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Pequena História da Pintura Abstrata (6) - a dissolução informal do abstracionismo


As formas de dissolução da pintura

Depois de um longo intervalo, eu volto a essa série que eu gosto tanto de escrever. Como eu tinha dito, a expansão capitalista do pós-Segunda Guerra permitiu que as instituições artísticas e o mercado de arte absorvessem a arte moderna. Não necessariamente o conteúdo crítico de grande parte da produção modernista precisaria ser “neutralizado” para que essa absorção fosse realizada. O próprio ato de colocar as obras num “pedestal” seria suficiente para transformá-las no produto de indivíduos altamente criativos, sem nenhuma consequência social, como um ponto de vista liberal poderia sustentar. Na verdade, a própria forma não-representativa da arte moderna facilitaria esse esforço.

Mesmo assim, houve um processo de dissolução formal das obras, que culminou pouco mais de uma década depois no pós-modernismo, começando na arquitetura e depois se espalhando para todas as artes. A passagem para o pós-modernismo, como eu vou tentar mostrar, é a destruição final do sujeito em crise característico da arte moderna, e tipicamente tomou a forma ou de um puro formalismo sem subjetividade nenhuma ou de uma fragmentação tão grande da forma que fica aquém da subjetividade. A própria arte, no processo de enquadramento pela indústria cultural, foi elaborando as formas conformistas adequadas a este processo.


Expressionismo abstrato

Nos Estados Unidos, a evolução para a dissolução informal da pintura foi mais rápida, e o uso político que foi feito do abstracionismo informal deixa mais evidente o que estava em jogo. Com a abstração geométrica do entreguerras tendo virado “arte de museu”, alguns pintores tentaram criar uma escola especificamente americana de abstração. Sob influência do automatismo surrealista, De Kooning e, principalmente, Jackson Pollock fazem uma pintura violenta, em que a forma musical de Kandinsky ou a construção rigorosa de Mondrian eram deixados de lado, o centro da obra passando a ser o próprio gesto do pintor.

Pollock, N. 5 (1948)
Pollock se tornou, no final dos anos 1940, o “showman” do expressionismo abstrato. Passou a pintar as telas no chão, e inventou a técnica do dripping (deixar a tinta pingar no quadro). O seu estilo passou a ser chamado de action painting (pintura de ação). A performance era quase um espetáculo à parte. Dessa maneira, Pollock poderia pintar centenas de quadros, que tinham uma estrutura formal irreconhecível. Essa desvalorização do ato de pintar em detrimento da obra foi uma ponte para outras formas pós-modernas, como o happening.
Rothko, sem título

A morte precoce de Pollock em 1956, num acidente de carro, interrompeu a sua carreira, que já estava em declínio.

O expressionismo abstrato foi utilizado pela política cultural americana, no início da Guerra Fria, como forma de exaltar a “liberdade” dos EUA, diante da arte acadêmica e controlada pelo Estado que era o realismo socialista. O governo americano foi mecenas de pintores expressionistas abstratos e promoveu o estilo, não por acaso o mais subjetivista e individualista da arte moderna.

Ainda nos EUA, cabe lembrar que não houve hegemonia absoluta do expressionismo abstrato. Existiram experiências importantes de manter a estrutura formal nas pinturas abstratas, o maior exemplo talvez seja Rothko. Os seus lindos quadros monocromáticos remaram contra a maré, e foram uma ponte entre o modernismo e o minimalismo.


Tachismo e informalismo

Ainda durante a ocupação nazista, foi formado o grupo Pintores de Tradição Francesa. Era, de certa forma, uma corrente retardatária da abstração, como mostra essa obra de Bazaine, Casas em Saint Guénole:

 











Outros artistas independentes também vão ficar a meio caminho do informalismo, como é o caso da portuguesa Vieira da Silva e Dubuffet.

Soulages, Pintura, 23 de maio de 1953
É com os tachistas ou abstracionistas informais ou abstracionistas líricos que a dissolução da forma começa em terras europeias, mesmo que de uma maneira menos radical e violenta que nos EUA. Em Soulages ou Wols ainda é possível reconhecer resquícios da figuração.
















Alberto Burri, sem título
Através da França, a abstração informal atinge a Itália e a Espanha, e depois o Japão. Burri e Tapiès fazem um percurso semelhante ao dos informalistas, mas trabalhando sobre materiais inéditos na pintura, como sacos, panos, pedaços de madeira etc, para conseguir novas texturas e romper com a tela plana (essas experiências, alguns anos depois, vão levar à dissolução da própria pintura, na Arte Povera e na Arte da Terra).




Yoshihara, obra (1965)

No Japão, como já foi dito, o grupo Gutai fez uma síntese entre o informalismo e a caligrafia tradicional do seu país, revelando pintores como Jiro Yoshihara e Shozo Shimamoto. Depois dessa atualização em relação à Europa, as artes plásticas no Japão passam a assumir um papel de vanguarda, como mostra, por exemplo, a participação de artistas japoneses como Yoko Ono no grupo Fluxus, na década de 1960. No Manifesto do Gutai existia a mesma intenção de ultrapassar a tela, usando novos materiais:

“Ainda assim, o que é interessante a esse respeito é a nova beleza encontrada nas obras de arte e arquitetura do passado que mudaram de aparência devido à passagem do tempo ou destruição causada por desastres no decorrer dos séculos.Isto é descrito como a beleza da decadência, mas não seria talvez a beleza que o material assume quando se liberta da feitura artificial e revela as suas características originais?”


A questão da autonomia da obra

Desde o dadaísmo, existiu uma corrente subterrânea de negação da forma na arte moderna. No começo, se tratava de uma tentativa de abolir a separação entre a arte e a vida, dentro do espírito utópico e revolucionário de algumas vanguardas.

Motherwell, Elegia à República Espanhola n. 110
Com o expressionismo abstrato e a abstração informal, desaparece a estrutura formal do quadro, que ainda existia na geração anterior de abstracionistas. Se torna, então, impossível dizer que uma pintura está “completa”. O processo de pintar passa a ser mais importante que as obras. Como perguntou o expressionista abstrato Robert Motherwell: “como saber quando uma obra está terminada?”.

O passo seguinte foi abolir a própria pintura. Já no pós-modernismo propriamente dito, a própria ideia de obra é que é abolida, agora com a perspectiva de não mais criar objetos que possam assimilados pelo mercado da arte.

Como toda utopia, a ideia de transformar a vida em obra de arte ignorava as condições sociais que faziam das obras de arte mercadorias (necessidade do metabolismo com a natureza através do trabalho, divisão entre trabalho manual e intelectual, indústria cultural etc). Então, esse impulso utópico ou se transformava num desafio estéril (situacionistas, Lygia Clark, Fluxus etc) ou era assimilado por um mercado de arte que não conseguia compreender e, portanto, não saberia como combater (arte conceitual, arte povera, arte da terra, body art etc).


Quem diz autonomia diz separação, até mesmo separatismo, como foi constatado em vários movimentos revolucionários, desde movimentos de libertação nacional até feministas, passando por coletivos artísticos. Sem a manutenção de uma esfera própria da arte, delimitada e com um processo de produção específico, é impossível sequer mostrar como é o mundo, quanto mais mudá-lo. Por isso, a dissolução formal na pintura abstrata foi o passo que permitiu a produção de quadros quase em escala comercial, o que foi um dos passos para a sua banalização e dilução artística. 

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