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Orientalismo e orientalismo invertido (Sadiq Al-Azm)


Sadiq Al-Azm (1934-2016) foi o maior teórico marxista sírio. Essa obra é fundamental para a crítica ao conceito culturalista de orientalismo, que tem sido uma barreira para a compreensão da história e da sociedade dos países orientais. Para conhecer melhor o pensamento dele, recomendo essa entrevista aqui. Eu traduzi a partir do texto em inglês aqui 


Orientalismo e orientalismo invertido



Parte 1: Orientalismo

No seu livro vivamente debatido1, Edward Said nos introduz ao tema do “orientalismo”, através de uma ampla perspectiva histórica que situa o interesse da Europa pelo Oriente no contexto da expansão histórica geral da Europa burguesa moderna para além dos seus limites tradicionais, e às expensas do resto do mundo, na forma de subjugação, pilhagem e exploração. Nesse sentido, o orientalismo pode ser visto como um fenômeno crescente complexo, derivado da tendência histórica geral da expansão e evolução da Europa moderna: uma série de instituições que se expandem progressivamente, um corpo teórico e prático criado cumulativamente, uma superestrutura ideológica adequada com um aparato de pressupostos, crenças, imagens, produções literárias e racionalizações complicadas (para não mencionar a fundação subjacente de interesses vitais comerciais, econômicos e estratégicos). Eu chamarei esse fenômeno de orientalismo institucional

Edward Said também fala do orientalismo no sentido mais restrito de uma tradição em desenvolvimento de conhecimentos disciplinares cuja função principal é “estudar cientificamente” o oriente. Naturalmente, esse orientalismo acadêmico cultural faz a sua profissão de fé na “busca desinteressada pela verdade” sobre o oriente, e nos seus esforços para aplicar métodos científicos imparciais e técnicas neutras para estudar os povos, culturas, religiões e línguas do oriente. O principal do livro de Said, previsivelmente, é devotado ao orientalismo acadêmico cultural, numa tentativa de mostrar os laços que o ligam ao orientalismo institucional.

Dessa forma, Said esvazia as declarações autocomplacentes do orientalismo acadêmico cultural sobre traços como independência acadêmica, neutralidade científica, objetividade política etc. Deve ficar claro, porém, que em momento nenhum o autor procura diminuir as verdadeiras conquistas acadêmicas, as descobertas científicas, e contribuições criativas feitas pelos orientalistas e pelo orientalismo ao longo dos anos, particularmente no nível técnico2. A sua principal preocupação é passar a mensagem de que a imagem geral do oriente construída pelo orientalismo acadêmico cultural, do ponto de vista das suas próprias conquistas técnicas e contribuições científicas ao campo, é completamente permeada por pressupostos racistas, interesses mercenários precariamente camuflados, explicações reducionistas e preconceitos antihumanos. Pode-se mostrar facilmente que essa imagem, quando devidamente escrutinada, dificilmente é o produto de uma investigação científica verdadeiramente objetiva e de disciplinas acadêmicas neutras.


Crítica do Orientalismo

Um dos aspectos mais viciosos dessa imagem, como é cuidadosamente apontado por Said, é a crença profundamente arraigada – tanto do orientalismo acadêmico cultural como do institucional – na existência de uma diferença ontológica fundamental entre as naturezas essenciais do oriente e do ocidente, com vantagem decisiva para o ultimo.  As sociedades, culturas, línguas e mentalidades ocidentais são imaginadas como essencial e inerentemente superiores às orientais. Nas palavras de Edward Said, “a essência do orientalismo é a distinção inerradicável entre a superioridade ocidental e a inferioridade oriental” 3. De acordo com essa leitura da tese inicial de Said, dificilmente se poderia dizer que o orientalismo (tanto na sua forma institucional como na acadêmica cultural) existiu, como fenômeno estruturado e movimento organizado, antes da ascensão, consolidação e expansão da Europa burguesa moderna. Coerente com isso, o autor, em um momento, data a ascensão do orientalismo acadêmico no Renascimento europeu4. Mas, infelizmente, o estilista e polemista em Edward Said muitas vezes passa por cima do pensador sistemático. Como resultado disso, ele não adere consistentemente à abordagem acima, seja em datar o fenômeno do orientalismo, seja em interpretar as suas origens e sua ascensão histórica.

Num ato de projeção histórica retrospectiva, vemos Said traçar as origens do orientalismo diretamente em Homero, Ésquilo, Eurípedes e Dante5. Em outras palavras, o orientalismo não é, na verdade, um fenômeno completamente moderno, como pensamos antes, e sim o produto natural de uma tendência mental europeia, antiga e quase irresistível, a distorcer a realidade de outras culturas, povos, e suas línguas, a favor da autoafirmação ocidental, da sua dominação e ascendência. Aqui o autor parece estar dizendo que a “mente europeia”, de Homero a Karl Marx e A.H.R. Gibb, tende por sua natureza a distorcer todas as realidades humanas diferentes da sua, em nome do seu próprio engrandecimento.

Me parece que essa maneira de construir as origens do orientalismo simplesmente fortalece as categorias essencialistas de “oriente” e “ocidente”, que representam a distinção inerradicável entre Leste e Oeste, que o livro de Said aparentemente pretende demolir. Da mesma forma, ele dá à distinção ontológica entre Europa e Ásia, tão característica do orientalismo, o tipo de credibilidade e respeitabilidade normalmente associados com a continuidade, persistência, difusão e raízes históricas distantes. Esse tipo de credibilidade e respeitabilidade é, claro, sem merecimento e sem lugar. Porque o orientalismo, como tantos outros fenômenos e movimentos modernos caracteristicamente europeus modernos (notavelmente o nacionalismo), é uma criação verdadeiramente recente – produto da história europeia moderna – buscando adquirir legitimidade, credibilidade e apoio ao reivindicar raízes antigas e origens clássicas para si. Certamente, Homero, Eurípides, Dante, São Tomás e todas as outras autoridades que alguém quiser mencionar tinha a visão padrão mais ou menos distorcida prevalecente no meio sobre outros povos e culturas. Entretanto, também é certo que as duas formas de orientalismo construíram os seus repertórios relativamente modernos de sabedoria convencional sistemática retomando os pontos de vista e preconceitos dessas figuras de prestígio, assim como buscando em mitos antigos, lendas, imagens, folclore e preconceito puro e simples. Embora muito disso seja bem documentado (direta e indiretamente) no livro de Said, mesmo assim a sua obra continua dominada por uma concepção unilateral de orientalismo como algo que veio direto de Homero até Grunebaum. Além disso, essa apresentação unilinear, quase essencialista, sobre as origens e o desenvolvimento do orientalismo presta um grande desserviço às preocupações vitais do livro de Said, a saber, preparando o terreno para abordar a difícil questão de como podemos outros povos e culturas numa perspectiva libertária ou não-repressiva e não-manipulativa, e eliminar, em nome da nossa humanidade comum, tanto o “ocidente” como o “oriente” como categorias ontológicas e conceitos classificatórios que trazem as marcas de superioridade e inferioridade raciais. 

Me parece que a consequência lógica da tendência de Said em ver as origens e o desenvolvimento do orientalismo em termos de tal constância unilateral é que a tarefa de combater e transcender as suas categorias essencialistas, em nome da nossa humanidade comum, se torna ainda mais difícil.
Outro resultado importante dessa abordagem pesa sobre a interpretação de Said sobre a suposta relação entre o orientalismo acadêmico cultural como representação e disciplina acadêmica de um lado, e o orientalismo institucional como movimento de expansão e força socioeconômica, por outro.
 Em outras palavras, quando Said se apoia com mais força na sua concepção unilateral de orientalismo, ele cria uma visão em que este aparato cultural conhecido como orientalismo é a verdadeira fonte do interesse político do ocidente pelo oriente, ou seja, que é a verdadeira fonte do orientalismo institucional moderno. Assim, para ele, o interesse político europeu, e depois americano, pelo oriente foi criado realmente pelo tipo de tradição cultural ocidental conhecido como orientalismo 6. Além disso, de acordo com uma das suas interpretações, o orientalismo é a difusão da consciência de que o mundo é feito de duas metades desiguais – Oriente e Ocidente – em textos estéticos, acadêmicos, econômicos, sociológicos, históricos e filosóficos. Essa consciência não só criou toda uma série de “interesses” ocidentais (políticos, econômicos, estratégicos etc) no oriente, como também ajudou a mantê-los7. Portanto, para Said a relação entre o orientalismo acadêmico como aparato cultural e o orientalismo institucional como interesse econômico e força política é visto em termos de uma “transição desproporcional” de uma “apreensão, formulação ou definição meramente textual sobre o oriente para a colocação disso tudo em prática no oriente” 8 De acordo com essa interpretação, a frase de Said, “O orientalismo substituiu o Oriente” 9 só pode significar que o orientalismo institucional que invadiu e subjugou o Leste era o filho legítimo e produto do outro tipo de orientalismo, tão intrínseco, ao que parece, às mentes, textos, estéticas, representações, lendas e imagens dos ocidentais desde Homero, Ésquilo e Eurípedes! Para entender propriamente a subjugação do Leste nos tempos modernos, Said continua a nos referir aos tempos antigos, em que o oriente não era mais do que uma consciência, uma palavra, uma representação, uma peça de aprendizado do ocidente10:


“Temos que saber que é por um longo e lento processo de apropriação que a Europa, ou a consciência europeia sobre o oriente, se transformou, de textual e contemplativa, em administrativa, econômica e até militar”11


Portanto, Edward Said vê a “ideia do Canal de Suez” muito mais como a “conclusão lógica do pensamento e do esforço orientalistas” 12 do que como resultado dos interesses e rivalidades imperiais franco-britânicos (embora ele não os ignore).

Não temos como escapar da impressão de que, para Said, a emergência de tais observadores, administradores e invasores do oriente como Napoleão, Cromer e Balfour, de alguma forma, se tornou inevitável por causa do “orientalismo”, e que as orientações políticas, carreiras e ambições dessas figuras são melhor compreendidas com referência a d’Herbelot e Dante do que a interesses mundanos mais imediatamente relevantes. De acordo com isso, não surpreende que vejamos Said, ao falar do papel das potências europeias em decidir a história do Oriente Próximo no começo do século XX, escolha destacar “a referência epistemológica peculiar pela qual as potências viam o oriente” 13, que foi construída pela longa tradição do orientalismo. Ele, então, afirma que as potências agiram no oriente da maneira que agiram por causa dessa referência epistemológica peculiar. Presumivelmente, se a longa tradição do orientalismo acadêmico cultural tivesse formulado uma referência epistemológica menos peculiar, mais simpática e verdadeira, então as potências poderiam ter agido no oriente mais generosamente e o visto numa luz mais favorável!



A realidade bruta e seus representantes


Quando Said está pensando e escrevendo nessas linhas, é difícil escapar da forte impressão de que, para ele, as representações, imagens, palavras, metáforas, idiomas, estilos, universos discursivos, ambientes políticos, sensibilidades culturais, peças de conhecimento altamente mediadas, verdades extremamente rarefeitas são, senão o próprio estofo da realidade, certamente muito mais importantes e informativos que a própria realidade bruta. Se o orientalismo acadêmico transmuta a realidade do oriente na substância dos textos (como ele diz na página 86), então parece que Said sublime as realidades terrenas da interação entre o ocidente e o oriente na substância eterna do espírito. Detecta-se, assim, um viés anticientífico geral forte e injustificado no seu livro. Esse fato fica mais claro na sua invectiva constante contra o orientalismo acadêmico cultural por ter categorizado, classificado, tabulado, codificado, indexado, esquematizado, reduzido e dissecado o oriente (e, portanto, por haver distorcido a sua realidade e desfigurado o seu modo particular de ser), como se essas operações fossem de alguma forma más por si mesmas, e inadaptadas à compreensão correta das sociedades, culturas e linguagem humanas.



Ainda assim, o próprio Said admite prontamente que é impossível uma cultura, seja oriental, ocidental ou sulamericana, entender muito sobre a realidade de outra cultura estrangeira, sem recorrer à categorização, classificação, esquematização e redução – com as necessárias distorções e representações erradas que as acompanham. Se, como Said insiste, o exótico não-familiar e estrangeiro são sempre apreendidos, domesticados, assimilados e representados em termos do já familiar, então tais distorções e más representações se tornam inevitáveis. Para Said:
“…as culturas sempre se inclinaram a impor transformações completas sobre outras culturas, recebendo essas outras culturas não como elas são mas, para o benefício da recebedora, como deveriam ser”.14


Ele até acha que “não há nada especialmente controverso ou repreensível  na domesticação de uma cultura exótica e estrangeira nos termos de referência de outra cultura” porque “tais domesticações do exótico acontecem entre todas as culturas, e certamente entre todos os homens”.15 Na verdade, Said eleva isto a um princípio geral que emana da “natureza da mente humana”, e que governa invariavelmente a dinâmica da recepção de uma cultura por outra. Assim “todas as culturas impõem correções sobre a realidade bruta, mudando-a de objetos em voo livre para unidades de conhecimento” porque “é perfeitamente natural para a mente humana resistir ao assalto da estranheza não-tratada”.16

Na verdade, em um momento Said chega ao ponto de negar inteiramente a possibilidade de se alcançar a “verdade objetiva” sobre outras culturas, especialmente se elas parecerem exóticas, estranhas e estrangeiras. O únicos meios de abordá-las e recebê-las são os da redução, representação e esquematização, com todas as distorções e falsificações esperadas que tais operações implicam e impõem. De acordo com Said:

‘…a grande questão é se, de fato, pode haver uma representação verdadeira sobre uma coisa, ou se toda e qualquer representação, por ser representação, está enquadrada primeiro na linguagem e depois na cultura, nas instituições e no ambiente político do representador. Se a última alternativa é a correta (e eu acredito que é), então devemos nos preparar para aceitar o fato de que a representação é eo ipso implicada, misturada, enquadrada, entrelaçada com muitas outras coisas além da “verdade”, que é, em si mesma, uma representação” 17.

Se, como o autor, continua a repetir (como forma de censura e castigo), o oriente estudado pelo orientalismo não é mais do que uma imagem e uma representação da mente e da cultura do ocidente (o representador em questão), então também é verdade que o ocidente, ao fazer isso, está agindo de forma perfeitamente natural e de acordo com a regra geral – declarada pelo próprio Said – que governa a dinâmica da recepção de ma cultura por outra. Dessa forma, o ocidente, ao tentar lidar (através do orientalismo) com a realidade bruta do oriente, faz o que todas as culturas fazem nessas circunstâncias, a saber:
  1. Domesticar o estrangeiro e representá-lo através dos seus próprios termos e padrões de referência familiares;
  2. Impor sobre o Oriente as “transformações completas” que Edward Said diz que as culturas tendem a efetuar umas sobre as outras, para assim receber o estranho não como ele é, e sim como ele deveria ser para o benefício do recebedor;
  3. Impor sobre a realidade bruta do oriente as correções necessárias exigidas para transformá-lo de “objetos em voo livre em unidades de conhecimento”; e
  4. Seguir a tendência natural da mente humana em resistir ao “assalto da estranheza não-tratada”.


A representação do Islã pelo ocidente

Um dos exemplos dados por Said é de particular interesse:

“A recepção do Islã no ocidente é um caso perfeito em vista, e foi estudada admiravelmente por Norman Daniel. Uma barreira que agiu sobre os pensadores cristãos que tentaram entender o Islã foi analógica; já que Cristo é a base da fé cristã, se assumia – bem incorretamente – que Muhammad era para o Islã o que Cristo era para o cristianismo. Daí o nome polêmico “maometanismo” dado ao Islã, e o epíteto automático de “impostor” aplicado a Muhammad. A partir dessa e de muitas outras concepções erradas “se formou um círculo que nunca foi quebrado pela exteriorização imaginativa... o conceito cristão sobre o Islã era integral e autossuficiente”; o Islã se tornou uma imagem – a palavra é de Daniel mas, para mim, parece ter implicações notáveis para o orientalismo em geral – cuja função não era tanto representar o Islã em si como representá-lo para o cristão medieval”18.

O significado do argumento acima está no fato de que Said nunca o leva à sua conclusão lógica à luz do que disse ser geralmente verdadeiro sobre a dinâmica redutiva da recepção de uma cultura por outra. Como ele sabe muito bem, a recepção do cristianismo pelo Islã difere pouco do relato dado acima. Para argumentar isso, vou apresentar a essência da passagem citada acima com as seguintes alterações:

“Uma barreira que agiu sobre os pensadores muçulmanos que tentaram entender o cristianismo foi analógica: como Muhammad não era mais que o Mensageiro de Deus, se assumia – bem incorretamente – que Cristo era para o cristianismo o que Muhammad era para o Islã, a saber, um simples Mensageiro de Deus ou um profeta comum. Daí as polêmicas contra a sua encarnação, filiação a Deus, divindade, crucificação, ressurreição, e o epíteto automático de “falsificadores” aplicado aos primeiros guardiões das Escrituras Sagradas. A partir dessa e de muitas outras concepções erradas “se formou um círculo que nunca foi quebrado pela exteriorização imaginativa... o conceito muçulmano sobre o cristianismo era integral e autossuficiente”; o cristianismo se tornou uma imagem – a palavra é de Daniel mas, para mim, parece ter implicações notáveis para como uma cultura recebe outra em geral – cuja função não era tanto representar o cristianismo em si como representá-lo para o muçulmano medieval”.

À luz desses comentários críticos, deve ficar claro: (a) por que Said lida tão duramente com as tentativas de Marx de entender e interpretar as sociedades orientais; (b) por que ele lida tão mais suavemente com a visão de Macdonald-Gibb sobre o Islã; e (c) por que ele lida tão caridosa e simpaticamente com as extrapolações místico-teosóficas que floresceram a partir do ramo do orientalismo de Massignon.

Said critica e expõe a falsidade do tipo de asserções declarativas feitas pela variedade de orientalismo de Macdonald-Gibb sobre o Islã e os muçulmanos. Ele as ataca por serem abstratas, metafísicas e inverídicas. Aqui está uma amostra de tais asserções:
  1. “É simples, penso eu, e admitido por todos, que a concepção do Invisível é muito mais imediata e real para o oriental que para os povos ocidentais.”
  2. “A diferença essencial da mente oriental não é a credulidade em coisas invisíveis, e sim a incapacidade de construir um sistema para ver as coisas.”
  3. “A diferença do oriental não é essencialmente a religiosidade, e sim a falta de senso da lei19. Para ele, não há ordem imutável na natureza.”
  4. “É evidente que tudo é possível para o oriental. O sobrenatural é tão próximo que ele pode tocá-lo a qualquer momento.”
  5. “Até recentemente, o cidadão muçulmano comum e cultivado não tinha interesses ou funções políticas, e nenhuma de literatura de fácil acesso a não ser a literatura religiosa, não tinha festivais nem vida comunitárias a não ser em conexão com a religião, via pouco ou nada do mundo exterior a não ser através de lentes religiosas. Para ele, consequentemente, a religião significava tudo20.
O problema com afirmações assim não está somente na sua falsidade, caráter abstrato e metafísico. Certamente, nem Macdonald nem Gibb foram simples vítimas, ao fazer essas declarações, do “padrão epistemológico” construído pelas tradições do orientalismo, como Said acusa. Na verdade, pode-se argumentar convincentemente que, num certo sentido bem significativo:
  1. É verdade que, em geral, o Invisível é muito mais imediato e real para os cidadãos comuns do Cairo e de Damasco do que para os habitantes atuais de Nova Iorque e Paris;
  2. É verdade que a religião “significa tudo” para a vida dos camponeses marroquinos, de uma forma que é incompreensível para os fazendeiros americanos de hoje;
  3. É verdade que a ideia de uma ordem natural independente e inviolável é, em muitos aspectos, mais real, concreta e firmemente estabelecida nas mentes dos estudantes da Universidade de Moscou do que nas mentes dos estudantes da Universidade de Al-Azhar (ou qualquer outra universidade do mundo muçulmano).
O que Said falha em perceber é o fato de que as afirmações do ramo de orientalismo de Macdonald-Gibb são realmente declarativas somente num sentido muito específico. Elas se mascaram como declarações de fatos só para ocultar um grupo de diretivas e instruções amplas sobre como os ocidentais devem lidar e se relacionar com o oriente e os orientais, aqui e agora. Essas diretivas são, necessariamente, de natureza geral e, portanto, exigem uma variedade de “definições operacionais” para transformá-las em passos práticos úteis para grupos tão diferentes como missionários ocidentais, professores, administradores, homens de negócios, oficiais do exército, diplomatas, peritos em inteligência, formuladores de políticas etc. Por exemplo, essas pessoas são guiadas por essas diretivas e instruções implícitas para permiti-los tirar vantagem do fato de que as crenças religiosas, lealdades tribais, explicações teológicas e assim por diante ainda desempenham um papel muito mais decisivo na vida das sociedades orientais contemporâneas do que nas ocidentais modernas.

A própria limitação do escopo declarativo do tipo de afirmações de Macdonald-Gibb trai não só a sua função prática e relevância imediata em situações reais, mas também o padrão mental e de pensamento profundamente ahistórico de que elas emanam. Elas fingem que o Invisível sempre foi (e sempre será) mais imediato e real para os orientais do que para os povos ocidentais do passado, presente e futuro. Da mesma forma, elas fingem que a ideia de uma ordem de leis naturais independente sempre foi e sempre será mais real e firmemente estabelecida para a mente e para a vida ocidentais do que jamais o será na consciência dos seres humanos orientais. Ao simples fato histórico de que numa época, digamos antes da crise da cristandade, o Invisível era tão imediato e real quanto para os ocidentais, não é permitido que perturbe a serenidade factual aparentemente olímpica dos pseudodeclarativos de Macdonald-Gibb.

Se for possível falar de um heroi em livro como Orien­talismo, então Massignon aparece como o melhor candidato para o papel. Este grande orientalista francês é elogiado por ter ultrapassado todos os outros na tarefa quase impossível de entender verdadeira e simpaticamente a cultura, a religião e a mentalidade orientais muçulmanas. Devido ao seu profundo humanismo e compaixão, ele diz que Massignon, foi capaz de se identificar com as “forces vitais” que informam a cultura oriental, e de entender a sua “dimensão espiritual” como ninguém mais fez, antes ou depois dele, no ocidente21.

Mas, em última análise, a identificação presumida de Massignon com as “forças vitais” e a “dimensão espiritual” da cultura oriental não são simplesmente uma versão personalizada, idealizada e reiterada da representação orientalista clássica de um oriental “supervalorizado pelo seu panteísmo, espiritualidade, longevidade e primitividade” 22, uma representação que Said refutou com tanta maestria? Além disso, inferimos da discussão sobre o significado e importância de obra de Massignon que ele em nenhum momento abandonou o pressuposto cardeal (e pecado original, de acordo com Said) de todo o orientalismo, a saber, a insistência na separação essencialista do mundo em duas metades, cada uma com sua natureza e seus traços inerentemente diferentes. Então, é evidente que, para Massignon, assim como na obra de qualquer outro orientalista atacado por Said, o oriente e o ocidente continuam a ser as categorias ontológicas e esquemas classificatórios fundamentais, como todas as implicações e aplicações envolvidas.

Aprendemos com o livro de Said que: (a) o oriente de Massignon é completamente consoante com o mundo dos Sete Adormecidos e com as orações abraâmicas23; (b) que “os seus esforços repetidos para entender e se relacionar com o conflito palestino, apesar de todo o seu profundo humanismo, nunca conseguiram ultrapassar realmente a querela entre Isaque e Ismael24; (c) que, para ele, a essência da diferença entre Leste e Oeste é entre modernidade e tradição antiga25; (d) que, no seu ponto de vista, o oriente islâmico é sempre espiritual, semita, tribal, radicalmente monoteísta e não ariano26; (e) que ele era amplamente procurado como especialista em questões islâmicas pelos administradores coloniais27 e (f) que ele tinha convicção de que era obrigação da França se associar ao desejo dos muçulmanos de defender a sua cultura tradicional, a ordem da sua vida dinástica e o patrimônio dos fieis28.

Agora, a questão para a qual não tenho respostas prontas é: como o crítico contemporâneo mais agudo e versátil do orientalismo elogia tanto um orientalista que obviamente reivindica todo o aparato dos dogmas desacreditados do orientalismo?
 
 

Karl Marx e o Oriente


A imagem que se forma no livro de Said sobre a atitude de Marx em relação ao oriente é mais ou menos a seguinte29: Através das suas análises sobre o domínio britânico na Índia, Marx chegou à “noção de um sistema econômico asiático” (ou seja, o famoso modo de produção asiático) “que agia como o sólido fundamento do tipo de poder político conhecido como ‘despotismo oriental’”. Inicialmente, a destruição violenta e transformação da organização social tradicional da Índia horrorizaram Marx e o chocaram como ser humano e pensador. A sua humanidade foi afetada, e a sua simpatia se engajou por causa das misérias humanas e o sofrimento causados por esse processo de transformação. Nesse momento do seu desenvolvimento, Marx ainda se identificava com a Ásia espoliada e sentia alguma empatia pelas suas massas condenadas. Mas, então, Marx caiu sob a influência do ensino orientalista, e a imagem mudou rapidamente. Os rótulos do orientalismo, o seu vocabulário, suas abstrações e definições começaram a dominar a sua mente e as suas emoções.

De acordo com Said, Marx – que no começo reconheceu a individualidade da Ásia - se tornou cativo da formidável censura criada pelo vocabulário, ensino e lendas do orientalismo. Ele cita o que supostamente aconteceu com o pensamento de Marx como um exemplo de como os “engajamentos humanos ‘não-orientalistas’ são dissolvidos [e] então usurpados pelas generalizações orientalistas”. A simpatia inicial e o sentimento expressos por Marx desapareceram conforme ele encontrou as definições inabaláveis construídas pela ciência orientalista e apoiadas pelas lendas orientais que supostamente seriam apropriadas para ela. Em resumo, o caso de Marx mostra como “uma experiência foi desalojada por uma definição de dicionário” 30.

É assim que Said vê a metamorfose que levou Marx à visão (altamente contestável para Said) de que a Grã-Bretanha estava tornando possível uma verdadeira revolução social na Índia, agindo como um instrumento inconsciente da história ao trazer a revolução. Assim, a Grã-Bretanha é vista por Marx como simultaneamente uma agência de destruição e regeneração na Ásia. Said traça, sem ambiguidade, essa visão madura de Marx diretamente vindo do pseudoensino e das fantasias orientalistas sobre o Leste, especialmente na sua variedade messiânica e romântica do século XIX. 

Para ele, Marx não é uma exceção a todos os europeus que lidaram com o Leste em termos da categoria orientalista básica da desigualdade entre Leste e Oeste. Além disso, ele declara diretamente que as análises econômicas de Marx cabem perfeitamente no empreendimento orientalista padrão.
Penso que esse balanço das visões e análises de Marx sobre processos e situações históricos altamente complexos é uma fraude. Sem dúvida, Marx, assim como qualquer outro gênio criativo, foi muito influenciado pelo ensino lexicográfico, definições de dicionário, abstrações, representações, generalizações e normas linguísticas prevalecentes na sua época e no seu meio. Mas só a fascinação excessiva de Said pelo verbal, o textual e o linguístico poderia levá-lo a retratar a mente de Marx como algo usurpado e tomado (contra os seus sentimentos e o seu melhor julgamento) pelo vocabulário, a lexicografia e as definições de dicionário da tradição orientalista no ocidente! Com Said, fica-se, às vezes, à beira da regressão à crença na eficácia mágica das palavras.

A maneira de Marx de analisar o domínio britânico na Índia em termos de um instrumento inconsciente da história – tornando possível uma verdadeira revolução social ao destruir a velha Índia e criar as bases de uma nova ordem – não pode ser remetida em nenhuma circunstância à usurpação da mente de Marx pela verborragia orientalista convencional. A explicação de Marx (independente de concordarmos ou discordarmos dela) testifica a sua consistência teórica em geral, e o seu aguçado realismo ao analisar situações históricas específicas. Isso fica evidente pelo fato de que Marx sempre tendia a explicar os processos históricos em termos de agência social, lutas econômicas, movimentos políticos e grandes personalidades que desempenhavam simultaneamente o papel de destruidores e criadores. Eles eram muitas vezes elencados por ele como “instrumentos inconscientes”da uma história se desenrolando em etapas e, algumas vezes, em formas imprevisíveis e inescrutáveis. Não existe nada específico sobre a Ásia ou o oriente nas interpretações teóricas amplas de Marx sobre o passado, presente e futuro. Nisso, as suas fontes são de referência completamente “europeia” e não devem nada ao ensino orientalista. Basta lembrar as vívidas passagens do Manifesto Comunista em que Marx retrata a burguesia europeia moderna no duplo papel de destruidora e criadora: destruidora da antiga Europa herdada, criadora do seu presente liberal e condutora do seu futuro proletário. Assim como a classe capitalista europeia, o domínio britânico na Índia era o seu próprio coveiro. Não há nada particularmente “orientalista” nessa explicação. Além disso, o chamado de Marx a uma revolução na Ásia é mais historicamente realista e promissor do que quaisquer nobres sentimentos que ele possa ter acalentado sobre as formações socioeconômicas necessariamente evanescentes.

Citarei outro exemplo, não relacionado nem com o orientalismo, nem com a Ásia nem com o reino da política. É assim que Marx descreveu o duplo papel do capital usurário na destruição  da “pequena produção camponesa e burguesa” e na formação da moderna Europa industrial31.

Por um lado:



“O capital usurário empobrece o modo de produção, paralisa as forças produtivas, em vez de desenvolvê-las... Ele não altera o modo de produção, e sim se prende firmemente a ele como um parasite, e o condena. Ele suga o seu sangue, o enerva e força a reprodução a acontecer sob condições cada vez piores. Daí o ódio popular contra os usurários...”



Por outro lado:



“A usura, em contradição ao consumo da riqueza, é importante historicamente, porquanto ela é em si mesma, um processo de geração de capital... A usura é uma ponderosa alavanca para desenvolver as precondições para o capital industrial e, nessa medida, ela desempenha o seguinte duplo papel, primeiro, de construir, em geral, uma riqueza monetária independente, ao lado da mercantil e, em segundo lugar, de criar condições próprias para o trabalho, ou seja, arruinar os proprietários das antigas condições de trabalho.”



A acusação de Said de que Marx aderiu à ideia orientalista básica sobre a superioridade do ocidente sobre o oriente parece derivar a sua plausibilidade apenas da ambiguidade subjacente à sua própria discussão sobre o assunto. Que a Europa do século XIX era superior à Ásia e à maioria do resto do mundo em termos de capacidade produtiva, organização social, ascendência histórica, poder militar e desenvolvimento científico e tecnológico é incontestável como fato histórico contingente. O orientalismo, com a sua tendência mental ahistórica burguesa, fez o melhor que pôde para eternizar esse fato mutável, para torná-lo uma realidade permanente, no passado, presente e futuro. Daí a ontologia essencialista do orientalismo sobre o ocidente e o oriente. Marx, como qualquer um, sabia da superioridade da Europa moderna sobre o Oriente. Mas acusar um pensador radicalmente historicista como Marx de tornar esse fato contingente uma realidade necessária para todos os tempos é simplesmente absurdo. O fato de que ele utilizava termos relacionados ou derivados da tradição orientalista não o torna um partidário da ontologia essencialista sobre o ocidente e o oriente, tanto quanto o seu uso constante de epítetos pejorativos como “crioulo” ou “judeu” (para descrever adversários, inimigos de classe, pessoas que ele desprezava, e assim por diante) não o tornava um racista e antissemita sistemático. Sem dúvida, a típica visão messiânica romântica era uma parte essencial do historicismo de Marx. Mas Said erra muito ao atribuir essa visão à influência posterior do orientalismo. Porque o aspecto messiânico e romântico da interpretação de Marx sobre a história humana esteve com ele desde o começo, e abrangia o Ocidente bem antes de ele tê-lo estendido para o Oriente.



Orientalismo e dependência


Gostaria de terminar essa seção da minha crítica chamando atenção para uma visão bem curiosa e uma passagem enigmática perto do final do livro de Said, logo depois da sua aguda crítica dos Programas de Estudo de Área contemporâneos, que substituíram os departamentos e disciplinas tradicionais do orientalismo nas universidades ocidentais, e particularmente nos Estados Unidos da América. Said faz a seguinte observação e julgamento:


“O mundo árabe hoje é um satélite intelectual, político e cultural dos Estados Unidos. Isso, em si, não é algo a ser lamentado, a forma específica desse relacionamento de satélite, contudo, é sim.32"


Se estou compreendendo essa passagem corretamente, Said acha a dependência intelectual, política e cultural do mundo árabe em relação aos Estados Unidos bem aceitável; o que ele deplora é apenas a maneira pela qual essa dependência se manifesta atualmente. Existem basicamente dois pontos de vista pelos quais podemos ver essa posição. O primeiro emana de uma interpretação “soft” e liberal sobre o significado e as implicações da dependência, enquanto o segundo vem de uma compreensão “hard” e verdadeiramente radical sobre a natureza e as consequências dessa relação.

De acordo com a interpretação “soft”, Said parece estar: a) simplesmente tomando nota do fato bem conhecido da superioridade e supremacia dos Estados Unidos sobre os seus satélites; e b) esperando que, através de uma maior compreensão e apreciação por parte dos Estados Unidos sobre as realidades do mundo árabe, os aspectos lamentáveis da relação de satélite possam ser melhorados. Tal desenvolvimento melhoraria muito as chances de haver uma maturidade política maior, independência cultural e originalidade intelectual no mundo árabe. Em outras palavras, o objetivo não é que os árabes se livrem da dependência, e sim que alterem e melhorem as suas circunstâncias, seus termos e modus operandi, na direção de uma relação mais equilibrada e verdadeiramente igual. Como resultado, Said culpa os Estados Unidos - e não o satélite – pela condição insatisfatória e deplorável ligada à “forma específica do relacionamento de satélite”. Mais precisamente, ele culpa os especialistas americanos em Oriente Médio que aconselham os formuladores de políticas, porque nem uns nem outros conseguiram se libertar do sistema de ficções ideológicas criado pelo orientalismo. Ele até  mesmo alerta esses especialistas e os seus senhores que, a menos que eles olhem para o mundo árabe de forma mais realista e tentem entendê-lo sem as abstrações e construções fantasiosas do orientalismo, o investimento dos EUA no Oriente Médio não terá fundamentos sólidos que o sustentem. Ele diz:



“O sistema de ficções ideológicas que eu chamei de orientalismo tem sérias implicações, não só porque não tem credibilidade intelectual. Como os Estados Unidos hoje são pesadamente comprometidos com o Oriente Médio, mais do que com qualquer outro lugar do mundo: os conselheiros sobre o Oriente Médio que aconselham os formuladores de políticas são imbuídos de orientalismo quase até os ossos. A maior parte desse comprometimento, bem a propósito, é edificada na areia, já que os especialistas dão instruções políticas se baseando em abstrações que vendem, como “elites políticas”, “modernização” e “estabilidade”, a maior parte das quais são simplesmente os velhos estereótipos orientalistas disfarçados de jargão político, e a maioria das quais tem sido completamente inadequada para descrever o que aconteceu recentemente no Líbano ou, antes, na resistência popular palestina a Israel33.” 


No final, a posição de Said aqui pouco difere da sabedoria convencional dos establishments liberais do ocidente em geral, e dos Estados Unidos em particular.

A interpretação “dura” e radical sobre o significado e as consequências da dependência foi desenvolvida e amplamente publicizada por estudiosos e pensadores sociais como Paul Baran, Andre Gunder Frank, Pierre Jaleé, Claude Julien, Samir Amin e Arghiri Emmanuel. De acordo com eles, a dependência é estruturalmente incapaz de gerar qualquer tipo de laços que não os da exploração intensificada, da pilhagem e da subjugação do satélite pelo centro.

De acordo com esse ponto de vista, os vagos pensamentos de Said sobre a questão só podem criar mais ilusões sobre a natureza do relacionamento de satélite, e gerar expectativas perigosamente falsas sobre as suas possíveis implicações e aplicações. A essência da ilusão está no perigoso pressuposto de Said, de que os aspectos e manifestações lamentáveis do relacionamento de satélite podem ser reformadas satisfatoriamente e melhoradas em benefício tanto do mundo árabe como do grande comprometimento americano no Oriente Médio, porque a visão radical sobre a dependência defende que o relacionamento de satélite leva ao maior desenvolvimento do já profundo subdesenvolvimento do satélite. Daí a sua conclusão inevitável de que a salvação do mundo árabe será impossível sem que a relação de dependência seja definitiva e claramente esmagada. Disso também deriva a crítica inevitável a Said por terminar o seu livro numa nota classicamente orientalista:
  1. Não considerando o relacionamento de satélite entre oriente (o Oriente Médio) e ocidente (EUA) lamentável em si;
  2. Dando bons conselhos aos formuladores de políticas americanos e os seus especialistas em Oriente Médio sobre como fortalecer as bases dos seus compromissos na região e sobre como melhorar as condições do “relacionamento específico de satélite”, se livrando das ficções e ilusões orientalistas desorientadoras; e
  3. Esquecendo que, se os especialistas americanos e os seus senhores seguirem os seus conselhos, o oriente terá no imperialismo americano um inimigo ainda mais formidável do que já tem.


Parte 2: Orientalismo invertido

Um dos maiores e mais interessantes sucessos do livro de Said, como já mencionado, é o de desnudar a crença persistente do orientalismo de que existe uma diferença ontológica radical entre as naturezas do oriente e do ocidente – ou seja, entre as naturezas essenciais das sociedades, culturas e povos orientais e ocidentais. Essa diferença ontológica cria imediatamente outra, epistemológica, que defende que os instrumentos conceituais, categorias científicas, conceitos sociológicos, descrições políticas e distinções ideológicas usados para entender e lidar com as sociedades ocidentais são, por princípio, irrelevantes e inaplicáveis às orientais. Esse pressuposto epistemológico é epitomizado pela declaração de H.A.R. Gibb de que aplicar “a psicologia e a mecânica das instituições políticas ocidentais em situações asiáticas ou árabes é puro Walt Disney.34” Isso também é aparente na crença declarada de Bernard Lewis de que “o recurso à linguagem de esquerda e direita, progressista e conservador, e o resto da terminologia ocidental... para explicar os fenômenos políticos muçulmanos é quase tão preciso e esclarecedor como uma narração de um jogo de críquete feita por um comentarista de beisebol.35 ” Em outras palavras, as diferenças vastas e facilmente discerníveis entre as sociedades e culturas islâmicas, por um lado, e as europeias, por outro, não são nem uma questão dos processos complexos da evolução histórica da humanidade nem uma questão de fatos empíricos a serem reconhecidos e assimilados. Elas são, além disso tudo, uma questão de emanações de uma certa essência cultural, psíquica ou racial (dependendo do caso) oriental (ou islâmica), portadora de atributos fundamentais imutáveis e identificáveis. Essa doutrina ahistórica, antihumana e até mesmo antihistórica eu chamo de orientalismo ontológico.

Obviamente, o orientalismo ontológico é completamente ideológico e metafísico no sentido mais pejorativo dessas palavras. Além disso, Said não poupou nenhum esforço em seu livro para expor esse fato.

O orientalismo ontológico é o fundamento da imagem criada pela Europa moderna sobre o Oriente. Como Said mostrou, essa imagem faz revelações mais verdadeiras e instrutivas sobre o estado de certos negócios europeus, principalmente sobre os projetos expansionistas e desígnios imperiais, do que sobre o seu suposto objeto. Mas, mesmo assim, essa imagem deixou a sua impressão profunda sobre a consciência moderna e contemporânea do oriente sobre si mesmo. Daí o importante alerta de Said aos sujeitos e vítimas do orientalismo sobre os perigos e tentações de aplicar as estruturas, estilos e preconceitos ontológicos facilmente disponíveis sobre si mesmos e sobre os outros.

Eu gostaria de argumentar que essas aplicações não só já aconteceram, como continuam a acontecer em grande escala. Além do mais, cair na tentação contra a qual Said alertou engendra o que pode ser chamado de orientalismo invertido.

Na parte que se segue, discutirei esse argumento nos termos de um exemplo específico desse orientalismo invertido, a saber, o orientalismo ontológico invertido, como eu proponho chamá-lo.

Para explicar, vou me referir a dois exemplos: o primeiro tirado do fenômeno bem conhecido do nacionalismo árabe laico, o segundo do movimento recente de revivescência islâmica.



Nacionalismo árabe e orientalismo invertido


Um destacado nome do pensamento e da política da Síria publicou, há cerca de dois anos, uma série de artigos em que propôs estudar algumas palavras “básicas” da língua árabe, como forma de chegar a um “conhecimento verdadeiro” sobre algumas das características essenciais da “mentalidade árabe” primordial subjacente a essas palavras36. Ao notar que a palavra “homem” em árabe (insân), implica “companheirismo”, “sociabilidade”, “amizade” e “familiaridade” (anisa, uns, anîs etc), ele concluiu triunfantemente que a visão implícita da “mente árabe primordial” diz que o homem tem uma tendência natural a viver com outros homens ou, como ele explicou: “a mente árabe primordial possui inatamente a ideia filosófica de que o homem é, por natureza, um ser social”. Então o nosso autor faz a seguinte comparação reveladora:

“A filosofia de Hobbes é baseada no seu famoso dito: “o homem é o lobo do homem” enquanto, ao contrário, a filosofia interior implícita na palavra insân prega que “o homem é o irmão do homem.”
Eu argument que essa peça, por assim dizer, de análise e comparação contém, numa forma altamente condensada, todo o aparato de abstrações metafísicas e mistificações ideológicas tão características do orientalismo ontológico e denunciadas de forma tão hábil e justa no livro de Said. O único elemento novo é o fato de que a ontologia essencialista orientalista foi invertida a favor de um povo específico do oriente.

Deveria ser evidente que um dos traços significativos do orientalismo ontológico invertido é a típica obsessão orientalista com a linguagem, os textos, a filologia e assuntos relacionados. Ele simplesmente imita os grandes mestres orientalistas – uma imitação pobre – quando tenta revelar os segredos da “mente”, “psique” ou “caráter” árabe primordial através das palavras. Em outros termos, ele adotou obediente e acriticamente o que Said chama pejorativamente de atitude “textual” 37 dos orientalistas em relação à realidade. No exemplo acima da assim chamada análise e comparação que eu citei, se pode ver facilmente o caráter panglossiano e quixotesco da tentativa de capturar alguma coisas sobre um fenômeno histórico tão complexo como a vida cultural, mental e psíquica dos árabes, no passado e no presente, literalmente aplicando o que foi aprendido em livros orientalistas e análises filológicas.

Esse orientalismo invertido peca duplamente, por tentar capturar a essência da “mente” árabe aprendendo como analisar palavras e textos árabes com as palavras e textos dos mestres orientalistas. Como uma obra de arte platônica, a sua atitude textual se afasta duplamente da realidade original.
Assim, o orientalismo invertido nos apresenta variações do tema racista de Renan, derivadas das suas análises filológicas e especulações linguísticas. Mas o elemento novo é que a conclusão do orientalismo invertido é que estudos comparativos filológicos e linguísticos provam a superioridade ontológica da mente oriental (a “mente árabe”, no caso) sobre a ocidental. Porque, não mostramos que a ideia sublime da “irmandade entre os homens” é inata e originária da “mente árabe primordial”, e a ideia básica de Hobbes da “guerra de todos contra todos” é inata e originária da “mente europeia primordial”?

De uma forma classicamente orientalista, a essência da “mente árabe” é explorada por um pensador árabe somente através da linguagem, e em isolamento hermético de intrusões desagradáveis de infraestruturas socioeconômicas, política, mudança histórica, conflitos de classe, revoluções, e assim por diante. Essa “mente”, “psique” ou “essência” árabe primordial supostamente revela a sua potência, gênio, e características distintivas através do fluxo dos acontecimentos históricos e acidentes do tempo, sem que nem a história nem o tempo mexam na sua natureza intrínseca. Por outro lado, a série de acontecimentos, circunstâncias e acidentes que formam a história como tal de um povo como o árabe nunca pode ser verdadeiramente compreendida a partir desse ponto de vista, sem a redução, através de uma série de mediações e passos, às manifestações primárias da natureza imutável original da “mente, “psique” ou “essência” árabe.

Citarei outro exemplo. Said aponta corretamente que:

“O valor exagerado dado ao árabe como língua permite ao orientalista tornar a língua o equivalente da mente, sociedade, história e natureza. Para o orientalista, a língua fala o oriental árabe, e não o contrário38.



O orientalismo invertido segue isso – não só fielmente, como mais imprudente e cruamente. Assim, outro autor sírio escreveu o seguinte sobre o status único da língua árabe e as maravilhas que ela revela sobre a “primitividade” do árabe e da sua língua:

“Depois de estudar as características vocais de cada letra da língua árabe, eu apliquei as duas conotações emocionais e sensoriais ao significado das palavras, começando com tais letras, ou às vezes terminando por elas, através de tabelas estatísticas baseadas nos dicionários da língua árabe. Depois de examinar cuidadosamente os maravilhosos resultados obtidos por esse estudo, me pareceu que a originalidade da língua árabe transcende os limites das potencialidades humanas. Então, eu pensei que não existe nenhuma explicação desse milagre de língua, a não ser em termos da categoria da primitividade do árabe e da sua língua39”.



A conclusão crucial dessa linha de raciocínio é a seguinte:

“Assim, as letras árabes aqui se transformaram, de contêineres vocais preenchidos como sensações e emoções humanas, na quintessência do árabe, da sua ‘asabiya, do seu espírito e até dos elementos constitutivos da sua nacionalidade40”.



De forma perfeitamente renaniana, essa noção de primitividade do árabe e da sua língua define um tipo humano primário como os seus traços essencialistas inimitáveis, dos quais formas mais específicas de comportamento fluem necessariamente. Isso é bem explicita e grosseiramente – portanto candida e honestamente – declarado por ainda outro ideólogo sírio da seguinte forma: “A essência da nação árabe goza de certas características absolutas e essenciais, que são: teísmo, espiritualismo, idealismo, humanismo e civilizacionismo41”.

Não é inesperado que se siga que essa essência absoluta da nação árabe também seja a portadora implícita de uma missão civilizadora que afeta o mundo inteiro. Dado o declínio do Ocidente no fim do século XX, se supõe que o Oriente vá ascender sob a direção da nação árabe e sob a bandeira da sua mission civilisatrice para guiar a humanidade para longe do estado de decadência a que a sua direção ocidental a levou. Porque a “essência ocidental” produziu tantos signos inconfundíveis de decadência como: “mecanicismo, darwinismo, freudismo, marxismo, malthusianismo, secularismo, realismo, positivismo, existencialismo, fenomenologia, pragmatismo, maquiavelismo, liberalismo e imperial­ismo”, que são, todos, doutrinas mundanas que manifestam “uma essência puramente materialista42”.

Em contraste, o “universo humano” (ou seja, o homem, a humanidade, a vida, a civilização) está esperando, hoje, o seu encontro marcado com “a nação que porta essa missão, escolhida para tirá-lo do seu impasse. Além disso, “Não importa o quanto possa ser trágica a condição nação árabe possa ser no momento, não há sombra de dúvida de que só ela é a nação prometida e esperada, porque só ela adquiriu perfeitamente, há eras, todos os constituintes, características e traços de uma nação. Assim, ela conseguiu, de uma forma unicamente profunda, todos os vários traços humanos ideais, excelências e virtudes, que a tornam capaz e merecedora de realizar a alta missão para a qual foi escolhida... 43”.

Agora, vou para o segundo exemplo do que foi definido como orientalismo ontológico invertido.



Revivescência islâmica e orientalismo invertido

Sob o impacto do processo revolucionário iraniano, uma linha de pensamento revisionista árabe surgiu. Os seus protagonistas principais vêm, na maioria, da esquerda: antigos radicais, ex-comunistas, marxistas heterodoxos e nacionalistas desiludidos de um tipo ou de outro. Essa linha política nebulosa encontrou uma resposta entusiástica da parte de alguns reconhecidos intelectuais e escritores árabes, como o poeta Adônis, o pensador progressista Anwar ‘Abd al Malek e o jovem e talentoso crítico libanês Ilias Khoury. Também acrescentaria que os seus partidários se mostraram muito prolíficos, usando vários fóruns no Líbano e na Europa Ocidental para tornar os seus pontos de vista, análises e ideias conhecidos do público leitor. A sua tese central pode ser resumida assim: A salvação nacional buscada tão ansiosamente pelos árabes desde a ocupação napoleônica do Egito não será encontrada nem no nacionalismo secular (seja radical, conservador ou liberal), nem no comunismo revolucionário, no socialismo ou o que seja, e sim em um retorno à autenticidade do que eles chamam de “Islã político popular”. Por motivo de distinção, vou me referir a essa nova abordagem como a tendência islamânica.

Não desejo contestar a tese dos islamânicos acima nessa apresentação. Em vez disso, gostaria de apontar que as análises, crenças e ideias produzidas pela tendência islamânica em defesa da sua tese central simplesmente reproduzem todo o aparato desacreditado da doutrina orientalista clássica sobre a diferença entre o oriente e o ocidente, o Islã e a Europa. Essa reiteração acontece tanto no nível ontológico como no epistemológico, só que invertida a favor do Islã e do oriente em seus juízos de valor implícitos e explícitos.

Um traço importante da literatura política produzida pela tendência islamânica é a sua insistência em substituir a oposição familiar entre libertação nacional e dominação imperialista pela oposição mais reacionária de Oriente contra Ocidente44 . No ocidente, os processos históricos podem se mover por interesses econômicos, lutas de classes e forças sociopolíticas. Mas, no oriente, o “primeiro motor” da história é o Islã, de acordo com uma declaração recente de Adônis45.

Adônis se explica, admitindo abertamente que, ao estudar a sociedade árabe e as suas lutas internas:
“Eu atribuí o primado ao fator ideológicorreligioso porque, na sociedade árabe, que é completamente baseada na religião, os modos e meios de produção não se desenvolveram de maneira a levar à ascensão da consciência de classe. O fator religioso continua a ser o seu primeiro motor. Consequentemente, o seu movimento não pode ser explicado através de categorias como classe, consciência de classe, economia, muito menos economicismo. Isso significa que a luta na sociedade árabe tem sido principalmente de natureza ideologicorreligiosa46.”

A conclusão demolidora de Adônis, então, naturalmente é “esquecer a luta de classes, o petróleo e a economia47, a fim de chegar a uma compreensão correta da dinâmica social oriental (muçulmana, árabe, iraniana).

Em outras palavras: as ideias, crenças, sistemas filosóficos e superestruturas ideológicas são suficientes para explicar as “leis de movimento” das sociedades e culturas orientais. Assim um islamânico entusiasmado anunciou que “a Revolução Iraniana nos revela com a maior ênfase possível... que as leis da evolução, da luta e da unidade dos nossos países e do oriente são outras, diferentes das da Europa e do ocidente48.” Um terceiro islamânico nos assegura que “tudo isso permite a Khomeini traduzir as suas ideias islâmicas simples em um terremoto sociopolítico que os sistemas teórico/filosóficos mais perfeitos e sofisticados não conseguiram detonar49.” Assim, o ultimo conselho dos islamânicos para a esquerda árabe é rearrumar as suas prioridades de forma a colocá-las no topo: “dar importância suprema aos fatores culturais e ideológicos que movem as massas e reformular as verdades científicas, econômicas e sociais sobre esta base50.”

De acordo com um orientalista como H.A.R. Gibb (e outros), essa totalidade islâmica estável, única, idêntica a si mesma, regula o trabalho de todos os fenômenos humanos, culturais, sociais e econômicos subsumidos a ela, em seus detalhes. Além disso, a sua coerência, placidez e força interior são colocadas em perigo, primariamente, por intrusões estrangeiras como as lutas de classes, interesses econômicos, movimentos nacionalistas seculares, ideias democráticas, intelectuais “ocidentalizados”, partidos comunistas etc. Então, não surpreende vermos Adônis fazendo duas coisas:

Primeiro, se opondo ao “nacionalismo, secularismo, socialismo, marxismo comunismo e capitalismo51 à la Gibb et al., porque a fonte dessas ideias é ocidental, e por causa das suas influências corrosivas sobre as estruturas internas do Islã que o mantém oriental52.

Em segundo lugar, interpretando a Revolução Iraniana em termos de uma simples forma enfática: “O Islã é simplesmente o Islã”, “independente e apesar da política, da luta de classes, do petróleo e da economia”. Aqui, Adônis está apresentando como se fosse a sabedoria suprema a tautologia estéril do orientalismo ontológico, tão bem apresentada na crítica de Said: “O Oriente é o Oriente”; “O Islã é o Islã”; e, seguindo os passos de orientalistas ontológicos como Renan, Macdonald, Von Grunebaum e Bernard Lewis, Adônis e os outros islamânicos imaginam que podem compreender a sua essência, isolando-a da economia, da sociologia, do petróleo e da política dos povos islâmicos. Como resultado, eles estão ansiosos em assegurar o status ontológico orientalista do Islã não só como “primeiro motor” da história islâmica, mas também como o alfa e o ômega do “oriente islâmico”. No mundo islâmico nada conta realmente, a não ser o Islã.

É digno de nota que a metáfora preferida dos islamânicos é derivada do ciclo dos oceanos, basicamente fixo, sem progressos, sem inovações. Eles dizem que o Islã está novamente em mare alta, depois da maré baixa das gerações (e até séculos) passadas. Eu assinalo que essa visão islamânica do Islã não é, em essência, e à luz das suas consequências lógicas, diferente da pregação metafísica do orientalismo ontológico. Em outras palavras, o Islã é mostrado a nós da mesma forma que H.A.R. Gibb o via, uma totalidade monolítica única oriental, inerradicavelmente distinta, em sua natureza essencial, da Europa, do ocidente e do resto da humanidade.

Assim, de uma forma classicamente orientalista (apesar de invertida), Adônis reafirma condescendentemente que a característica peculiar à essência ocidental é o “tecnologismo, e não a originalidade”. Ele até começa a enumerar os maiores traços que distinguem o pensamento ocidental, a partir daquela característica inerente. De acordo com ele, são: sistema, ordem, método e simetria. Por outro lado, “a peculiaridade do oriente” para ele “está em sua originalidade”, e é por isso que a sua natureza não pode ser capturada, a não ser através “do profético, do visionário, do mágico, do milagroso, do infinito, do interior, do além, do fantástico, do extático” etc53.

De acordo com isso, não surpreende que as lutas e sacrifícios revolucionários do povo iraniano consistem, aos olhos dos islamânicos, em nada mais que ou “um retorno ao Islã” (a metáfora da maré alta), ou a uma manifestação da oposição islâmica inata aos povos e influências não-islâmicos (a contradição Leste-Oeste), como Bernard Lewis queria que acreditássemos54. Da mesma forma, os islamânicos pareceriam estar de pleno acordo com a conclusão de Morroe Berger, de que “para o Islã moderno, nem o capitalismo nem o socialismo são rubricas adequadas55. Mas por quê? A razão, conforme apontada por Said, é que, de acordo com os orientalistas ontológicos (tanto na sua forma invertida como na versão original), não faz nenhum sentido, na verdade, falar em Islã clássico, medieval ou moderno, porque o Islã sempre é o Islã. O Islã pode ir embora, retornar, estar na maré baixa ou alta, mas não muito mais do que isso. E, já que o assim chamado “Islã moderno”, de acordo com o orientalismo ontológico invertido, não é mais do que a versão reafirmada do velho Islã, Adônis não vê problemas em aconselhar a revolução iraniana sobre os seus problemas presentes e futuros no seguinte jargão arcaico e teológico:

“É autoevidente que a política da profecia estabeleceu as bases de uma nova vida e de uma nova ordem. Também é autoevidente que a política do imamato ou wilâya é a guia correta da política da profecia, ou melhor, é a mesma política da profecia , por inspiração e sem identificação total. Porque todo imamato ou wilâya pertence a uma era particular, e cada era tem os seus problemas particulares. Assim, a importância da política do imamato, e até a sua legitimidade, estão na extensão em que ela é capaz de ijtihâd para compreender a mudanças de modos e as novas realidades que surgem, sob a guia correta da política da profecia56.”

Da mesma forma, não é esse tipo de lógica conservadora orientalista que está pressuposta no debate iraniano recente sobre se a “república islâmica” pode ser descrita como democrática? A linha oficial islâmica, que prevaleceu, argumentou que “Islã” não pode aceitar nenhum qualificativo adicional, já que não pode ser nada mais que o Islã. Em outras palavras, assim como não faz sentido falar em Islã clássico, medieval ou moderno – considerando que o Islã é sempre o Islã – também não faz sentido falar sobre uma república islâmica ser democrática, considerando que a república islâmica sempre é islâmica e não pode ser mais nada além disso. Daí, a declaração de Khomeini em uma de sua muitas entrevistas sobre a república islâmica: “O termo Islã não precisa de adjetivo, como democrático, que seja atribuído a ela.. O termo Islã é perfeito, e ter que colocar outra palavra do lado dele é, na verdade, uma fonte de tristeza57.”
 
O orientalismo ontológico invertido não é, no final, menos reacionário, mistificador ahistórico e antihumano que o próprio orientalismo ontológico.


Beirute, Outono de 1980
 
  1. Orientalism, Pantheon Books, New York, 1978.
  2. Said recapitula os sucessos do orientalismo acadêmico na p96.
  3. Orientalism, p42.
  4. Ibid, p50.
  5. Ibid, pp 56, 62, 68.
  6. Ibid, p12.
  7. Ibid.
  8. Ibid, p96.
  9. Ibid.
  10. Ibid, p202–203.
  11. Ibid, p210.
  12. Ibid, p91.
  13. Ibid, p221.
  14. Ibid, p67.
  15. Ibid, p60.
  16. Ibid, p67.
  17. Ibid, p272.
  18. Ibid, p60.
  19. Em outras palavras, uma ordem natural governada por leis invariáveis.
  20. Ibid, pp276–279. (grifo de Edward Said.)
  21. Ibid, pp265–270.
  22. Ibid, p150.
  23. Ibid, p267.
  24. Ibid, p270.
  25. Ibid, p269. 
  26. Ibid, p271.
  27. Ibid, p210. 
  28. Ibid, p271.
  29. Ibid, pp153–156.
  30. Ibid, p155.
  31. Capital, vol III, Capítulo 36.
  32. Orientalism, p322.
  33. Ibid, p321.
  34. Ibid, p107.
  35. Ibid, p318.
  36. Georges Saddikni, ‘Man, Reason and Synonyms‘, al-Ma’rifa, Damascus, Outubro de 1978, pp7–17. Mr Saddikni foi até há pouco tempo membro do Comando Nacional (Panárabe) do Baath, e líder do seu Birô de Assuntos Culturais. Ele foi o Ministro da Informação da Síria por muitos anos.
  37. Orientalism, p92.
  38. Ibid, p321.
  39. Hasan Abbas, ‘The Arabic Letters and the Six Senses‘, al-Ma’rifa, Outubro de 1978, pp140–141.
  40. Ibid, p143.
  41. Isma’il ‘Arafi, Qital al-‘Arab al-Qawmi, publicado pelo Ministério da Cultura e Orientação Nacional, Damasco, 1977, p70.
  42. Ibid, p145.
  43. Ibid, pp147–148.
  44. Anwar ‘Abd al-Malek enfatizou novamente, há pouco tempo a sua convicção de que o traço principal do nosso tempo é o continuo “confronto civilizacional entre o Oriente e o Ocidente” (Arab Studies Quarterly, vol I, no.3, Verão de 1979, p180).
  45. ‘Islam and Political Islam’, An-Nahar Arabe et Internationale, Paris,22 de janeiro de 1979, p64. Republicado in Mawâqif, Beirute, no. 34, Inverno de 1979, pp149–160.
  46. Mawâqif, No. 34, p155.
  47. Ibid, p152.
  48. WaIid Nuwayhed, al-Safir, jornal diário, Beirute, 19 de dezembro de 1979, Editorial.
  49. Suhail Kash, al-Safir, 3 de janeiro de 1979.
  50. Sa’d Mehio, al-Safir, 20 de janeiro de 1979.
  51. Mawâqif, no. 34, pp47–48.
  52. Orientalism, p263.
  53. Mawâqif, no. 36, Inverno de 1980, pp150–153.
  54. Orientalism, p107.
  55. Ibid, p108.
  56. An-Nahar Arabe et Internationale, Paris, 26 de fevereiro de 1979, p24. Ver também Mawâqif, 34, p 158.
  57. Al-Safir, 10 de outubro de 1979.
 

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