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Sobre a questão da transição para o socialismo (4)


Michael Lebowitz e David Schweickart e o papel do mercado na transição ao socialismo

Eu coloquei os dois juntos nessa postagem por dois motivos: primeiro que os dois trabalham com a ideia de que a transição vai exigir várias formas diferentes de propriedade, e que os mecanismos de mercado têm ser usados para garantir mais eficiência nessa transição. O segundo motivo, talvez o mais importante é que eles tentam tirar lições de experiências atuais, como o cooperativismo e, principalmente, o processo de lutas de classes na Venezuela. Esse embasamento em experiências concretas eu acho muito positivo.

O Lebowitz é professor universitário no Canadá, mas entre 2004 e 2010 morou na Venezuela, onde trabalhou no governo, dando assessoria a instituições de economia social. A partir dessa experiência, ele escreveu vários livros, como Construyámoslo Ahora: El Socialismo para el Siglo XXI, El Camino al Desarrollo Humano: ¿Capitalismo o Socialismo? e The Socialist Alternative: Real Human Development. O Schweickart também é professor universitário, e participa de movimentos de solidariedade internacional. Ele escreveu o livro After Capitalism em 2002.

O ponto de partida do Lebowitz são as teorias do jovem Marx sobre as "necessidades radicais" (ou seja, as necessidades da classe trabalhadora que se chocam com a lógica do capital), e sobre o socialismo como livre desenvolvimento do ser humano ("a educação dos sentidos é a tarefa da história da humanidade"). Então, ele (corretamente, do meu ponto de vista) inverte a lógica mais aceita entre os marxistas e mostra que as relações de produção comunistas são um instrumento para atingir esse objetivo, e não um fim produtivo em si. Nisso, ele recupera a tradição do humanismo socialista, em suas várias formas.

Para conseguir o pleno desenvolvimento humano, ele rejeita as experiências estatistas do século XX (ou seja, o modelo da URSS) e defende que existe, retomando uma expressão usada pelo Chávez, um "triângulo elementar do socialismo": a propriedade social dos meios de produção (que não é simplesmente a propriedade estatal), a produção social organizada pelos trabalhadores e a satisfação das necessidades e objetivos comunais. É através da participação popular ou, como ele chama, da democracia protagônica, que os trabalhadores não só fortalecem os elementos comunistas já presentes dentro do capitalismo, como também se autodesenvolvem humanamente.

Durante todo o longo período histórico de transição existem várias formas alternativas de propriedade (estatal, cooperativa, comunal, privada etc), que vão avançando através da prática até o comunismo. Isso não exclui a existência do mercado, como ele fundamenta aqui, apesar de que eu acho errada essa formulação sobre a persistência do mercado na etapa inferior do comunismo (concordo com o Mandel, que ele critica no texto, de que o mercado existe somente durante a transição para o socialismo e que, no socialismo, já não existe dinheiro ou só existe em setores isolados).

E ele diz que esse processo está acontecendo na Venezuela. Com certeza existiram elementos forte de autoorganização dos trabalhadores durante todo o período bolivariano, essa tese de doutorado de um companheiro que viveu um tempo lá é o melhor material que eu conheço sobre o assunto. Mas nessa caracterização de "processo revolucionário", ele mostra uma concepção reformista, como se o Estado burguês pudesse ser "tomado" pelos trabalhadores e colocado a serviço do socialismo (essa concepção é bem evidente em A Reinventar o Socialismo (e o Schweickart tem concepções semelhantes, como dá pra ver a seguir).

Mesmo assim, ele tem uma posição mais crítica dentro do campo chavista, e reconhece as limitações do processo, do ponto de vista da transição para o socialismo. Essa entrevista do ano passado é bem sóbria, reconhecendo o peso da política econômica, da corrupção e do clientelismo na crise.

O Schweickart, no After Capitalism, tenta generalizar esse tipo de experiência de que o Lebowitz fala como um programa para começar a transição. Ele também começa a partir da autogestão (as médias e grandes empresas passam a ser controladas pelos trabalhadores), junto com a criação de um fundo público de investimento (financiado com um imposto linear sobre o capital). Esse fundo faria investimentos através de uma rede de bancos públicos e cooperativas de crédito, que seriam definidos democraticamente pelos moradores de cada região.

Através desses investimentos, seria formado aos poucos um setor público controlado democraticamente, primeiro para se contrapor aos problemas mais graves do capitalismo (por exemplo, garantindo o pleno emprego ao ser o empregador em última instância), depois se tornando, junto com a autogestão, no instrumento principal de controle dos trabalhadores sobre a produção. Ao mesmo tempo, uma série de reformas políticas aumentaria o controle democrático de baixo para cima sobre o Estado. Esse powerpoint aqui é um resumo da proposta do Schweickart.

Das teorias de que eu falei até aqui, é a que me pareceu mais realista e, por isso, a que eu gostei mais (inclusive o Schweickart tem uma crítica à Parecon a partir desse ponto de vista). Os mercados funcionam há décadas ou séculos, então atingiram uma forma de funcionamento prática e que tem a aparência de ser espontânea. Um sistema socialista teria que levar um tempo até descobrir as suas rotinas específicas, sazonalidades, macetes etc e, nisso, o mercado parte de uma posição superior, e por isso esses mecanismos devem ser usados. Além disso, a multiplicidade de formas de propriedade permite à sociedade recuar ou fazer ajustes no processo de socialização quando for necessário.

Outra coisa bem diferente, é claro, seria considerar que os mecanismos de mercado são a forma definitiva de coordenação econômica no socialismo. Tanto o Lebowitz como o Schweickart negam isso, e falam explicitamente que são um recurso transitório antes de chegar a um estágio mais avançado. Então, como transição, são teorias válidas e relevantes.

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