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Anarquistas no campo dos Estados Unidos durante a Guerra Fria



Esse assunto é uma curiosidade histórica, mas também não é. Hoje, quando por exemplo, vemos a resistência curda numa aliança tática com os Estados Unidos, ou uma esquerda que esconde sistematicamente todas as formas de lutas de classes e dominação nos países não-alinhados com os EUA, é bom revisitar essa questão.

Antes de me encherem o saco, o objetivo não é esculachar o anarquismo nem nada disso, como dá pra ver, vou falar até de uma corrente histórica que veio do trotskismo e adotou uma política desse tipo. O meu objetivo aqui é mostrar os pontos cegos de todas as “teorias dos campos” na época da Guerra Fria.


Os três campos

Com o começo da Guerra Fria, em 1947, quando se rompeu a aliança formada entre os EUA, o Reino Unido e a URSS contra o fascismo, obviamente os partidos comunistas se alinharam à URSS (e aos países ocupados pela URSS no Leste Europeu onde logo se desenvolveria através da intervenção soviética um sistema social nas linhas da URSS) como expressão do “campo socialista”.

Mas nem toda a esquerda socialista identificava o regime soviético com o socialismo. Uma análise diferente sobre a formação social soviética levaria a uma avaliação diferente da luta entre os dois campos.

No movimento trotskista, as correntes predominantes consideravam a URSS um Estado Operário Degenerado. Por isso, mesmo estando contra a política externa soviética e contra o regime stalinista, consideravam a URSS progressiva em relação ao capitalismo e, por isso, que ela deveria ser defendida contra o imperialismo.

Já entre os anarquistas, a grande maioria, seguindo Rudolf Rocker, caracterizava a URSS como capitalismo de Estado. Isso implicava em considerar tanto o campo da URSS como o dos EUA igualmente reacionários, e defender que os trabalhadores constituíssem uma terceira força. A tese dos comunistas de esquerda (nos primeiros anos, o PCI chamado “bordiguista” era inclusive maior do que a Quarta Internacional inteira) era a mesma.

Já a maioria da social-democracia, colocando como central a questão da democracia, considerava que a forma de sociedade da URSS era pior que o capitalismo e que, por isso, era necessário defender o “Mundo Livre” do totalitarismo comunista.

Logicamente, essas são as correntes principais, existiram por exemplo trotskistas que caracterizavam a URSS como capitalista de Estado ou coletivista burocrática e defendiam uma política de terceiro campo, ou socialdemocratas que caracterizavam a URSS, apesar dos pesares, como socialista e se colocavam contrários ao imperialismo americano.

No movimento trotskista, foi o Max Schachtman que, isoladamente (ou seja, contra a orientação da corrente chamada schachtmanista, que continuou defendendo uma política de terceiro campo) passou a defender que os EUA tomassem medidas para conter o avanço do stalinismo, por exemplo apoiando a invasão da Baía dos Porcos, em Cuba.


Mas falando sobre o assunto do texto.

Em primeiro lugar, como o anarquismo é antes de tudo um movimento organizado, é importante mencionar as duas organizações que explicitamente defenderam o capitalismo democrático como um mal menor. São a SAC (Organização Central dos Trabalhadores da Suécia) e o grupo francês de sindicalistas revolucionários Révolution Prolétarienne. No estatuto da SAC está escrito:


O caso da Révolution Prolétarienne é mais complicado. A partir do final da década de 1940, a direção da revista, principalmente Robert Louzon, passou a se alinhar com os EUA contra a possibilidade de ocupação da Europa ocidental pela URSS, o que levou à crise e afastamento de uma importante minoria em torno do Alfred Rosmer e do Pierre Monatte

Aliás, a confusão política causada pela Guerra Fria é palpável na literatura anarquista e sindicalista revolucionária da época. Nas mesmas páginas da Révolution Prolétarienne (mas também nas publicações da Federação Anarquista francófona) podemos encontrar texto do Paul Rassinier, ex-socialdemocrata e então anarquista, que junto com o Maurice Bardèche, foi simplesmente um dos fundadores do negacionismo do Holocausto! No caso do Rassinier, o negacionismo era motivado diretamente pelo anticomunismo, já que o objetivo da sua obra era provar que a URSS foi muito pior que a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra.

É claro que entre os anarquistas intelectuais no "Mundo Livre", a pressão para se alinhar ao campo democrático era muito mais forte que entre as organizações. Dwight MacDonald, George Woodcock e Albert Camus, entre outros, colocaram como prioridade a luta contra o totalitarismo. Nas palavras do Woodcock

Para começar, permitam-me dizer que não discordo em nada de Macdonald em preferir o Ocidente ao Oriente como lugar para viver. Ninguém, a não ser o companheiro de viagem mais idiota e deslumbrado pensaria que é melhor viver em Moscou do que em Londres ou São Francisco ou Montreal ou Paris. Não existe comparação entre a natureza da vida numa democracia capitalista no momento presente, apesar de suas diversas injustiças e desconfortos, e a natureza da Rússia ou da Alemanha Oriental. E eu concordaria com Dwight Macdonald que, novamente neste momento, o comunismo soviético é "muito mais desumano e bárbaro como sistema social que o nosso.”

Justiça seja feita, esse posicionamento a favor das democracias capitalistas não significou colaboração com a burguesia, como foi o caso de alguns ex-integrantes do movimento trotskista com posições semelhantes, como James  Burnham.  Tanto as organizações como os intelectuais denunciaram o macartismo, o colonialismo dos países capitalistas, apesar de considerarem esse campo como o menos reacionário.


Conclusão

Além do assunto ser interessante por si só, e ajudar a "descongelar" algumas ideias feitas que a gente mantém na esquerda, ele também pode ajudar a nossa reflexão sobre o destino das várias "teorias dos campos" hoje (quando existem menos motivos ainda pra enxergar em algum "campo" o "progresso"). As três variantes da época da guerra fria estavam erradas, cada uma por um motivo (ou mais):

- a posição pró-URSS não levava em conta que as mínimas condições democráticas para a existência de um movimento socialista independente eram impossíveis nos regimes stalinistas

- a posição pró-EUA não levava em conta que os países imperialistas eram os maiores obstáculos para a luta socialista e antiimperialista

- a posição de terceiro campo não entendia que a grande maioria dos movimentos antiimperialistas e socialistas estavam na órbita do campo stalinista

Nessas condições, qualquer teoria que determinasse a política socialista a partir de campos definidos abstratamente e de uma forma permanente levaria a uma grande desorientação. A forma mais conhecida dessa desorientação na esquerda foi a defesa do stalinismo (e consequente rejeição das lutas no campo da URSS). Aqui, eu quis falar da forma oposta de desorientação (que não necessariamente é perfeitamente simétrica).

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