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Apropriação cultural e racismo culturalista


Tinariwen, blues berbere
Escrito junto com a Tatiana Costa



Esse texto é o resultado de uma reflexão sobre uma tendência cada vez mais forte dentro dos movimentos sociais. Desde já declaramos que o movimento operário, assim como os novos movimentos sociais influenciados ideologicamente1 pelas várias correntes do socialismo, são tão machistas e racistas como o restante da sociedade em que atuam, isso quando não usam de argumentos “socialistas” pra justificar o seu masculinismo e supremacismo branco com apelos à “unidade da classe”, “luta contra o 'verdadeiro' inimigo” etc.

Porém, o nosso objetivo é argumentar que os vários elementos ideológicos pós-modernos (lugar de fala), culturalistas (apropriação cultural) ou formalistas (teoria do privilégio) difundidos através da internet tentam combater as concepções erradas com outras tão ruins quanto ou até piores. No final, vamos tentar propor formas de combate ao masculinismo e à supremacia branca na esquerda a partir de um ponto de vista profeminista e antirracista materialista. Antes, vamos tentar situar o problema.


O que seria apropriação cultural?

O conceito de apropriação cultural foi criado para abordar a forma com as criações da cultura negra e dos povos indígenas eram absorvidas pela população branca.

Por exemplo, quando artistas brancos ficam famosos tocando estilos da música negra, enquanto os negros que tocam o mesmo estilo são criminalizados (samba, jazz, rap, funk etc). Ou quando artefatos indígenas são usados pela indústria da moda, sem preocupação com o seu significado para os povos que os criam. Ou quando símbolos religiosos de povos colonizados (turbante, dreadlocks, bindi etc) são usados como enfeite. Etc etc etc.

O reverso lógico do conceito de apropriação cultural é o de colonização cultural. Ou seja, quem critica a apropriação cultural também considera que um membro de um povo colonizado está sofrendo colonização da cultura do povo dominante quando abandona os elementos da cultura do seu povo em troca da cultura dos dominantes. Por exemplo, alguns coletivos negros veem dessa forma a questão das pessoas negras que são evangélicas ou ateias.

A apropriação cultural, dentro da lógica culturalista e, portanto, não materialista, é considerada tão ruim como a colonização propriamente dita, ou como parte dela ou preparação para ela. Quem pratica a apropriação cultural é considerado um racista, tanto como se estivesse discriminando um povo colonizado, por estar “roubando” a sua cultura. E quem sofre colonização cultural ou é uma vítima de lavagem cerebral ou renegou a “sua” própria cultura – um inocente útil ou um traidor.


Racismo culturalista

O interessante é que os pressupostos do conceito de apropriação são exatamente os mesmos da forma dominante de racismo no mundo de hoje, o racismo culturalista. Depois da derrota do nazismo, o racismo de base biológica caiu em descrédito e marginalização totais, por isso os racistas começaram a procurar outro argumento para justificar suas crenças.  

E essa justificativa veio na ideia de que existem culturas homogêneas e separadas, incapazes de se integrar umas às outras sem prejuízo para ambas, em que os indivíduos estariam imersos de tal forma que seriam inseparáveis delas, também sob risco de alienação total


Este racismo que se pretende racional, individual, determinado, genotípico e fenotípico, transforma-se em racismo cultural. O objeto do racismo já não é o homem particular, mas uma certa forma de existir. No limite, fala-se de mensagem, de estilo cultural. Os “valores ocidentais” reúnem-se singularmente ao já célebre apelo à luta da “cruz contra o crescente”.

Sem dúvida, a equação morfológica não desapareceu completamente, mas os acontecimentos dos últimos trinta anos abalaram as convicções mais firmes, subverteram o tabuleiro de xadrez, reestruturaram um grande número de relações.

A lembrança do nazismo, a miséria comum de homens diferentes, a escravização comum de grupos sociais importantes, o surgimento de “colônias europeias”, quer dizer, a instituição de um regime colonial em plena Europa, a tomada de consciência dos trabalhadores dos países colonizadores e racistas, a evolução das técnicas, tudo isto alterou profundamente o aspecto do problema.

Temos de procurar, ao nível da cultura, as consequências deste racismo.

O racismo, vimo-lo, não é mais do que um elemento de um conjunto mais vasto: a opressão sistematizada de um povo. Como se comporta um povo que oprime? Aqui, encontram-se constantes.

Assiste-se à destruição dos valores culturais, das modalidades de existência. A linguagem, o vestuário, as técnicas são desvalorizados. (...)

No entanto, a implantação do regime colonial não traz consigo a morte da cultura autóctone. Pelo contrário, a observação histórica diz-nos que o obetivo procurado é mais uma agonia continuada do que um desaparecimento total da cultura preexistente. Esta cultura, outrora viva e aberta ao futuro, fecha-se, aprisionada no estatuto colonial, estrangulada pela canga da opressão. Presente e simultaneamente mumificada, depõe contra os seus membros. Com efeito, define-os sem apelo. A mumificação cultural leva a uma mumificação do pensamento individual. A apatia tão universalmente apontada dos povos coloniais não é mais do que a consequência lógica desta operação. A acusação de inércia que constantemente se faz ao “indígena” é o cúmulo da má-fé. Como se fosse possível que um homem evoluísse de modo diferente que não no quadro de uma cultura que o reconhece e que ele decide assumir.
A concepção de culturas estanques que precisam se preservar, na verdade, foi “apropriada” por setores de esquerda, mas é criação de movimentos racistas com muito mais influência social do que qualquer coletivo negro que lute contra a apropriação cultural. Essa foto aqui é de um churrasco de carne de porco organizado por um motoclube americano para "profanar" o Ramadã. A defesa de uma perspectiva culturalista fortalece essas iniciativas, fazendo com que elas passem a pautar cada vez mais o debate político.

E não é surpresa ver a colaboração entre culturalistas de esquerda e elementos da extrema-direita em prol de medidas de segregação cultural e ataques aos direitos universais.

Na França, por exemplo, o PIR (Partido dos Indígenas da República), que é uma organização pós-colonial, ou seja, culturalista, é contra os casamentos interraciais e entre pessoas do mesmo sexo (porque eles alegam que a homossexualidade como modo de vida não existe nas culturas dos povos colonizados). Segundo a dirigente do partido, Houria Bouteldja, 


A perspectiva descolonial é, antes de tudo, amarmos a nós mesmos, nos aceitarmos, nos casarmos com um muçulmano ou uma muçulmana, um negro ou uma negra. Eu sei que isso parece uma regressão, mas lhes asseguro que não, que é um passo de gigante.


Antirracismo, cultura e iluminismo

O conceito de apropriação cultural é uma transposição mecânica da estrutura da teoria do privilégio para o campo da cultural. Como já foi argumentado, a teoria do privilégio tem uma estrutura formalista, que automaticamente coloca qualquer desigualdade entre dois grupos como uma relação de exploração entre eles.

Isso já é errado quando se trata de desigualdade econômica, mas pelo menos a economia trata de recursos escassos. Quando isso é transposto para a cultura, fica mais absurdo ainda. O fato de um grupo adotar uma prática cultural não tira nada dos seus criadores, que podem continuar a exercê-la das mesmíssima forma que antes!

Pelo contrário, os antirracistas e antiimperialistas sempre foram a favor de que desaparecesse o estigma sobre as culturas dos povos colonizados e elas se tornassem patrimônio de toda a humanidade.




(quem leu Amílcar Cabral, pai da pátria guineense nos anos 70, vai entender tudo sem precisar de bula)

Fica bastante evidente por tudo que vimos até aqui que a questão cultural – a cultura negra por suposto – é estratégica na luta contra o racismo no Brasil.
A evidência mais límpida e clara disto é que a sociedade brasileira radicalizou tanto a exclusão sócio racial que a cultura do Brasil acabou ficando marcada, profunda e indelevelmente por fatores oriundos da África, forjada que foi pelos africanos e seus descendentes que, de escravos passaram a exercer o papel de Povo.

A cultura brasileira no geral, passou a estar dividida então entre uma cultura letrada, de forte teor eurocêntrico (denominada “Cultura Brasileira“) interessante e exclusiva à uma minoria branca e, do outro lado da cerca, pela plebe, praticante de uma cultura oral, iletrada (denominada, grosso modo “Cultura Popular“) de forte teor afrocêntrico, praticada pela maioria esmagadora da população.

Por este ponto de vista, democratizando-se o acesso de artistas e criadores negros ao mercado, aos meios de produção e fruição de seus trabalhos e manifestações enfim, o conceito “Cultura Negra” (ou ‘afro brasileira‘, tanto faz) terminará por não fazer mais nenhum sentido. A conclusão a que se chegará enfim, em algum ponto da evolução deste processo, é que “cultura negra’ brasileira, simplesmente É, por todos os parâmetros histórico antropológicos disponíveis, a natureza intrínseca da própria Cultura do Brasil.

Uma crítica marxista que leve a sério a questão do imperialismo, como feita pelo Fanon, o Cabral, o CLR James ou o Coletivo Combahee River, pode e deve mostrar como os produtores da cultura são excluídos do acesso a ela pela indústria cultural. Como a sua produção se transforma em mercadoria barata. Mas reparem bem: o objetivo dessa crítica não é combater a “cultura ocidental”, vista como um bloco monolítico a ser rejeitado, e nem defender a “cultura negra/indígena”, como se também fosse um bloco monolítico (ou pior, uma das culturas negras ou indígenas).

O objetivo é chegar à universalização do acesso à produção e acesso à todas as culturas humanas. Ou seja, é levar o processo do iluminismo às suas consequências lógicas, que têm sido bloqueadas pelopatriarcado e o imperialismo.

O paradigma das culturas que devem ser preservadas não pode ser adotado pelos explorados e oprimidos sem entrar em conflito com as pessoas concretas que portam essas culturas.


Em defesa dos movimentos autônomos dos povos colonizados!

Como já falamos antes, ao rejeitar o culturalismo, não podemos cair na rotina, que foi muito popularizada pelo stalinismo, de se considerar que a luta negra ou o feminismo seriam “divisionistas” ou que seriam “uma luta de todos”, sem a necessidade dos setores em questão como sujeitos políticos.

Aqui, é preciso fazer uma distinção muito importante: a contradição burguesia x proletariado não é a única na sociedade, e a posição estrutural como alvos diretos de exploração e dominação – e, principalmente, como agentes diretos de luta - coloca os negros, as mulheres, indígenas etc, na posição, também estrutural, de sujeitos políticos de seus respectivos movimentos.

O papel do movimento dos trabalhadores e do movimento socialista é de apoiar esses movimentos autônomos, assim como levar em conta as críticas formuladas por eles na elaboração das suas estratégias.

Isso não deve ser de forma nenhuma confundido com a aceitação da teoria pós-moderna do lugar de fala, segundo a qual só as pessoas que sofrem alguma forma de dominação são capazes de entendê-la. Essa é uma teoria irracionalista e que, sendo adotada, leva à fragmentação infinita de qualquer movimento, já que os lugares de fala podem se multiplicar sem limite (por exemplo, negros, mulheres negras, mulheres negras lésbicas, mulheres negras lésbicas seguidoras de religiões de matriz africana, mulheres negras lésbicas seguidoras de religiões de matriz africana e deficientes etc). Também impede de qualquer crítica construtiva possa ser feita, já que elas são automaticamente caracterizadas como opressão. Qualquer posição precisa ser sustentada com argumentos válidos universalmente, sob pena de que a sociedade e os movimentos virem uma penca de monólogos que nunca se tornam um diálogo.

O que realmente deve existir no movimento dos trabalhadores e no movimento socialista é um compromisso político de colaborar com os movimentos autônomos na luta contra as outras formas de dominação que não poem ser reduzidas à de classe. Infelizmente, poucas vezes existe esse tipo de compromisso, o que é o motivo de muita gente adotar as concepções de que estamos falando. 


1Quando falamos em ideologia é no sentido marxista de falsa consciência

Comentários

manda,a disse…
Ola, achei o texto muito interessante, estive pesquisando muito sobre apropriação cultural pois enquanto branca necessitava saber em que nível minhas expressões e manifestações de afetos e culturas não poderiam se configurar como práticas racistas. Este é um dos poucos textos q trata do discurso da apropriação cultural como algo fruto de um racismo culturalista... ainda não havia lido nada a respeito, talvez at3 minha conclusão tenha sido preciptada, irei reler algumas vezes mais.
Obrigada pelas citações e referências do texto. Gostaria de saber se existem outras também para estudo pessoal.
Abraços!
rodrigodoo disse…
Que bom que você gostou!

Um filósofo que discute bastante o papel da cultura e que eu gosto muito é o Kenan Malik. Esse artigo dele é sobre apropriação cultural https://kenanmalik.wordpress.com/2016/09/14/who-is-appropriating-what/

Um abração!