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Sobre a questão da transição para o socialismo (8) - a crítica do valor e a comunização


Finalmente, vou terminar essa série, falando sobre duas tentativas, a partir das décadas de 1970 e 1980, de recolocar a luta pelo socialismo dentro de uma crítica radical da tradição marxista. Depois, vou falar algumas coisas, como conclusão.

A primeira é a comunização. No período pós-1968, alguns teóricos dentro da esquerda comunista tentaram compreender porque não aconteceu uma nova onda da revolução internacional (semelhante à onda de 1917-1921), como os bordiguistas e situacionistas (entre outros) tinham previsto.

Essa reflexão levou a soluções muito diferentes, desde a maioria dos bordiguistas, que simplesmente constataram o fato, mas não mudaram as suas fórmulas estratégicas e continuam a esperar a nova onda, até a rejeição da luta de classes como motor revolucionário, por exemplo na obra do Jacques Camatte. 

Os teóricos da comunização, a partir do meio da década de 1970 (o livro Um mundo sem dinheiro é de 1975), deram uma resposta que não negava o potencial revolucionário do proletariado, mas sim a forma de ação histórica do movimento operário marxista. Para o grupo Théorie Communiste, que começou a publicar em 1977, o vício de origem tanto das organizações reformistas como das revolucionárias é o "programatismo", ou seja, a visão de que o comunismo é um programa a ser aplicado depois da tomada do poder, e a longo prazo. Para eles, a alternativa da comunização é a busca, por parte dos trabalhadores, de criar imediatamente relações sociais que não sejam mediadas pela lei do valor. 

Essa visão geralmente é colocada num contexto de espontaneísmo ou insurrecionalismo (o Comitê Invisível, por exemplo, tem a comunização como uma das suas fontes de inspiração), mas poderia também entrar em um reformismo velado, em que esses embriões de comunização iam se desenvolver como um contraponto ao capitalismo. O blog em português Humanaesfera (que publica muito material comunista libertário e de ultraesquerda) tenta evitar essa possibilidade, enfatizando que se o processo de comunização não atingir uma escala mundial rápido, vai sim ser absorvido pelo capitalismo, mas essa ideia das formas embrionárias se desenvolve claramente no pessoal do Krisis/Exit!, como eu vou falar adiante.

Então, a comunização acaba contornando o problema da transição para o socialismo, sem enfrentar ele de verdade. Vou falar agora do caso da crítica do valor.

O que a gente chama de crítica do valor, na verdade, é todo um campo de interpretação do marxismo, em que os grupos Krisis e Exit têm um papel muito grande, mas que não se reduz a eles. Existem outros teóricos produzindo teoria com uma orientação parecida, como o Moishe Postone, que morreu recentemente. 

Esse campo, em parte sob influência da escola de Frankfurt, considera que o núcleo fundamental da crítica marxista está na Seção I do Livro I do Capital e nos Grundrisse, ou seja, a redução de todas as formas concretas de trabalho ao trabalho abstrato, que vai ser trocado e regulado através do valor. Para eles, então, a exploração do trabalho é uma expressão mais superficial das contradições do capitalismo, e qualquer crítica ao sistema que não ataque esse núcleo vai somente reproduzir a mesma alienação sob formas diferentes. Por isso, o Kurz colocava tanto a URSS como os países capitalistas dentro do mesmo pacote como "sociedades produtoras de mercadorias". 

Eles estão certos, sim, ao colocar a produção de valor como logicamente mais importante do que a exploração do trabalho. O que merece crítica é a forma abstrata como eles veem as diferentes formas de sociedades produtoras de mercadorias, e como isso influi quando eles tentam formular propostas. 

Ao contrário do que o Marx e o Engels pensavam, não existiram sociedades de produção mercantil simples. Nas sociedades precapitalistas, o mercado não tinha se generalizado o suficiente pro valor se impor como regulador entre as trocas então, na verdade, as sociedades produtoras de mercadorias, são o capitalismo e o stalinismo. Por outro lado, a maioria esmagadora da atividade do movimento operário, desde o século XIX, foi lutar por melhores salários e condições de trabalho - ou seja, uma luta dentro dos limites da lei do valor. Aí, a posição da crítica do valor passa da constatação de que a exploração do trabalho é mais superficial do que a produção de valor pra um veredito de que a luta de classes é um mecanismo interno do capitalismo. 

... E isso deixa eles sem recursos pra entender a transição. Quais setores da sociedade poderiam ultrapassar a lei do valor, já que, diferente dos teóricos da comunização, a crítica do valor nega que a luta de classes dos trabalhadores possa fazer isso? Eles nunca dão uma resposta, e parece que eles imaginam que qualquer pessoa, independente da posição dentro da sociedade capitalista, poderia fazer isso, ou seja, caem numa visão de que a pura consciência adquirida pelo conhecimento da crítica do valor poderia produzir uma força social. 

Que a luta de classes normal no capitalismo não é antagônica ao sistema, é óbvio. Mas, em que circunstâncias, ela poderia ser antagônica? E, se não for a luta de classes, qual tipo de conflito social (uma pergunta que não é retórica, porque os decrescimentistas e os colapsologistas acham que a crise ecológica é que vai cumprir o papel e acelerar as mudanças pra uma nova sociedade)? Nesse ponto, a crítica do valor fica desarmada por causa da análise abstrata que faz do stalinismo: apesar de ter acontecido numa forma regressiva, que se tornou um beco sem saída, uma transição teria necessariamente que suspender progressivamente a lei do valor, criando formas sociais híbridas durante um período de transição. Ou seja, uma sociedade que não fosse mais capitalista, mas onde estivesse acontecendo uma transição real para o socialismo, ainda seria uma sociedade produtora de mercadorias, até acontecer a abolição do dinheiro. 

Mas a crítica do valor prefere uma variante gradual da comunização, que é a estratégia das formas embrionárias, de que o Kurz fala no seu texto mais explícito sobre o assunto, Antieconomia e Antipolítica. Ele levanta a hipótese de que algumas iniciativas de apoio mútuo do movimento operário podem ter sido orientadas diretamente pelo valor de uso, mas o antecedente imediato dele é o movimento alternativo alemão, ou seja, os grupos ecologistas e autônomos. A ideia seria não fazer luta política, e sim promover uma desvinculação de uma parte cada vez maior da sociedade em relação ao capitalismo, através da economia natural microeletrônica, que é uma expressão muito bem pensada já que, pro Marx, economia natural é a que produz valores de uso e, para a Krisis e o Exit!, a microeletrônica é a base material a partir da qual é possível superar a produção de valor. 

Essa ideia é interessante, assim como a da comunização, mas que deveria ser incorporada dentro de uma visão de transição em escala mundial e contando com saltos qualitativos necessários (sim, a tomada do poder de Estado, pra existir margem pra essas experiências em grande escala, a ruptura com as relações de dependência, a expropriação de setores-chave da economia capitalista etc). Sem isso, seria um reformismo, que lembraria muito algumas ilusões dentro do cooperativismo ou de movimentos como o do software livre. 


Concluindo

 Acho que ninguém aguenta mais esse série (começando por mim), eu acabei saindo do tema nos posts sobre sociedades já plenamente socialistas, mas a moral da história é a seguinte: as revoluções sociais do século XX não chegaram ao socialismo e, em parte, tinham uma concepção errada de socialismo, que depois se alastrou e virou o senso comum de hoje: de que socialismo seria a economia toda estatizada. Eu mostrei algumas pessoas que deram contribuições nas décadas mais recentes sobre isso. Nessas contribuições, acho que o mais importante a aprender é que existem possibilidades de transição "de baixo pra cima", a partir da coordenação de experiências de autogestão. Essas experiências permitem manter o máximo de controle nas mãos dos trabalhadores, recuar e corrigir erros quando for necessário, e evitam a hipertrofia do Estado. Ao mesmo tempo, eu insisto em que essas experiências, mesmo que possam acontecer dentro do capitalismo, só têm como se estender a ponto de se tornarem viáveis para a sociedade como um todo se a burguesia tiver perdido o poder político. 

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