Pular para o conteúdo principal

Anotações sobre a Dialética Negativa, do Adorno


Por quê o Adorno?

O Adorno é um cara tão difícil que eu preciso escrever essa postagem pra os conceitos não desaparecerem assim que eu fechar o livro e devolver pra biblioteca do CCBB. Pra explicar pra mim mesmo, antes vou falar pra vocês o que me trouxe aqui.

Bem, eu tive algumas aulas sobre a Escola de Frankfurt lá no Pedro II. Mas eu só fui procurar mesmo saber deles quando eu comecei a entender do que eles tavam falando.

Bem, na constelação do pensamento marxista, o Adorno e o Althusser sempre foram os dois pólos na minha cabeça, inconciliáveis. Diferente do Gramsci e do Lukács que, mesmo com as suas respectivas diferenças filosóficas informando as suas teorias, acabavam formulando o que era uma estratégia alternativa para a tomada do poder nos países capitalistas avançados – uma tarefa até hoje fracassada, o Althusser e o Adorno viam centralmente uma falha filosófica na base desse fracasso. E eles foram, cada um pelo seu caminho, procurar reconstruir o marxismo à luz do seu fracasso

(o Althusser fez isso de forma disfarçada, como recurso pra sobreviver dentro do PCF, mas qualquer um que leia já o A Favor de Marx vê que aquilo ali é o que o Raymond Aron chamou, com razão, de "marxismo ventríloquo", que disfarçava uma problemática totalmente original, o que ficou cada vez mais claro, até a fase escancarada do materialismo aleatório).

Mas entre eles sempre existiu o conflito sobre Hegel. Eu achava, depois de ter lido o Razão e Revolução do Marcuse, sabendo do parentesco dos frankfurtianos com o Lukács da História e Consciência de Classe, que eles simplesmente levavam ao pé da letra a inversão materialista do Hegel, de que o Marx falou, fazendo do marxismo um hegelianismo consequente-materialista.

Mais ainda, eu achava que, depois do Dialética do Esclarecimento, o Adorno tinha entrado num caminho de negação completa da razão, assimilando todo o pensamento científico e filosófico à dominação sobre a natureza. Por isso, eu acreditei na abobrinha do Habermas, no Discurso Filosófico da Modernidade, falando do caráter performativo da dialética negativa que, ao mesmo tempo, negava o potencial emancipatório da razão e fazia isso usando todo o aparato conceitual da filosofia.

Mas esse livro do Adorno mudou tudo. A tal da dialética negativa mantém, de forma qualitativamente alterada, as categorias centrais da dialética marxista. É uma negação determinada da dialética do marxismo tradicional, que o Adorno viu como suspeita de se associar com a ideologia afirmativa que ela criticava, e não uma negação abstrata, total.

Pra mim, que não sou filósofo, o impulso fundamental que levou Adorno a procurar reconstruir a dialética foi o caráter totalitário que a dialética, desde Hegel, acaba reafirmando: "Com meios logicamente consistentes, ela se esforça por colocar no lugar do princípio de unidade e do domínio totalitário do conceito, supraordenado a ideia daquilo que estaria por fora do encanto de tal unidade". E, logicamente, totalitário aqui não é uma metáfora, é a memória real dos regimes totalitários que, para ele, foram o resultado da dialética do esclarecimento: a dominação da natureza se prolongando inevitavelmente na dominação do homem e da sua interioridade.

Depois de vários estudos concretos, indo da música atonal à literatura, da astrologia à personalidade autoritária, o objetivo do Adorno foi fazer o percurso de volta, explicitando o método que poderia orientar a apreensão do concreto, coisal, formal-científico,suprimido pela filosofia da identidade que tinha se conservado na dialética. Então, tendo em mente que uma dialética não é um método formal separado da materialidade do seu conteúdo, a dialética negativa começa fazendo uma crítica imanente da ontologia heideggeriana, e prossegue, ao reconstruir os seus conceitos fundamentais, fundamentando a filosofia moral (liberdade), filosofia da história (capítulo sobre o espírito do mundo) e metafísica.

 


Introdução: o que é a Dialética Negativa?

A introdução localiza a necessidade da dialética negativa e a sua posição na filosofia moderna, começando com um chega-pra-lá indispensável no marxismo transformado em ideologia:

"A filosofia, que um dia pareceu ultrapassada, mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização. O juízo sumário de que ela simplesmente interpretou o mundo e é ao mesmo tempo deformada em si pela resignação diante da realidade torna-se um derrotismo da razão depois que a transformação do mundo fracassa. (…) Talvez não tenha sido suficiente a interpretação que prometia a transição prática."

Diante da filosofia que se tornou especialidade acadêmica, a dialética se mantém como a representante dos objetos submetidos pelo sistema, " a dialética é consciência consequente da não-identidade". "A utopia do conhecimento seria abrir o não-conceitual através dos conceitos, sem equipará-lo a esses conceitos."



A totalidade da filosofia na verdade é a sociedade que se torna um todo através da lei da troca e que,

no capitalismo avançado se realiza, "por isso, a crítica filosófica da identidade ultrapassa a filosofia". O momento "especulativo", as leis abstratas, só podem ser negadas de forma empirista por uma filosofia que denegue a sociedade real: "para se purificar da suspeita de ideologia, agora é mais cômodo chamar Marx de metafísico do que inimigo de classe."

Uma coisa interessante, ele explica a forma literária da escrita de (e do Benjamin): "a necessidade de dar voz ao sofrimento é a condição de toda verdade (…) Isso pode ajudar a explicar porque para a filosofia a sua apresentação não é algo extrínseco, mas imanente à sua ideia. Seu momento expressivo integral, mimético-aconceitual, só é objetivado por meio da apresentação – da linguagem." Se a filosofia se resumir à linguagem, vira uma visão de mundo, se excluir totalmente a linguagem, é assimilada à ciência.

O pensamento dialético, se colocando a favor dos objetos contra o sistema, que foi defendido pelo idealismo desde Platão, mesmo assim não pode abrir mão do sistema, que é o seu heterogêneo, e o curso do mundo. Citando o Nietzsche, ele mostra que o sistema é uma sublimação da necessidade de submeter a natureza, e prolonga a dominação pra dentro do pensamento. Fazendo referência aos enciclopedistas, ele mostra como o conceito de enciclopédia exprime o espírito autocrítico da razão.

Existe uma certa autonomia da filosofia em relação aos objetos, marcando a sua separação em relação a eles. Ela faz isso "de fora", através de modelos, "a dialética negativa é um ensemble de análises de modelos", que são justamente os modelos que vão ser vistos na parte III (liberdade, espírito do mundo, metafísica. A negação do fundamento pela dialética lhe dá a sua vertigem, que é um index verii.

Quando o nominalismo, empirismo, relativismo e todas as figuras de pensamento usadas pelos pós-modernos acusam essa "independência" relativa do pensamento em relação aos objetos, isso é uma negação do próprio pensamento: "uma crítica corrosiva do relativismo é o paradigma de uma negação determinada", "O relativismo é um materialismo vulgar, o pensamento perturba o ganho"."Por mais que possa ter assumido ares progressivos, o momento reacionário sempre foi associado ao relativismo, já na sofística enquanto disponibilidade para os interesses mais fortes."

A versão adorniana da identidade entre o mediado e o imediato é o reconhecimento de que existe uma espontaneidade nos objetos que abre a brecha para que entre o pensamento sobre a não-verdade do todo que o submete. Mas, ao contrário do Hegel, ele recusa o sistema que parte dos objetos para depois submetê-los à identidade do saber absoluto, o que aprisiona a sua filosofia e a transforma em um sistema fechado.

E o pensamento exige um trabalho do conceito, que pressupõe uma formação e uma educação diferentes da tecnicista que é feita para as massas, daí o elitismo do Adorno (ironicamente recuperando o Lênin do Que Fazer?), que faz da inutilidade do pensamento puro para o sistema de dominação justamente a sua condição que o liberta pra crítica global do sistema. O papel nulo do indivíduo no idealismo permitiu que a ideologia do Leste distorcesse o pensamento dialético pra pervertê-lo na "sabedoria" das "massas", ou seja, do Partido, e o elitismo do Adorno tenta preservar o indivíduo contra a sua dissolução no sistema, mesmo que de uma forma muito perigosa (que terminou se revelando na história dele chamando a polícia para os estudantes, já que negava que fosse possível, nas condições em que vivia, que algum movimento de massas pudesse avançar num sentido emancipatório).

Se segue uma parte realmente muito interessante, que eu não teria como transcrever inteira, que é uma crítica pesada ao existencialismo, que absolutiza o momento da espontaneidade do indivíduo, e mostra como essa espontaneidade é indiferente ao seu conteúdo político (existe um decisionismo fascista) e como ela (o maior exemplo é o próprio Sarte), por não ser capaz de criticar globalmente o sistema, acaba servindo a algum sistema burocrático.

"Somente os conceitos podem realizar aquilo que o conceito impede": a crítica total do pós-modernismo, do Foucault e de toda a versão vulgar que interpreta o Adorno como um cara que nega a possibilidade que a razão possa destruir a dialética do esclarecimento. Depois, ele vai dizer que o que funda a totalidade é a abstração da troca, que é uma troca desigual. Mas, se a troca fosse negada abstratamente, voltaria a violência pura do mito. A dialética é imanente, porque critica as categorias segundo o próprio conceito delas.

O final desse capítulo mostra a filosofia que apela ao aberto como contraponto ao mito, que repete o mesmo eternamente. Muito bonito, inclusive a metáfora do prisma que capta as cores do não-ente, da possibilidade. Esse é o tema mais lindo, que vai voltar nos outros capítulos, a possibilidade. Os conceitos deixam a possibilidade aberta, por isso quando são reduzidos ao seu uso empírico, se desnaturam.



É sempre bom ouvir que a filosofia do Heidegger tem alguma coisa a ver com o nazismo, já que falar isso é proibido no IFCS!

Como isso não é uma resenha, e sim anotações, como eu já falei, não vou entrar em detalhes sobre a crítica ao cachorro morto da ontologia.

"o exotismo kitsch das visões de mundo 'artesanais', tal como o zen budismo, que se deixa consumir com facilidade espantosa,lança luz sobre as filosofias restauradoras de hoje em dia. Exatamente como o zen-budismo, essas filosofias simulam uma posição de pensamento que a história acumulada nos sujeitos torna impossível."

"A insuficiência da questão preliminar à teoria do conhecimento transforma-se em título de direito para a sua simples eliminação; o dogmatismo torna-se para ele, em contraposição à tradição da crítica ao dogmatismo, a sabedoria mais elevada. Essa é a origem do arcaísmo heideggeriano"

O método do Heidegger, que ele apresentou com a volta às origens da filosofia, na verdade é uma ontologização da fenomenologia de Husserl. Só que, em vez de colocar o mundo entre parênteses, o que é apreendido passa a ser visto como a própria estrutura do ser, a sua abertura. Implicitamente, a ontologia, que tentou negar toda a metafísica, recai no idealismo subjetivo, que só fica com a aparência "objetiva" por causa da socialização da experiência individual, num grau que universaliza as próprias categorias subjetivas (angústia etc).

A falta de determinação, provocada pela regressão permanente ao ser vazio (já que todo ser pressupõe o ente), é mostrada como se fosse um ganho, a própria janela que é a estrutura formal do ser. "A transcendência heideggeriana é a imanência absolutizada." Como a fenomenologia não poderia existir sem a linguagem, a própria linguagem se torna inseparável do ser, o que leva àquela ladainha insuportável sobre a poesia, a clareira etc. Como não podia deixar de ser, toda a história, incluindo a história da filosofia, desaparece (ou é vista como decadência).

 


Conceito e Categorias

Depois de bater em bêbado, o Adorno volta aos conceitos fundamentais da dialética negativa. "nenhum ser sem ente (…) o pensamento contradiria já o próprio conceito sem o pensado", ou seja, sem o coisal, científico. "O pensar não precisa deixar de se ater à sua própria legalidade; ele consegue pensar contra si mesmo, se abdicar de si; se uma definição de dialética fosse possível, seria preciso sugerir uma desse gênero." "Os conceitos aporéticos da filosofia são as marcas daquilo que não é resolvido, não apenas pelo pensamento, mas objetivamente."

"Assim como a dialética não pode ser estendida até a natureza enquanto princípio universal de explicação, não se deve erigir um ao lado do outro os dois tipos de verdade, a verdade dialética intrassocial e uma outra coisa que lhe é indiferente. A cisão orientada pela cisão das ciências entre ser social e ser extrassocial ilude quanto ao fato de que na história heterônoma é a cegueira natural que se perpetua."

"A liquidação da teoria por meio da dogmatização e da interdição do pensamento contribui para a má prática; é de interesse da própria prática que a teoria reconquiste a sua autonomia"

A dialética começa com o conceito, que é submetido ao que Benjamin chamou de dialética em repouso: a reflexão pura dos determinantes do conceito, que o levam a se dinamizar e se dissolver nas suas contradições constituintes. Assim, a não-identidade da coisa pode se libertar a partir das suas próprias contradições, mantendo o primado do objeto. "Por meio da passagem para o primado do objeto, a dialética torna-se materialista."

Todo algo primeiro estabelece por si só o dualismo, que é justamente o que o Adorno vai criticar com o conceito de constelação, a forma atingida pela não-anterioridade no pensamento. Ele ilustra como funcionam as constelações com o exemplo do Max Weber (detalhadamente ele pega o conceito de capitalismo), que constroi os conceitos a partir dos seus elementos destacados em cada situação, sendo que o conceito é o ponto de chegada.

A transformação na dialética em dialética negativa (através dos conceitos de identidade e totalidade) vai mudando mutuamente toda a constelação conceitual dela (aparência e essência, sujeito e objeto etc). Um caso interessante é o conceito de alienação, onde o Adorno vê a compulsão da identidade, que tenta rejeitar o outro pra se "sentir em casa consigo mesmo", negando a abertura do ser e o reafirmando cegamente. Quando ele critica o Lukács, é justamente por centrar a dialética numa figura da consciência, ignorando as relações sociais, e dizer que qualquer nostalgia da harmonia precapitalista entre sujeito e objeto é uma nostalgia do mito. De um sentido completamente diverso, ele entra na crítica ao conceito de alienação, que o Althusser faz em nome da não-essencialidade da natureza humana.

Uma crítica interessante, que eu teria que ler o tal do prefácio da Fenomenologia pra entender, é à teoria do conhecimento, que o Adorno identifica como uma filosofia que reduz sistematicamente o objeto ao sujeito e, ao mesmo tempo, reflete a constituição da totalidade, na sua dominação cega da natureza: "o sujeito transcendental pode ser decifrado como a sociedade inconsciente de si mesma."

"O materialismo não se confunde com o dogma pelo qual o acusam seus astutos adversários; mostra-se muito mais como dissolução daquilo que ele por sua vez trouxe à tona como dogmático; daí advém o seu direito na filosofia crítica." "Desde então, o materialismo não é mais uma posição contrária a ser assumida por meio de uma resolução, mas a suma conceitual da crítica ao idealismo e à realidade pela qual o idealismo opta na medida em que a deforma. A formulação horkheimeriana da "teoria crítica" não quer tornar o materialismo aceitável, mas sim trazer à autoconsciência junto a ele a razão pela qual ele não se distingue menos das expolicações diletantes do mundo que da "teoria tradicional" da ciẽncia".

De passagem, uma porrada na sociologia do conhecimento do Manheim e seu relativismo, que mostra as várias ideologias, sem as vincular com a sua base material, e esvaziando o conceito de ideologia, que só tem sentido quando se liga com a sua verdade ou não-verdade.

O capítulo termina com o Adorno mostrando o ponto principal da sua crítica ao marxismo: "A dialética está nas coisas, mas ela não existiria sem a consciência que as reflete (…) A dialética materialista oficial saltou por decreto sobre a teoria do conhecimento. A vingança a mantém no nível da teoria do conhecimento: na doutrina do reflexo."

 


Liberdade

A parte sobre a liberdade é uma leitura muito detalhada das Críticas kantianas, por isso eu quase não consegui entender nada, toda hora me perdia nas referências a cada seção, cada exemplo usado na Crítica da Razão Prática. De toda aquela confusão, o que eu entendi é que tenta buscar na base material da sociedade capitalista avançada o fundamento da contradição entre livre-arbítrio e determinismo ("Toda tese drástica é falsa").

Como sempre, a interpretação que ele faz sobre o processo do esclarecimento como controle cada vez maior da natureza, que transforma como seu prolongamento a sociedade num todo que pesa e determina os indivíduos (pro Adorno, assim como pra todos os frankfurtianos, o totalitarismo é a conclusão lógica do capitalismo e do sistema social stalinista) é o que está por trás da visão do determinismo como verdade da sociedade de hoje.

"A contradição entre a liberdade e determinismo não é (…) uma contradição entre as posições teóricas do dogmatismo e do ceticismo, mas uma contradição no interior da experiência de si mesmo do sujeito, ora livre, ora não-livre."

Pelo que eu li num ensaio curtinho do Marcuse que eu esqueci o nome, mas que falava da evolução do conceito de liberdade, a maior característica da filosofia moral burguesa, do Descartes até o Kant foi que, ao mesmo tempo em que declara a total liberdade do indivíduo, diz que essa liberdade tem que ser interior, e que não deve negar a dependência total às normas sociais que, assim, se colocam acima da razão. Pior ainda, como no idealismo kantiano o sujeito empírico desaparece debaixo do sujeito transcendental, a vontade livre se transforma em razão, e a vontade, em lei.

Porrada no positivismo lógico (que ele chama de nominalismo): "O fato de, segundo um cânone lógico, ele relegar as antinomias objetivas ao âmbito dos falsos problemas tem, por sua vez, uma função social: cobrir as contradições por meio de denegação".

Como ele resolve: lindamente, a existência da liberdade é inseparável do seu conteúdo, a liberdade se expressa justamente onde o indivíduo pode romper com o determinismo social: "Por outro lado, na era da opressão social universal, é somente nos traços do indivíduo massacrado e violado que resiste as imagem da liberdade contra a sociedade. (…) Há tanta liberdade da vontade quanto há a vontade de os homens se libertarem." Isso me lembra muito o Alain Badiou nas conferências do Para Uma Nova Teoria do Sujeito, onde ele define o humano como o que resiste.

"A doutrina na qual o esclarecimento acabou por utilizar a causalidade como arma política decisiva, a doutrina marxista da superestrutura e da infraestrutura, permanece inocentemente quase aquém de um Estado no qual tanto os aparatos de produção, de distribuição e dominação, quanto as relações e as ideologias sociais e econômicas estão inextricavelmente ligados uns aos outros, e o qual os homens vivos se tornaram parte da ideologia."

 


Espírito do mundo e história natural

Esse capítulo é talvez o mais interessante pra quem quer entender a relação entre a dialética negativa e a dialética materialista marxista, porque é uma crítica à filosofia da história hegeliana e do que resta de idealismo no marxismo.

O conceito fundamental aqui, que tinha aparecido no capítulo sobre as categorias, é o de sese conservare (autoconservação). O que o Marx da Introdução de 1857 assinalava como as forças produtivas que precisam ultrapassar as relações de produção se transforma no Adorno (assim como também no Marcuse do Eros e Civilização) na caducidade da compulsão à autopreservação, provocada pelo desenvolvimento das forças produtivas, o que abre a possibilidade de uma transformação qualitativa da sociedade.

"Em O Capital deparamo-nos com a seguinte passagem: 'Enquanto fanático da exploração do valor, ele [o valor de troca] impõe sem escrúpulos à humanidade a produção pela produção'. (…) ela ataca o tabu hoje universal que interdita toda a dúvida em relação à produção como finalidade em si mesma. (…) Logo que o desencadeamento das forças produtivas se separa do suporte das relações interhumanas, ele não se torna menos fetichista do que as ordens sociais (…). Em tais fases, o espírito do mundo, totalidade dos particulares, pode se converter naquilo que ele soterra sobre si. Salvo engano completo, essa é a marca distintiva da época atual."

"O sese conservare espinozista, a autoconservação, é a lei natural de todo vivente. Ela tem por conteúdo a tautologia da identidade: deve ser aquilo que sem mais já é; a verdade retorna àquele que quer; de um mero meio de si mesmo, ela se torna fim. (…) Quanto mais amplamente crescem as forças produtivas, tanto mais a perpetuação da vida concebida como seu próprio fim perde a sua obviedade. Degenerescência da natureza, essa finalidade própria se torna em si mesma questionável, enquanto nela amadurece a possibilidade de algo diverso."

O Hegel que aparece no capítulo sobre o espírito do mundo é um Hegel distorcido, mostruoso, totalitário, um Hegel que transforma a história em uma essência ahistórica , em que o espírito determina o mundo social como um princípio natural faria (sob coerção). "Seria preciso definir o espírito do mundo, objeto realmente digno de definição, como catástrofe permanente." Na filosofia do direito, a violência histórica aparece crua, embora mediatizada. Justamente porque o universal é particular, a sua pretensão à universalidade é minada por dentro.

Um Hegel assim até poderia ser reconhecido pelo Althusser como o adulterador da ciência da história, não fosse o próprio Althusser um cara que recaiu na mesma tentação de conceber a libertação sob a forma alienada de um confronto entre aparatos ideológicos, uma "libertação" feita através dos métodos alienados de toda a história dividida em classes de antes.

A relação vista por Hegel como de oposição entre particular e universal é abstrata e antidialética, por isso o seu espírito do mundo já continha a base para a destruição do particular em nome do universal. E o próprio conceito de espírito do povo como manifestação concreta do espírito do mundo já era caduco na época em que Hegel escreveu a sua filosofia da história: o próprio fato da universalidade ser formada pela aniquilação progressiva de vários espíritos dos povos mostra isso, além de abrir margem pra um messianismo nacionalista que teve a sua expressão aberta no fascismo.

Para a "experiência não-domesticada", é evidente e palpável a existência de um universal que subordina os indivíduos. O fato de existirem tendências históricas torna "pueril" a distinção entre causa e ocasião, já que a causa se manifesta imediatamente na ocasião. Ele volta à desagradável frase do Lukács sobre a identidade entre a história da filosofia e a filosofia da história.

"A dialética não é um modo de jogo pautado por visões de mundo, uma posição filosófica a ser escolhida entre outras em um cardápio de modelos. Assim como a crítica dos conceitos filosóficos supostamente primeiros impele à dialética, ela é requerida por uma exigência que vem de baixo. É somente quando é remetida de maneira brutal a um conceito estreito de si mesma que a experiência exclui de si o conceito enfático enquanto movimento autônomo, ainda que mediatizado." "o esclarecimento subjaz verdadeiramente à dialética; essa tem lugar em seu próprio conceito. Assim como qualquer outra categoria, não se pode também hipostasiar a ratio".

"em face da reflexão própria à crítica ao conhecimento sobre o universal, tem razão aquela consciência que não se deixa consolar ante o mal, o pecado e a morte com base em um apelo universal" = um tema maneiro pra uma teologia crítica

Quando ele vai discutir se a história alienada e a formação do espírito do mundo foram algum necessário e inevitável, ele tenta fundamentar o primado da produção em Marx e Engels como um recurso para fundamentar a revolução imediata: sem encontrar uma tendência emancipatória dentro do próprio curso do mundo, não existiria nada que pudesse garantir a possibilidade da libertação num prazo curto.

A transformação da história em "segunda natureza" é outro conceito crítico tirado de Hegel e Marx, mostrando a compulsão social na forma da compulsão cega da natureza, que é tanto pior (e isso dá a base material para a sua reversão) porque tem que ser inculcada de fora, já que o ser humano é capaz de refletir e suspender o comportamento instintivo. No final, ele espelha a abertura do futuro com a abertura do passado: "Somente se tudo pudesse ter sido diverso; somente se a totalidade (aparência socialmente necessária enquanto hipóstase do universal extraído dos homens individuais) fosse quebrada em sua exigência de absolutidade, a consciência social crítica conservaria a liberdade de pensar que um dia as coisas poderiam ser diferentes. (…) À catástrofe que se prepara corresponde antes a suposição de uma catástrofe irracional nos começos".

 


Meditações sobre a metafísica

O livro termina no capítulo mais expressivo do ponto de vista literário; antes de entrar nele, vou transcrever inteiro o trecho apocalíptico que cheira a carne queimada:

"Quem conseguisse se lembrar do que se abateu sobre si logo que escutou as expressões 'fossa para os mortos' ou 'caminho para os porcos' estaria com certeza mais próximo do espírito absoluto que o capítulo hegeliano que promete esse espírito ao leitor para em seguida recusá-lo com ares superiores.(...) Anos depois de essa passagem ter sido escrita, Auschwitz demonstrou de modo irrefutável o fracasso da cultura. O fato de isso ter podido acontecer no cerne de toda a tradição da cultura, das artes e das ciências esclarecidas não quer dizer apenas que a tradição, o espírito não consegui tocar os homens e transformá-los. Nessas seções mesmas, na exigência enfática por sua autarquia, reside a não-verdade. Toda cultura depois de Auschwitz, inclusive a sua crítica urgente, é lixo. Na medida em que ela se restaurou depois do que aconteceu em sua paisagem sem a menor resistência, ela se transformou completamente na ideologia que potencialmente era, desde o momento em que, em oposição à existência material, ela se permitiu conferir-lhe a luz da qual a separação do espírito ante o trabalho corporal a priva".

Aqui aparece um tema que está na base da Teologia do Holocausto: com a transformação da quantidade em qualidade, é impossível que a morte em escala industrial possa ser justificada com o apelo à punição divina ou qualquer coisa do tipo (uma vez eu li algum rabino dizer que o Holocausto é inexplicável porque nem toda a violência do mundo até então, nem todo o mal que Satã pudesse ter feito desde o começo do mundo, se comparava com o que tinha acontecido ali, então era impossível que isso pudesse ser justificado como um tipo de expiação): "Não há mais nenhuma possibilidade que ela [a morte] se insira na experiência vivida do indivíduo como algo em uma harmonia qualquer com o curso da vida".

Depois desse desespero, ele volta à problemática da crítica ás metafísicas da morte, como passo para recuperar a metafísica através da dialética negativa (o que ele vai declarar lá no finalzinho), falando sobre a mudança na percepção da morte conforme a sociedade muda. "Quanto menos intensamente os sujeitos vivem, tanto mais repentina e apavorante é a morte. Pelo fato de ela os transformar literalmente em coisas, eles se apercebem de sua morte permanente,da reificação, da forma de suas relações pelas quais eles têm uma parcela de responsabilidade".

Da teologia, ele fala da vitória duvidosa que ela tem diante do desespero, como se acreditar em Deus fosse fundamentado o suficiente pelo simples fato de ser um antídoto contra esse desespero, independente do seu conteúdo veritativo (se realmente Deus existe ou não). Pra Adorno, por causa do processo de esclarecimento, só o que sobrou da religião foi o desejo de felicidade, que se perverte se perder a sua base no mundo vivido. Mas ele salva da metafísica justamente essa intransigência na rejeição da falsa felicidade do mundo, o que, no mundo vivido, se torna o niilismo mais total, negando completamente que exista sentido da vida até que o mundo seja organizado de forma justa (o que liga essa discussão com a sua filosofia da história).

Existe uma necessidade de vitória contra a morte, porque ela corroeria o momento (em comparação com a eternidade) da vida individual e da própria humanidade. E esse desejo se seculariza na questão do sentido da vida, que só pode ser estabelecida rejeitando antes de tudo a falsa resposta de que "o sentido é o que nós damos". "Negativamente, graças à consciência da nulidade, a teologia continua tendo razão contra os adeptos do aquém. Ao menos isso é verdadeiro nas jeremíadas sobre o sentido da existência. O único ponto é que esse vazio não poderia ser curado por dentro, por meio do fato de os homens mudarem de opinião, e sim somente por meio da supressão do princípio da renúncia. Com ele, também desapareceria por fim o ciclo da plenitude e apropriação: até esse ponto a metafísica e a organização da vida estão imbricadas".

Aí começa uma análise da filosofia de Kant, que mais uma vez eu não consegui acompanhar, porque não entendo nada disso. O que me pareceu é que o Kant, na sua cisão radical entre o númeno e o fenômeno, expressava as condições sociais da época, de consolidação heteronômica de uma totalidade social opaca, fechada na troca e sem uma "janela" pra fora de si mesma, o positivismo da razão. Mas que ele, escrupulosa e honestamente, ao manter a esfera do "inteligível", deu uma abertura a esse ponto cego do processo do esclarecimento. "O segredo de sua filosofia é a impossibilidade de pensar o desespero até o fim". "Sua filosofia gira, como aliás certamente toda filosofia, em torno da prova ontológica da existência de Deus".

O Kant faz uma cisão absoluta entre a forma e o conteúdo que foi o Hegel destruiu depois, ao movimentar a forma através do tempo. Mas, no Kant, essa estrutura foi necessária como moldura de uma filosofia da ciência que acabava relegando os fatos fora das ciências naturais para um seg undo plano, conforme reduz o sujeito ao tal sujeito transcendental, segundo a metodologia da física newtoniana. "O sistema kantiano é um sistema de sinais de 'Pare!'". O ceticismo kantiano acabou se acomodando à dominação da positividade burguesa, ao impedir a reflexão sobre tudo o que não fosse empírico, o que também rebaixa o caráter da arte.

Eu não entendi esse conceito de inteligível em Kant. Segundo o Adorno, o inteligível, a esfera dos pensamentos, é colocada como que entre parênteses em Kant, como se fosse aparência. O Hegel vai usar a dialética para superar essa aparência, entendendo-a como momento da verdade. E a estética vai começar a resgatar a aparência.

"Em face da teologia, a metafísica não é simplesmente, como supõe a doutrina positivista, um estágio historicamente superior, ela não é apenas a secularização da teologia nos conceitos. Criticando-a, ela conserva a teologia na medida em que libera para os homens enquanto possibilidade aquilo que a teologia os impõe e com isso deturpa. As forças que eram ligadas pelo espírito implodiram o cosmo do espírito; ele recebeu o que merecia. O Beethoven autônomo é mais metafísico que o Bach ordo; por isso, mais verdadeiro".

"pois a constituição fundamental da sociedade não se transformou. Apesar de algumas resistências protestantes mais corajosas, ela condena a teologia e a metafísica ressuscitadas por necessidade a serem um certificado de boa vontade com o acordo."

Ele começa então uma comparação entre a salvação e o céu das religiões e a ficção científica. "o infantilismo do interesse pelas viagens em naves espaciais trouxe à luz, inversamente, o infantilismo latente nas mensagens de salvação". O que ele chama de antinomia da consciência teológica hoje – e que é realmente isso – é ou preservar o conteúdo original das religiões, que foi totalmente destruído pelo esclarecimento, ou esvaziar e sublimar esse conteúdo material (como se faz nas correntes da teologia liberal) esvaziando a própria religião. Ainda quero escrever sobre isso.

E, mais uma vez, a arte, através da aparência, aponta para essa transcendência do que não tem aparência.

E ele termina o livro com um gesto de autolimitação da dialética negativa, pelo qual ela rompe com a própria ilusão em criar um novo saber absoluto: a virada para a metafísica. "Para tanto, a dialética, ao mesmo tempo reprodução do contexto de obnubilamento universal e de sua crítica,ainda precisa se voltar contra si mesma em um derradeiro movimento". "Reside na determinação de uma dialética negativa que ela não se aquiete em si, como se ela fosse total; essa é a sua forma de esperança". Uma metafísica, mas micrológica, expressão do desejo de superação da dialética.





Conclusão

Eu comecei falando do Adorno (melhor ainda, do Marcuse) e do Althusser.

Bem, o Althusser é um filósofo da ciência, e toda a sua filosofia foi a tentativa de libertar a ciência da história (tanto na forma da crítica da economia política como na da ciência política) das amarras do hegelianismo, que tenta enquadrar ela nas suas formas invariáveis.

O que o Adorno tenta é criar uma teoria crítica da sociedade, que iria mais além do que uma ciência da história, seria a base para uma estética, uma ética, uma filosofia social etc. E também seria uma teoria da consciência superior à do marxismo e até do althusserianismo, com os seus aparelhos interpelando indivíduos.

Essa é a minha dúvida: se ele não está criando outro grande sistema da identidade. Que a sua teoria da consciência é melhor que a de todo mundo, mas mesmo assim muito insatisfatória, porque não dá nenhuma brecha por onde possa ser pensada a mudança na consciência, é fácil de ver. Que a sua estética da incomunicabilidade, mesmo que corrija o dogmatismo século XIX do Lukács, não consegue dar uma margem maior pra avaliar a arte (e nisso até o Marcuse foi bem melhor), também não é difícil de ver.

Pra mim fica em aberto isso: é preciso existir outro sistema filosófico pra substituir o marxismo ou simplesmente se deve demolir todos os sistemas, pra permitir a ciência respirar, bem althusserianamente? Até onde caberia uma filosofia? Na ética, é certo, mas a ciência da história (seja lá o que isso for) não poderia estudar as superestruturas por si mesma?

Sei lá. Digam aí vocês.

Comentários

Atualpa Ribeiro disse…
Muito interessante a forma como você escreve. Parabéns pelo texto.
Gosto de pensar adornianamante, pois assim podemos dissipar este famigerado ABSOLUTO que resultou na síntese de hitleriana.
rodrigodoo disse…
Muito obrigado, Atualpa!