendendo a não participação nas eleições e nos sindicatos reformistas e, já naquele momento, fazendo críticas sobre medidas autoritárias e compromissos feitos pelos bolcheviques). O GIK nasceu justamente a partir da reunião de militantes para discutir e escrever os Princípios, e teve alguma atividade até a Segunda Guerra Mundial, quando a maioria dos comunistas de esquerda da Holanda se integrou à organização clandestina Frente Marx-Lênin-Luxemburg.

Para os comunistas da esquerda germano-holandesa, a ditadura do proletariado tem que ser exercida pelos conselhos operários, e eles identificavam no papel principal exercido pelo partido na Rússia uma das fontes da degeneração da revolução. Nos Princípios, eles não chegam a caracterizar a URSS como capitalismo de Estado (essa posição ainda não era consensual na esquerda comunista, por exemplo, a esquerda italiana, também chamada de bordiguista, manteve a caracterização da URSS como Estado Operário até 1938). O mais importante é que eles criticam os métodos capitalistas que foram usados na Rússia: o objetivo dos Princípios é exatamente o de propor uma forma prática de coordenação e contabilidade social numa economia comunista.

O GIK parte do princípio de que uma produção controlada pelos trabalhadores tem que ter regras simples que todos possam compreender. Então, a medida fundamental da produção seria a hora média de trabalho, exatamente como os bônus-trabalho do socialismo do século XIX, que o Marx também menciona em O Capital. Para eles, o processo de descobrir qual é a produção de uma hora média de trabalho em uma determinada indústria, por si só, levaria à formação de vínculos e de coordenação entre as várias fábricas, o que iria fortalecer a unidade e o poder coletivo da classe trabalhadora.

A distribuição, na fase inicial, também seria de acordo com as horas médias de trabalho, correspondendo ao que o Marx chamou na Crítica do Programa de Gotha de fase inferior do comunismo (de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo o seu trabalho).

No esquema do GIK, como se faz a passagem para a fase superior do comunismo ("a cada um segundo as suas necessidades")? Eles concebem dois tipos de estabelecimentos de trabalho. O primeiro são as unidades produtivas, que funcionam com toda a contabilidade de produção e distribuição através de horas de trabalho. O segundo são as unidades de uso geral, que são basicamente os serviços públicos. A unidades de uso geral se organizam através da contabilidade de horas de trabalho, mas o seu produto é distribuído de graça, conforme as necessidades da população. No começo, logicamente, boa parte desses serviços precisam ser racionados mas, conforme a produção comunista se desenvolvesse, seria possível produzir em quantidade suficiente para não racionar. Nesse estágio, aconteceria gradualmente a transformação das unidades produtivas em unidades de uso geral, até que toda a produção fosse regulada diretamente pelas necessidades sociais. Na próxima parte da série, eu vou mostrar como o Ernest Mandel chegou a uma solução parecida.

Na época, o Anton Pannekoek fez a crítica pertinente de que a proposta do GIK pressupõe uma vitória rápida sobre a contrarrevolução e, portanto, só trata da questão econômica da ditadura do proletariado, não tratando do aspecto político da ditadura (na verdade, sendo um modo de produção comunista, nem mesmo aparece o Estado na proposta). Além disso, eles tratam muito rapidamente da questão dos camponeses, como se também economicamente, só fossem necessárias medidas mínimas de transição, e trabalham com a hipótese do conjunto da classe trabalhadora ter uma consciência socialista muito alta e homogênea, aceitando facilmente controlar a produção e aceitar uma distribuição igualitária dos bens, independente da função.

Outro debate interessante é sobre a persistência da lei do valor na fase inferior do comunismo. Marx defendia, assim como Bakunin, mas essa tese tem sido criticada por correntes como a da comunização e da crítica do valor (além de ter sido historicamente rejeitada pelos anarcocomunistas e pelos marxistas "impossibilistas"), que argumentam que esse sistema de coordenação iria recriar, com o tempo, o trabalho assalariado.

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