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O formato do universo


Muito obrigado ao Iruatã e ao Rodrigo, que me ajudaram com a parte de física!


I.

Eu sempre tento escrever sobre o meu pai. Não adianta contar tudo (isso é impossível), eu quero falar das duas coisas que eu acho marcantes que eu aprendi com ele.

As histórias de quando ele era pequeno, na Paraíba, eram as melhores.

A vez em que ele acordou, com uma Lua cheia gigante, tão grande que ele pensou que era o Sol, foi pescar na lagoa e teve que se esconder do pouso de um disco voador e da dança ritual de índios fantasmas.

A minha pobre tataravó, que foi raptada por um gigante que morava na Pedra do Soldado e ficou presa numa gaiola de ouro.

O terrível Papa-Figo, que sequestrava as crianças para comer o fígado, o que era a única cura para a sua estranha doença.

A Comadre Florzinha, que trançava a crina do cavalo dele e azedava o leite, e a vez em que a égua dele foi engravidada por um cavalo prehistórico e deu à um luz um cavalo azul nascido morto.

Quando eu tinha nove anos, e ele chegou com uma fita K-7 pirata do álbum Há Dez Mil Anos, do Raul Seixas. Eu ainda não parei de ouvir esse disco (e toda a obra do Raul), principalmente Canto para a Minha Morte. O brega metafísico e revolucionário do Raulzito é uma das fontes e partes constituintes da minha visão de mundo desde então (a nossa música é essa).

Eu me lembro numa noite de domingo ele me chamando pra ver uma reportagem especial do Fantástico sobre ufologia, e que eu não consegui dormir direito, porque apareceu uma reprodução artística de um relato de abdução em que a pessoa era arrancada da cama por um raio e puxada pra dentro do disco voador.

Depois, eu lembro dele me mostrando um livro de parapsicologia, coisa que certamente não aconteceu, porque ele não tinha esse livro.

O que me importa é que aquela noite de insônia, como muitas que viriam depois, mudou a minha forma de ver o mundo. Eu passei a imaginar distâncias interestelares, seres de outras galáxias, naves mais rápidas que a luz. Tudo avançando pro futuro.

Mal eu sabia que o Universo ainda é maior do que o do mundo mitológico da ufologia.

Eu queria escrever sobre esse tema, tanto pra falar do futuro sombrio que a energia escura promete, como pra falar da image d’Épinal/ferrorama cósmico do criacionismo. Eu reli algumas coisas, só agora entendi outras, é tudo muito maior e mais lindo.


II.

Infelizmente, parece que não vivemos no universo de Giordano Bruno, com mundo infinitos habitados. Parece que existem limites sim no universo, mesmo que eles sejam inimagináveis diante da escala de tempo e espaço em que vivemos.

Não cabe, aqui, tentar explicar todo o percurso da cosmologia, o que é feito de forma bem didática aqui e aqui.

Só recapitulando os pontos mais importantes, em 1929, o astrônomo Edwin Hubble descobriu que existia uma desvio para o vermelho na luz das galáxias distantes e que, quanto mais distante, maior era o desvio. Esse desvio indica que essas galáxias estão se afastando de nós, ou melhor, que todas as galáxias estão se afastando entre si. Pra usar uma analogia famosa, o desvio para o vermelho é semelhante à mudança do som de uma sirene quando uma ambulância se afasta.

Se elas estão se afastando, a simples extrapolação levava a imaginar que um dia elas estiveram bem mais próximas. Aplicando a teoria da relatividade a essa massa cada vez mais concentrada, a partir de determinado ponto, acontecia uma singularidade, ou seja, a massa e a temperatura eram infinitas e o tamanho era zero. Essa singularidade passou a ser conhecida como Big Bang (Grande Explosão), e a partir dela teria surgido o nosso espaço-tempo. Ou seja, a explosão não aconteceu em um lugar específico, ela foi o começo do espaco, que foi se expandindo até chegar ao tamanho do universo atual.

O modelo do Big Bang também previa que um dos resíduos dessa explosão seria uma radiação cósmica de fundo. Em 1964, os físicos Arno Penzias e Robert Wilson conseguiram detectar a radiação cósmica de fundo. Em poucos anos, o big bang desbancou a teoria que era a sua principal concorrente, a do universo estacionário e, hoje em dia, a grande maioria dos debates em cosmologia pressupõe, em alguma medida, o modelo do big bang.

Mas o modelo do big bang não era suficiente, naquele momento, para dar uma resposta sobre o destino do universo. Existiam duas possibilidades: ou a força da expansão seria mais forte que a gravidade, e então o universo ia se expandir infinitamente, ou a gravidade seria mais forte, o que levaria o universo a se contrair de novo a partir de um certo ponto e, talvez, voltar a se expandir, ciclicamente.


A resposta para isso começou a aparecer no final da década de 1970, com a teoria da inflação cósmica, de Alan Guth. A teoria da inflação foi adotada porque resolvia o problema da grande homogeneidade da distribuição de matéria no universo (isotropia), propondo a existência de um período de expansão acelerada do espaço-tempo no começo, tão acelerada que, mesmo o universo tendo mais ou menos 13,8 bilhões de anos, o raio dele é de mais de 45 bilhões de anos-luz. Como nada pode se mover mais rápido que a luz, isso se explica pela expansão do próprio espaço.




A partir dos anos 1990, começou a ser observado que a expansão do universo não estava sendo "freada" pela gravidade, e sim ao contrário, ele está sendo expandindo cada vez mais rápido. Dados recolhidos pela sonda WMAP (Wilkinson Microwave Anisotropy Probe, Sonda de Anisotropia de Microondas Wilkinson), em 2003, apontam para um universo em que a matéria não tem densidade suficiente para frear a expansão acelerada.

A explicação mais aceita para a aceleração é a existência de uma tensão negativa, uma força contrária à gravidade, distribuída de forma homogênea por todo o universo, que foi chamada de energia escura, apesar de não ser exatamente uma energia. Isso é importante, porque essa expansão acelerada dá uma perspectiva bem triste para o futuro do universo.

Bem, a notícia ruim é que o universo pode durar um tempo inconcebível para a nossa imaginação, mas sem nada do que a gente conhece da forma atual dele. Em vez disso, matéria degenerada, fótons esparsos e, no final, apenas flutuações de energia do vácuo.

Fred Adams e Gregory Laughlin escreveram, em 1999, um livro de divulgação científica, The Five Ages of Universe. Depois da Era Primordial, logo após o big bang, e da nossa era atua, a estelífera, eles falam de três eras

- Era Degenerada, a partir de cerca de 10 elevado a 15 anos (1 quatrilhão) em que a maior parte da matéria estará presente nas estrelas de nêutrons, anãs brancas e buracos negros

- Era dos Buracos Negros, a partir de 10 elevado a 40 anos (dez bilhões de quatrilhões de quatrilhões) em que eles vão conter toda a matéria, e evaporar lentamente devido ao efeito quântico descoberto pelo Stephen Hawking

- Era Escura, depois de 10 elevado a 100 anos (dez bilhões de quatrilhões de quatrilhões de quatrilhões de quatrilhões de quatrilhões de quatrilhões), quando os buracos negros tiverem evaporado, e apenas neutrinos e fótons vão existir.


Tudo nesse campo é muito especulativo ainda, e não está descartada a possibilidade de que alterações na ação da energia escura ou flutuações do vácuo nos últimos estágios da expansão possam levar a novos big bangs ou a novas fases de contração, ou seja, a um universo cíclico.

Essa é, por exemplo, a posição do Mário Novello. Partindo de uma tentativa de eliminar a singularidade inicial, com toda a irracionalidade e imprevisibilidade que ela implica, ele e os outros físicos dessa corrente chegam a um modelo de universo cíclico, que se expande e depois se contrai a um tamanho muito pequeno (mas sem nunca chegar a zero). Nesse modelo, os vestígios do ciclo anterior ao big bang atual poderiam ser detectados nas irregularidades da estrutura em larga escala do universo.

Não deixa de ser uma visão bem menos desesperadora do que a da Era Escura, mesmo que seja bem entediante.


III,

Mas nada disso existe debaixo da abóbada celeste de boa parte da humanidade.

Imagine você sentado no trem.

"Senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro universo", disse Álvaro de Campos sobre o seu mestre Alberto Caeiro.

Um dia eu tava lendo a Bíblia (não foi quando eu tava lendo o Alcorão, e as pessoas deixavam o lugar do meu lado ficar vazio), eu ficava constrangido, porque todo mundo me cumprimentava com "a paz do Senhor", uma coisa estranha, eu deveria ficar constrangido se eu tentasse me passar por evangélico sem ser, e não por ser mal-interpretado e acharem que eu era.

O que eu acho interessante aqui não é a divergência religiosa, e sim a cósmica. Duas pessoas sentadas do lado no trem acreditam que vivem em universos completamente diferentes.

O universo criacionista é uma caixinha de música.

Um universo aristotélico, em que tudo tem o seu lugar, inclusive na sociedade, a começar pelos homens e mulheres. Com seis mil anos de humanidade, que pode ser mapeada pelas genealogias. Esse limite de tempo não é tão rígido, por exemplo as testemunhas de Jeová aceitam as escalas de bilhões de anos para a criação da natureza, mesmo mantendo que Adão viveu mais ou menos em 4.000 AC. O mais bonito é o que os adventistas fazem, aceitam os seis dias do Gênesis ao pé da letra.

Um mundo tão jovem não combinaria com estrelas de bilhões de anos. Então, entre os criacionistas, existem várias tentativas de conciliar o universo inteiro com a escala bíblica, que parecia inacreditável, mas hoje sabemos que é tão pequena. Ou seja, tentativas de podar o universo e enquadrá-lo dentro da tradição.

Existe uma gradação, desde os que tentam usar efeitos relativísticos pra justificar o tamanho do universo dentro do prazo de seis mil anos, até as soluções cada vez mais assombrosas que, no limite, restauram a Terra no centro do universo.

Assim, uma das teses da pseudoastronomia criacionista foi o decaimento de c, ou seja, da velocidade da luz! Melhor ainda, o decaimento foi calculado sob medida pra recuar até a criação de Adão, e parar na década de 1960, evitando assim o constrangimento dele não ser mais observado... Com a velocidade da luz muito maior no passado, a luz das galáxias distantes poderia ter chegado, mesmo com a Terra sendo tão nova.

Até então, são tapaburacos criacionistas para as dificuldades causadas pelo Big Bang. Mas por que se queimar pra isso, se você pode chutar logo o balde e dizer que o Sol gira em torno da Terra, como está escrito em Josué 10:12-14?!

A corrente criacionista mais radical, portanto, tenta restaurar o modelo bíblico na sua forma original, usando argumentos da ciência moderna. Isso é chamado de geocentricidade, e começou entre os batistas fundamentalistas, mas está crescendo entre os católicos integristas também agora.

Segundo a geocentricidade, a experiência de Michelson-Morley, em 1887, que mostrou que a velocidade da luz é invariável (e que, por isso, foi uma das bases da teoria da relatividade de Einstein), ao medir a velocidade da luz tanto na direção da translação da Terra como na direção contrária, na verdade provou que a Terra é imóvel.

Eles completam esse modelo da Terra imóvel com o sistema solar de Tycho Brahe, ou seja, os outros planetas girando em torno do Sol e o Sol e a Lua em torno da Terra.  Em volta de tudo isso, o firmamento, interpretando literalmente a expressão do Gênesis, uma abóbada celeste onde as estrelas estariam presas, isso com direito a especulações sobre o estado físico do firmamento.

(repare que eu não citei os autores, pra não bater palma pra maluco dançar)

E pense só que esse universo cristão tradicional é imenso perto dos universos cíclicos das sociedades principalmente agrícolas, o autorama perfeito, em que tudo se repete e literalmente a poucos quilômetros está o fim do mundo.

Inclusive muitos povos imaginavam o mundo dos mortos simplesmente como um longar bem longe ou, mais conhecido da gente, literalmente alguns quilômetros debaixo da terra.

***

Sei lá, falei disso porque eu acho que essa que é a grande divergência de visão de mundo.

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