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Em defesa do Renato Russo, contra seus fãs e seus detratores


O objetivo dessa postagem é preservar a minha paciência, que será agredida constantemente durante o mês por causa dos novos filmes sobre a vida e a obra do Renato Russo (Somos Tão Jovens e Faroeste Caboclo). 

Como todo mundo sabe, eu e a Mari vamos ver todos os filmes, e eu vou chorar lágrimas de sangue e sair desidratado e carregado do cinema. 

Quando eu ouvir ou a ladainha dos haters (ou pior, dos que preferem Morrissey do que o Renato Russo, sendo que o Renato Russo era melhor letrista e o som do The Smiths também era sofrível) ou as pessoas que vão ao extremo do fanatismo e chegam até a dizer que Legião Urbana é banda de rock, eu vou simplesmente postar o link e desligar o computador, não sendo necessário nem debater nem jogar o notebook na parede.

Se alguém achar que é indireta, transformo em direta e digo que as fontes imediatas da postagem são a Maria Gabriela e o Luther Blisset.


Pra evitar tempo perdido, vou logo esclarecendo alguns fatos que não podem ser discutidos.

- O Legião Urbana era uma banda muito ruim (qualquer banda de igreja com três meses de ensaio toca mais que eles), o próprio Renato nem cantava bem assim, portanto não vou defender o indefensável.

- É coisa de adolescente? Sim, em parte, mas tem uma universalidade que vai além disso, como vou tentar 
demonstrar depois. 

- É pão com fanta? Também, mas isso pode ou não ser um defeito. Alguma coisa do Manuel Bandeira e quase tudo do Mário Quintana é pão com fanta, mas mesmo assim muito boa. 

- Finalmente: o Renato Russo é um grande escritor? Sim! Mas, e esse é o meu argumento fundamental, é um grande escritor popular. Não vá esperar ouvir Eu Sei e confundir com o Baudelaire. Mas ele tem os seus próprios méritos, do mesmo jeito que a gente pode ouvir uma boa banda de hardcore, tipo o Mukeka di Rato, e gostar, em vez de se lamentar porque eles não sabem trabalhar com orquestração.


Bem, como todo mundo que acompanha esse blog (sim, existem essas pessoas) sabe, eu concordo com a singela tese do Lukács, segundo a qual o objeto e as categorias da arte são as mesmas da ciência, porque ambas refletem a mesma realidade social:


A ideia geral de que o reflexo científico e o reflexo estético refletem a mesma realidade objetiva situa-se na base de toda a obra. Isso implica necessariamente em que devem ser os mesmo não só os conteúdos refletidos, mas as próprias categorias que os formam. A especificidade dos diversos modos de reflexo só se pode manifestar, por conseguinte, no interior dessa identidade geral: em uma escolha específica entre a infinidade dos conteúdos possíveis numa acentuação específica e numa reorganização específica das categorias a cada passo decisivas. 
(Introdução a uma Estética Marxista)

A partir desse ponto de vista, a obra é tanto mais importante quanto mais, em sua forma e conteúdo, revela a sociedade encoberta pela ideologia dominante, inclusive tomando partido diante da realidade. Isso é o que se chama de realismo crítico.

Não se trata simplesmente de uma escolha pessoal, é a única forma de interpretar o significado de uma obra sem cair no formalismo vazio na moda ou na comparação, também formalista e vazia, com determinados "estilos de época" definidos abstratamente por alguns traços estéticos escolhidos a esmo.

Isso já evita um tema que tem aparecido em algumas monografias por aí, sobre o "romantismo" das letras do Renato Russo. Até onde eu sei, os únicos que tentaram fazer uma análise marxista da obra dele foram os jovens maoístas do MEPR, em dois artigos curtos, um sobre a música La Maison Dieu e outro tentando fazer um balanço da obra dele, Os Bons Morrem Jovens.

Só por isso, o MEPR já tem muito mérito. Então, toda a crítica que eu vou fazer está dentro de uma visão geral positiva do que eles estão falando.



"Infelizmente, as nossas músicas continuam atuais"

O MEPR está certo quando mostra que o motivo da Legião ter as suas músicas decoradas e tocadas até hoje, mesmo sem estar no rádio, é porque a banda tratou das contradições sociais, na época da "democratização" (ou seja, da abertura feita por cima, pela própria ditadura, depois da derrota das Diretas Já), que a sociedade brasileira ainda não resolveu.

Se eu não me engano, eu vi o Dado Villa-Lobos dizendo numa entrevista na Multishow mais ou menos assim: "Infelizmente, as nossas músicas continuam atuais". Como diz o MEPR:


Mesmo passados dezesseis anos da morte de Renato Russo, e da conseqüente dissolução da Legião Urbana, esta segue sendo um fenômeno de venda de discos e reprodução das suas canções. Consegue, o que é algo bastante raro, renovar o seu público, não a um círculo restrito, de pessoas que estudam música, mas massivamente. O gosto pela banda se transmite de pais para filhos. A potência das suas canções, a sua permanência entre o público, mesmo sem ter sido jamais uma banda que apelasse para os monopólios de comunicação, mesmo quando estava no auge, reside justamente no conteúdo do que se diz, na atualidade das suas letras, retratando com senso crítico o dia-a-dia, os conflitos cotidianos sobretudo da juventude das grandes cidades brasileiras –trata-se realmente de uma música essencialmente “urbana”.

O problema da análise tem a ver com a linha programática do MEPR, algumas questões que são evidentes na música do Renato Russo são subestimadas ou simplesmente não aparecem. Por isso, acaba acontecendo uma valorização das músicas, mas bem unilateral, sem levar em conta toda a riqueza delas. Como eles mesmos dizem:


Sempre que falam de Renato Russo tratam de forma preconceituosa, colocando no centro de tudo sua orientação sexual. O que houve de mais essencial em sua vida foi seu espírito rebelde, que procurou transmitir em suas canções, e o fez de forma bem poética.

 - contrapondo a sua orientação sexual às questões sociais de que ele falava.

É isso que eu vou tentar mostrar agora, com esses exemplos. 



A particularidade como síntese entre o pessoal e o político

O melhor exemplo é a música que eles escolheram para homenagear e, ao mesmo tempo, falar sobre a ditadura. Sim, Maison Dieu (Hospital, em francês) é uma referência às casas de tortura da época. Mas não é só isso: a grande coisa da letra é a condensação entre a sensação de perseguição política e a sensação onipresente de ser ameaçado vivida por quem é homossexual. É óbvio que a música também é sobre a AIDS (de que ele estava morrendo, ou melhor, se suicidando, na época), a invisibilidade, e que tudo isso se entrelaça no clima deprimente e paranoico da música. Por exemplo:


Eu sou a tua morte
Vim lhe visitar como amigo
Devemos flertar com o perigo
Seguir nossos instintos primitivos 

A mesma coisa acontece em Clarisse. Não é só uma menina de 14 anos se cortando no banheiro, é todo um cotidiano de massacre das crianças e mulheres.

De quando em quando é um novo tratamento
Mas o mundo continua sempre o mesmo
O medo de voltar pra casa à noite
Os homens que se esfregam nojentos
No caminho de ida e volta da escola
A falta de esperança e o tormento
De saber que nada é justo e pouco é certo
E que estamos destruindo o futuro
E que a maldade anda sempre aqui por perto
A violência e a injustiça que existe
Contra todas as meninas e mulheres
Um mundo onde a verdade é o avesso
E a alegria já não tem mais endereço

Eu lembro que gostava de cantar essa música no chuveiro nos meus tenros 16 anos, o que mostra como eu era uma pessoa de bem com a vida...

Essa síntese, se eu não me engano quem falou isso foi o Arthur Dapiève, atingiu a sua forma mais perfeita no épico Faroeste Caboclo, que merece virar um filmaço. Épico não pela gíria idiota de hoje, mas sim porque ele consegue criar um personagem, o João de Santo Cristo que, na linha do Narrar ou Descrever? do Lukács, incorpora nos lances de sua vida (cheia de referências bíblicas, até a via-crúcis virar circo) todo o cenário social que um escritor menor descreveria: o racismo, a vida no interior, a trajetória de candango nas cidades satélites, a pressão da criminalidade, as relações amorosas dentro desse contexto de violência, a mídia sensacionalista, tudo tudo.Qualquer dos 159 versos da canção é uma explosiva crítica social na história de vida de um personagem.

Esse é o procedimento principal do Renato Russo quando ele escreve: enquadrar os temas "sociais" (ou que seriam sociais numa banda punk) dentro da subjetividade dos seus personagens, sempre trabalhadores anônimos de alguma periferia do Brasil.


Quem inventou o amor?

Outro ponto cego do MEPR, pelo fato da organização não fazer uma crítica da vida cotidiana, é que eles não conseguem ver como as músicas de amor do Legião se interligam dialeticamente com as "de protesto". O Marcuse, lá no Contrarrevolução e Revolta, fala que a dessublimação repressiva (ou seja, a descarga da tensão sexual usada como instrumento pra ligar as pessoas mais ainda à sociedade administrada, no melhor estilo Carnaval da Bahia) transformou as relações de amor numa forma de resistência contra a padronização da sociedade, uma maneira de garantir a individualidade, como em Vamos Fazer um Filme?

Outra legal é Eduardo e Mônica, ao mesmo tempo uma história bobinha e uma crônica da juventude brasiliense da época. Mas uma coisa interessante é que, além disso, o Renato Russo foi o primeiro cara na MPB a criar um repertório de amor homossexual, com versos lindíssimos, de que eu vou fala mais adiante. Impossível não transcrever as metáforas de Daniel na Cova dos Leões sobre sexo homossexual, no boquete mais lindo da literatura brasileira, junto com a ansiedade (que o João Silvério Trevisan diz que é atávica e vem do inconsciente coletivo) de viver numa sociedade onde existe a heterossexualidade compulsória (Monique Wittig):

Aquele gosto amargo do teu corpo
Ficou na minha boca por mais tempo.
De amargo, então salgado ficou doce,
Assim que o teu cheiro forte e lento
Fez casa nos meus braços e ainda leve,
Forte, cego e tenso, fez saber
Que ainda era muito e muito pouco.
Faço nosso o meu segredo mais sincero
E desafio o instinto dissonante.
A insegurança não me ataca quando erro
E o teu momento passa a ser o meu instante.
E o teu medo de ter medo de ter medo
Não faz da minha força confusão.
Teu corpo é meu espelho e em ti navego
E eu sei que a tua correnteza não tem direção.

Também não podemos esquecer, na mesma linha, de Meninos e Meninas (que é bem fraquinha, mas que pautou a bissexualidade, que muitas vezes é discriminada mesmo dentro do movimento homossexual - bifobia -, com muita gente resolvendo legislar sobre a realidade e dizer que ela não existe), Leila e outras.


Sei que às vezes uso palavras repetidas

Mas é com Andrea Doria, Giz, Quase sem Querer e Eu Sei, que estão entre as mais belas poesias em português, que o Renato Russo prova que, além de "antena da raça" (Pound), também é um bom escritor. Mais uma coisa que uma simples análise conteudísta não consegue perceber.

Antes disso, ele já teve a coragem de romper com a estética enlatada das FMs, escrevendo música sem refrão, às vezes bem mais longas que os famosos três minutos usados convencionalmente, com temas e linguagem bem mais complexos do que seria possível pra ter uma comunicação imediata. Como os companheiros do MEPR dizem muito bem, ele não aceitou as regras da música comercial.

A forma da letras dele é a da canção popular, mesmo que bem balançada pela modernidade - e ele é um dos mais modernos da geração 80, sempre recorrendo à form without shape de que o Eliot falou. Por isso, ele não podia chegar aos extremos do radicalismo formal da poesia marginal da geração 70, irmã gêmea da estética do Renato Russo, aqueles poemas com as formas desconstruídas do Leminski, Chacal, Ana Cristina César e tal. Isso tem que ser levado em conta, senão seria o mesmo que exigiu que um rapper não rimasse.

Mas, sinceramente, olha isso:

Desenho toda a calçada
Acaba o giz, tem tijolo de construção
Eu rabisco o sol que a chuva apagou

Ou isso

Faríamos floresta do deserto
E diamantes de pedaços
De vidro...
Mas percebo agora
Que o teu sorriso
Vem diferente
Quase parecendo te ferir...

Ou esses versos, que eu acho os melhores dele, ele errando a rima e desmontando/remontado a poesia, pura metalinguagem

Tão correto e tão bonito
O infinito é realmente
Um dos deuses mais lindos!
Sei que, às vezes, uso
Palavras repetidas,
Mas quais são as palavras
Que nunca são ditas?

São vários.


Teatro dos Vampiros

Uma grande virada que acontece com o Legião, e que tem a ver não só com a AIDS e a depressão do Renato Russo, mas com a situação internacional insuportável depois de 1989, a destruição da União Soviética, a ladainha de "o comunismo morreu", "não há alternativas", aquela época desgraçada em que eu cresci, pra só saber as consequências mais velho, foi uma "retirada" pra temas mais intimistas, mas longe daquele "Intimismo à sombra do poder" (Carlos Nelson Coutinho), estilo Clarice Lispector, Fernando Pessoa ortônimo, Rilke etc, mas um intimismo inconformado, como veremos.

Essa virada começa com As Quatro Estações, desencantado desde a primeira faixa, Há Tempos:

Muitos temores nascem
Do cansaço e da solidão
Descompasso, desperdício
Herdeiros são agora
Da virtude que perdemos...
Há tempos tive um sonho
Não me lembro, não me lembro (...)
Os sonhos vêm e os sonhos vão
E o resto é imperfeito...
Dissestes que se tua voz
Tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira...

Essa é a minha música preferida do Legião. No mesmo disco, o terceto de Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto:

Até bem pouco tempo atrás,
Poderíamos mudar o mundo,
Quem roubou nossa coragem?

É justamente o retrato da sociedade sem alternativas. Essa virada também aparece no Teatro dos Vampiros, em que a regressão neoliberal é quase o tema da música:

Vamos sair, mas não temos mais dinheiro
Os meus amigos todos estão procurando emprego
Voltamos a viver como há dez anos atrás
E a cada hora que passa
Envelhecemos dez semanas.

Mesmo nessa fase não tão criativa, existem muitas músicas boas, inclusive com temas sociais mais claros (Perfeição, Música de Trabalho, O Senhor da Guerra etc). Mas a tragédia pessoal do Renato Russo e a tragédia social do neoliberalismo triunfante foram derrubando aos poucos o escritor, os temas melancólicos e as sugestões de suicídio passaram a pesar cada vez mais nos discos... Afinal

Eu sou um pássaro
Me trancam na gaiola
E esperam que eu cante como antes

Conclusão

Como o Marx não entendia de estética, ele pôde falar essa bobagem:

Os Gregos eram as crianças normais. O encanto que encontramos nas suas obras de arte não é contrariado pelo débil desenvolvimento da sociedade em que floresceram. Pelo contrário, é uma consequência disso; é inseparável das condições de imaturidade social em que essa arte nasceu - em que só poderia ter nascido - e que nunca mais se repetirão.

O Castoriadis teve razão de criticar esse absurdo - como se as tragédias gregas fossem infantis. Essa frase só pode ser verdade se for interpretada psicanaliticamente, ou seja, ao atribuirmos a imortalidade da arte grega ao fato delas mostrarem as contradições presentes na nossa infância que, por isso, lhe dão a sua universalidade, mais ou menos como Freud interpretou o conteúdo de Édipo Rei

O que faz o Renato Russo ser ainda uma referência pra uma grande quantidade de jovens que nem tinham nascido quando ele morreu é isso: a permanência das contradições que ele desvelou com a sua arte, não só as abertamente "sociais", como também as que se refletem no plano pessoal. A arte dele soube transformar essas contradições em canções abertas, metafóricas, reflexivas, que você tem que pensar pra apreender o sentido, diferente de muita coisa ruim que se faz hoje (tipo as lições de moral do hip hop). Antes dele virar um escritor popular de valor histórico (que eu espero que vire), infelizmente, pra usar a expressão do Dado Villa-Lobos, ele vai continuar atual por muito tempo.
  

Força Sempre! 
Urbana Legio Omni Vincit

Comentários

J.L.Tejo disse…
Discordo de alguns pontos- os comentários sobre os Smiths e o suposto caráter não-rocker da Legião. Mas o próprio rock ninguém sabe mais muito bem o que é, como aquela anedota que o próprio Milton conta: perguntaram a determinado artista gringo qual o melhor artista de rock do Brasil e o sujeito responde, "Milton Nascimento", daí o interlocutor, "mas Milton não é rock", e o gringo, "você que pensa, você que não entende nada de rock" :)

Decididamente, é impossível cindir o aspecto pessoal do aspecto político da obra de alguém. Alguns anos atrás, quando a coletânea do Brecht via Editora 34 foi publicada, uma das resenhas que vi tinha o título "Política e amor". É isso! Imbricam-se.

Vejo isso, ou via, e como quer que seja sem necessariamente engajamento ou opção, antes, mais como uma constatação do POLÍTICO em nossas vidas, nos Engenheiros do Hawaii.

"A Líbia bombardeada,
a libido e o vírus
o poder e o pudor,
os lábios e o batom
(...)
há um muro de concreto,
entre nossos lábios
há um Muro de Berlim,
dentro de mim
tudo se divide, todos se separam
duas Alemanhas, duas Coreias
tudo se divide, todos se separam
(...)
"

E por aí vai. E essa é só um exemplo.

Será que o filme é bom? "Cazuza" foi legalzinho.

Abraços, Rodrigo. Urbana Legio Omnia Vincit.
Cara gostei bastante, embora não ache que a Legião seja uma banda pão com fanta. Há de se lembrar que a banda tornou-se mainstream, e logo, as letras precisaram se adaptar ao grande público.

Eu acho que bandas como Titãs (minha predileta nacional), Legião, Plebe Rude são fundamentais na politização do povo brasileiro. Embora o Titãs tenha adotado menos o tema política que as outras duas bandas.

Não sei como será o filme, talvez veja apenas o Faroeste Cabloco (temo que seja feita uma divinização do Renato),mas dependendo de sua opinião sobre o filme, irei ver.

Abraço marxista,


Willian A. Almeida