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o homem do balaio


Meus agradecimentos ao Max, que ajudou muito com algumas partes do conto!



O Homem do Balaio


- Zezinho, pare de arruaça! o homem do balaio vai levar tu e tua irmã!

Mas, dessa vez, Josefa não ouviu as manhas de Zezinho, e sim o choro soluçante da Mariazinha.

Ela foi correndo até o quintal, mas já não existia nenhum rastro do menino. O pregão do homem do balaio estava cada vez mais distante, "Verduras! Verduras! Menino, vem cá e chama a tua mãe!". estranhamente gritado num tom de tristeza.

Olhou pro caminho poeirento, não conseguiu pensar em nada e saiu atrás dele, matador de criança! na verdade, ninguém acreditava muito nas histórias sobre o homem do balaio, mas nada como o desespero para redespertar o ódio já sem motivo.

As pessoas da vila começaram a se mexer, a falar alto, com raiva, a procurar por todos os cantos. Quando chegaram na casa do homem do balaio, estava tudo revirado, indicando uma fuga às pressas. Mas pra onde?

Josefa não sabia o que fazer pra consolar Mariazinha, que tinha tentado explicar na sua linguagem de criança de dois anos que o homem tinha jogado um puçá e arrastado o seu irmão pra dentro do balaio, e que tudo tinha sido muito rápido. Ele não tinha encostado em um fio de cabelo de Mariazinha.

Depois de tentar, sem conseguir, se controlar, Josefa começou a planejar uma busca pela serra próxima, onde o homem poderia estar se escondendo.


II.

Zezinho tinha desmaiado com algum cheiro forte dentro daquele balaio. Quando acordou, estava preso numa gaiola de ouro, enrolado numa coberta limpa, com um travesseiro confortável. Como se a intenção não fosse fazer mal a ele.

Olhando desconfiado, fingindo que estava dormindo, Zezinho viu que a luz que iluminava o ouro da gaiola vinha de uma única abertura de forma irregular, bem no alto. E um vulto de uma pessoa estava entrando por aquela abertura, em silêncio. Paralisado de medo, Zezinho não conseguiu imaginar um plano de fuga.


III.

Biu estava na parte de fora da gruta, tentando terminar uma ladainha a Nossa Senhora, pouco depois de trocar duas palavras com Cícero, que tinha acabado de entrar.

Acima de tudo era o medo de morrer. Quando a sua pele, já pálida, assumia um tom amarelo quase fosforescente, e a barriga inchava, cheia de dores, Biu fazia o necessário para continuar vivo. Ele pegava o seu balaio, que nos outros dias era pra levar legumes, embebia com o clorofórmio que tinha sido comprado com o turco, e buscava uma criança maiorzinha.

Mesmo fazer isso uma vez a cada dois ou três anos já era o suficiente pra soterrar alguém de culpa. Não por acaso, o Biu era o maior doador da igreja, e o mais presente nas novenas e quermesses. Mas era muito difícil não desconfiar daquela figura taciturna, que tinha vindo morar em Queimada poucos meses antes de desaparecer uma criança.

Como ninguém tinha certeza, não incomodavam a ele.


IV.

Mas dessa vez tinha sido diferente.

Biu começou a ouvir o rumor no meio do mato, na hora em que as suas mãos nodosas de unhas compridas e tortas estavam amolando uma faca. Ele deu o alerta para Cícero, que tinha acabado de sedar o Zezinho e estava arrumando a mesa.

Josefa estava gritando o nome do filho, não ia perder o segundo pra esse covarde. Desde que o filho da Maria do Carmo tinha desaparecido, ela tinha falado, aos poucos, com todos os pais, levantando suspeita sobre o Biu. Agora estava à frente de umas quinze pessoas embrenhadas no mato, naquele frio, perto da meia-noite.

- Vai morrer, Papa-Figo! Vai morrer, Papa-Figo! - e era a voz de Josefa que incitava as dos outros.

Cícero pulou pela entrada da gruta, e chegou a ser pego pela primeira saraivada de pedras quando a Lua iluminou a sua cara e suas orelhas compridas; Biu procurou se esconder num latão de água vazio que ficava no extenso quintal onde plantava as suas verduras.

Quando cercaram o Cícero, Josefa logo se destacou do grupo, pegou um lampião e começou a arranhar as pernas naquela entrada estreita, escura e parece que cheia de bichos. Zezinho gritava lá dentro, mainha mainha! Foi um alívio saber que ele estava vivo!

A gruta era de pedra nua, as únicas coisas que indicavam a presença humana eram a gaiola de ouro e uma mesa que tinha sido colocada lá dentro não se sabe como, com várias garrafas de bebidas estranhas e instrumentos cortantes ao lado.


V.

Quando pegaram o Cícero, não foi só ódio, a aparência dele deu medo e pena. Não só abatido pela sua estranha doença, mas também pela certeza da morte. Talvez por isso, não maltratam muito ele, deram um tiro na nuca com a espingarda do Pedro Paulo. Quem pudesse enxergar naquele escuro, veria talvez uma calma no semblante dele, como se a bala fosse um destino melhor do que ver o próprio corpo em convulsões, encharcado de bile e pus.

Josefa já estava abraçada com Zezinho, tentando estancar a ferida da primeira facada, que ainda chegou a ser dada. Parecia que o susto tinha sido maior do que o dano do corte em si, e o menino deu graças a Deus por ter uma mãe tão corajosa, ainda chorando.

Destruíram todas as garrafas e tentaram dar um jeito daqueles fações, bisturis, serrinhas e agulhas não caírem nas mãos de ninguém perigoso.


VI.

Mas ninguém ainda tinha achado o Biu.

Biu estava rezando dentro do latão, pedindo perdão por todo o seu grande pecado original. Na cabeça dele passava o filme dos leitos de morte de vários parentes, com o corpo deformado. Ele sabia que a morte era certa, tinha pelo menos o consolo de nunca mais precisar beber o sangue daquelas crianças, e nem precisar comer aquele fígado cru, uma peça gordurosa de gosto amargo insuportável, ainda mais depois de ser arrancada de uma pessoa viva.

Ouvindo o barulho da multidão se aproximando cada vez mais, logo depois do estampido que tinha tirado o seu irmão desse mundo, Biu pediu pela última vez a intercessão de Nossa Senhora da Boa Morte, "Mãe dos agonizantes, não nos desampareis na hora da nossa morte, mas alcançai-nos uma dor perfeita, uma contrição sincera, a remissão dos nossos pecados, uma digna recepção do Santíssimo Viático, a fortaleza, do Sacramento da Unção dos enfermos" - e quis morrer em forma de sacrifício.

Josefa já estava descendo a serra, o turco Osman já estava de sobreaviso, na ausência de um médico na cidade era ele, por ser mascate, que conhecia mais ou menos os remédios e tratamentos para os casos mais comuns. Mas aquele caso do Zezinho de comum não tinha nada.

Junto com ela foram mais alguns, os seus parentes, dando proteção e ajudando com o menino. De modo que uns cinco ou seis continuaram vasculhando a gruta em busca do Papa-Figo, sob o comando do praça Adamastor.

Foi então que eles viram a corrida espetacular do Biu, fazendo mais do que se entregar, ele começou a cavoucar com as mãos a terra da horta. Antes de três tiros torarem a cabeça dele, ele já tinha conseguido arrancar do chão uma parte do braço de uma criança, ainda com pedaços de carne em volta do osso.

Depois de escavarem, em prantos, no dia seguinte, encontraram sete crianças naquela horta de onde todos eles compravam cheiro-verde, alface, couve, repolho e couve-flor.


VII.

Padre Fabiano quis que Cícero e Biu tivessem enterro cristão, afinal eles mataram por necessidade. Mas eles não tiveram.

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