Toda a gratidão ao Carlos Contente, que guardou isso no seu Fotolog
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A Montagem é o Bicho.
A cultura popular sempre se recusou a aceitar a categoria arte, seja estetizando o cotidiano (samba de terreiro), seja ritualizando a produção (festas religiosas). Mas, no plano erudito, a vanguarda pôs em questão a arte de tal maneira que ela acabou sendo superada praticamente nos anos 50 (john cage, situacionismo etc), produzindo no caminho uma avalanche de técnicas novas que a cultura popular nunca teria inventado. Agora, a cultura popular se junta à vanguarda: o funk.
A montagem é a primeira forma de mais ou menos música popular pós-moderna. Mas que recupera não só as experiências da música eletrônica, já como objeto de camelô e a geléia geral da indústria cultural, e sim a própria superação da pós-modernidade, já no caminho para a extinção das artes plásticas: lygia clark. O Bicho, a últimas produção de lygia que ainda se enquadra na categoria arte, fez o caminho que ela propunha: foi vendido no camelô. Mas em forma de música: a montagem.
Uma colagem de trechos já autônomos, que até mesmo saíram dos bailes e viraram linguagem cotidiana, cada vez mais intercambiados, já modificados quase que só pela própria expressão verbal, pela contingência ou necessidade (a montagem já é a obra sem autor de que lygia fala), desmontável e remontável. O autor morreu, o indivíduo e os direitos autorais também: não dá para enquadrar as montagens na lógica capitalista, ele é uma a casa é o corpo sem órgãos. Tanto que os cooptados do funk são obrigados a transformar as montagens em músicas, porque nem a sua duração é a mesma aceita pela indústria cultural. Anticonsumo, porque, ainda realizando o sonho da arte de camelô, criou uma indústria da pirataria generalizada. Ainda mais porque as montagens avançam sobre a indústria cultural e seqüestram as obras dos outros, roubandoo de pavarotti a james brown. As montagens parodiam umas as outras, mil versões da mesma idéia, arte combinatória, aleatória.
A extinção do museu: o baile funk é a factory das músicas e danças produzidas artesanalmente em série. Uma festa, uma heterotopia que é a criação de um aparelho ideológico fora da burguesia (e não a vitória na disputa dos aparelhos ideológicos do Estado, como o idealista gramsci receita) que inventa uma nova linguagem para sexualizar e estetizar o cotidiano. É um novo tipo de comunicação, onde nascem novos valores longe de qualquer filosofia de escravos.
A ideologia que surge ali é discriminada pela zona sul por transformar o outro em objeto. Mas esta é a liberdade: é o reconhecimento do caráter objetivo e objetal da sexualidade. Todos os policiais de branco sempre associaram sexo e amor estável para daí associar os dois à repressão. Também é uma manifestação antiimperialista: a relação do funk com a cultura de massa é através da paródia, da desconfiança e do deboche com os seus valores: (a sandy criança e boqueteira, o cantor de axé que toma bomba, a criminalização de toda e qualquer letra pelo proibidão etc). É uma resistência cultural que cria uma nova sexualidade, novos ícones, outra língua etc. E o funk já não é mais arte: o baile é um espaço em que a música tem uma função até utilitária e de comunicação. É um espaço de vida coletiva, não um museu para contemplar. Não é obra, é um brinquedo coletivo, utilizável e sem nada de sublime. E as montagens já deixaram se ser obras, são processos.
O funk, se não é mercadoria como Paulo Coelho ou Picasso, então deve servir para o prazer. A arte que se acreditava separada do mundo e superior só podia ter tido o destino que teve: virar mercadoria para aprender que no capitalismo não existem ilhas. A arte que não é, como diziam os concretistas, um objeto útil, só pode ser um objeto inútil. E útil é o prazer. Aparecem formas diferentes de entender a sexualidade no vácuo provocado pela inutilidade da já falecida arte. Fazer mundos de bolso, corpos sem órgãos de bolso.
E a maior pedagoga-intelectualorgânica deste hedonismo descarado da desconstrução/reconstrução de outro corpo já não-cristão e anti-capitalista é tati quebra-barraco.
Ela é uma máscara da utopia de lygia realizada no funk: não existem mais artistas, nada mais além da vivência do corpo e da criação. O prazer está liberado, só falta criar uma estética de vida.
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