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Black Sabbath, banda formada por operários antiimperialistas!


Quando hoje a gente vê a decadência do metal e, pior ainda, a maioria do público do estilo, formado por jovens facistoides de classe média, a gente acaba esquecendo que poderia ter sido diferente - e que, realmente, as coisas eram diferentes no começo. Por isso essa postagem sobre o Black Sabbath.


A cultura e a posição de classe do heavy metal setentista

Antes de tudo, temos que entender o contexto em que surgiu o heavy metal.

O rock tem a sua origem no blues, como todo mundo sabe. Então, era música negra de resistência (e defendia a liberdade sexual da juventude, assim como a melhor parte do funk putaria de hoje), até ser absorvido pelo mercado e embranquecido na época da "invasão inglesa" (1962).

Os Beatles, que eram a principal banda da invasão inglesa, se redimiram assumindo o seu papel na segunda radicalização do rock'n'roll (1966-1967). Nesse momento, a radicalização do rock refletia a radicalização mais geral da sociedade, tanto nos países imperialistas (maio de 1968, "Outono quente" italiano, movimento antiguerra nos EUA etc), como no Terceiro Mundo (Vietnã, Bolívia, Cordobazo etc) e no chamado "campo socialista" (primavera de Praga, movimento estudantil iugoslavo, polonês etc).     

O rock (como um pouco antes, o folk) era a voz da juventude de classe média ou trabalhadora em sua revolta contra o sistema. Quem fez essa ponte do folk para o rock como música de protesto foi Bob Dylan, a única pessoa que eu conheço que teve um verso de música inspirando nome de grupo terrorista (os Weathermen, por causa do verso de Blowin' in the Wind).

Porém, a primeira expressão do repúdio à guerra, ao militarismo e ao racismo foi através do movimento hippie, com toda aquela ladainha de paz e amor e fuga para o campo e modos de vida alternativos. Depois de Woodstock, o hippie vira moda e começa a ser absorvido pelo Monstro Sist, como Raulzito dizia.

Então, chegam as primeiras bandas que iriam criar o heavy metal (a primeiríssima é os Yardbirds, de onde veio o Jimmi Page). Essas bandas ou começam tocando blues ou sob pesada influência da música negra dos EUA, resgatando as raízes do rock. Não por acaso, foi assim que o Sabbath começou.

A banda foi formada por quatro operários - o Toni Iommi tinha até perdido dois dedos num acidente de trabalho. E, como não poderia deixar de ser, combatia o hippie ao mesmo tempo em que tinha uma referência no estilo (tanto que o primeiro nome da banda foi Earth [Terra] - e também no pacifismo e antimilitarismo.


O estilo do heavy metal

Mas o heavy metal se definiu contra o hippie, e isso foi a fonte das suas características. Isso é uma coisa comum na história da arte (barroco x classicismo, realistas x românticos etc).

O principal elemento do  heavy metal é a sua violência, e depois o seu tom sombrio - os dois indicados pelo nome do estilo. A violência do heavy metal era uma contraposição ao "flower power" hippie e toda a ingenuidade contida nele. Era como se o metal dissesse

O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Mas aí é que está o importante: nos crácicos do metal, a violência era dirigida contra a sociedade, era um tipo de revolta primitiva contra o sistema, quase anarquista. Isso é o que veremos a seguir. Depois, na decadência do estilo, se tornou uma revolta contra a vida, fascista (como disse Franco, "Viva a Morte!"). 

E isso também acontece com os elementos ultrarromânticos do heavy metal. São uma forma de "devolver" os aspectos sombrios e mórbidos da sociedade. Um simples exemplo, o satanismo.

Como todo mundo sabe, o Diabo é o pai do rock. Mas o Diabo do Black Sabbath é a pura expressão da revolta, o Diabo de Baudelaire, celebrado na famosa frase do anarquista Bakunin: "é preciso ter o diabo no corpo". Totalmente diferente dos delírios nazistas no Slayer

O que eu quero mostrar é que o Black Sabbath do começo da década de 1970 (com o Ozzy) estava inscrito na linha antiautoritária da radicalização da juventude, e que o refluxo das lutas na segunda metade da década foi o pano de fundo da decadência do metal e do próprio Sabbath.
   

Vamos ao que interessa (pra postagem)

Em primeiro lugar, não estou defendendo a tese absurda de que o Black Sabbath era uma banda revolucionária ou realista socialista. O metal era a diversão da juventude na época, e a maioria das músicas eram pura diversão, terror e ficção científica de alta qualidade. E é por isso que todos amamos o Sabbath!


Mas o pano de fundo ideológico de tudo isso, sim, era a radicalização, e que isso se expressava em várias músicas, e que foi diminuindo com o tempo, e praticamente sumiu na virada da década de 1980.

Então, vamos aos fatos:

Já no primeiro disco, temos Wicked World.

(Deem uma colher de chá pras traduções, elas têm erros, mas eu não quis traduzir tudo de novo...)

O segundo disco, Paranoid, teve o nome (War Pigs) censurado, por fazer referência à guerra do Vietnã. War Pigs é um dos maiores hinos antimilitaristas de todos os tempos, retratando os comandantes militares sendo julgados no Dia do Juízo. Eu acho que nem mesmo um ateu consegue evitar um pensamento de esperança imaginando isso acontecer...

No Paranoid também temos a mais terrível descrição de uma guerra nuclear já feita na música popular, Electric Funeral. Além de Hand of Doom. Três canções antimilitaristas no mesmo disco!

No Master of Reality, o tema antimilitarista aparece em Children of the Grave, simplesmente sobre uma revolução feita para parar a guerra e, numa versão de ficção científica, em Into the Void. Tanto nesse disco como nos seguinte, o Volume 4 e Sabbath Bloody Sabbath, toda a crise provocada pelas drogas acabou levando a banda a fazer algumas músicas de pura apologia (como Sweet Leaf e Snowblind), ou a viajar demais nos temas de FC e terror.

A mesma coisa acontece com os discos seguintes, Sabotage, Technical Ecstasy e Never Say Die.  Mas, a essa altura do campeonato, com Vietnã em guerra com o Camboja no ano em que o Ozzy saiu da banda, e o Khomeini no poder um ano depois, não parecia existir nenhuma paz no horizonte. O fim da radicalização da juventude nos países imperialistas, num momento de grave crise econômica, levou a uma direitização sem precedentes do heavy metal. Foram essas condições que permitiram o surgimento do punk


Decadência do Sabbath, decadência do heavy metal
 
Com a entrada do Dio  (e depois o Ian Gillan) no Black Sabbath, se consolida o retrocesso da banda pra músicas de terror com um conteúdo semirreligioso. Até o ponto de vista crítico da capa de Heaven and Hell é substituído no Born Again pelo nascimento do "filho do capeta"... Ao mesmo tempo em que as letras caíam de nível, a música piorava, e o Sabbtah virou uma banda café com leite, pra ser sincero. Nem vale a pena falar dos outros discos.

O "testamento político" dessa fase foi a Mob Rules. Em vez da revolução de Children of the Grave, o que existe é uma tureba ameaçadora...

O Ozzy seguiu a sua carreira solo e, supreendentemente, emplacou algumas músicas que lembravam a antiga  fase, como Revelation (Mother Earth). Mas a morte do seu amigo Randy Rhoades fez ele cair nas drogas e numa fase muito ruim, de onde ele só saiu em 1992, com o No More Tears, que alguns nem consideram heavy metal.

Enquanto isso, o conjunto do heavy metal ou se comercializa ou se volta pra um som cada vez mais pesado e extremo. Em qualquer dos casos, o resultado é a sua reacionarização, que pode ser até medida com a fórmula "quanto mais pesado, mais fascista". O ponto final disso são bandas envolvidas em queima de igrejas e assassinatos, ou a desgraça chamada NSBM (Black Metal Nacionalsocialista), ou as bandas de death metal fazendo músicas incompreensíveis sobre estupros e esquartejamentos.

Do lado mais mainstream, a praga chamada metal melódico, com musicas sobre mago, guerreiro e dragão,  no mais puro romantismo e culto à Idade Média. 

Logicamente, nem tudo são espinhos. Dentro de todo o espectro do metal, ainda existem bandas fieis à origem do estilo, usando a música pra expressar a revolta da juventude da classe trabalhadora. Podemos lembrar algumas músicas do Iron Maiden (que é uma banda que eu não gosto muito), como Run to the Hills ou, no extremo, o próprio Napalm Death, ou o Brujeria e o Body Count, que expressam os problemas específicos respectivamente dos latinos e negros dos EUA.

E você que tá lendo isso essa hora, lembra de mais alguma banda assim? 

Comentários

Vinícius disse…
Se o System Of A Down for considerado parte do metal (que pra mim é), essa sua análise faz sentido e eles tem um resgate do antigo heavymetal com letras antiimperialistas, militaristas, sobre a liberdade sexual dos jovens (ou sua repressão nos dias de hoje), etc.

O que você acha?
rodrigodoo disse…

Práxis,

Depois que eu escrevi a postagem é que eu lembrei quantas bandas ainda tinha que ter falado!

Só um exemplo, o Metallica, com o ...And Justice for All, que tem o maior hino antimilitarista da história do rock, "One".

O System of a Down (também não sei se é heavy metal) certamente recupera eses temas libertários do começo dos anos 1970. Não é por acaso que, no meio da pasmaceira que tá o rock hoje (eu praticamente nem escuto mais), os caras se destacam como um tipo de "consciência" do estilo. E isso não é so uma coisa que eu tô falando, você pode falar com a maioria dos fãs do SOAD, que eles vão falar que gostam da banda justamente por isso!

Valeu pela participação, se você quiser, pode compartilhar a postagem no face ou mandar pra alguém, pra ajudar a divulgar o blog!
rodrigodoo disse…

O Rafael Laman mandou esse vídeo pelo Facebook. Vou postar aqui pro caso de alguém achar que eu peguei pesado falando dos fãs atuais do heavy metal:

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=tdTCc_5NUeQ
Luiz disse…
Bom... só vou dar uma pincelada, pq eu de fato não conheço muito do assunto.
Nunca me identifiquei especificamente com nenhum tipo de música em especial, sempre escutei de tudo, de funk a música clássica. De metal a pagode, de tudo um pouco.
Nunca me liguei muito em bandas, músicos, álbuns, história da arte, etc.
Mas de forma nenhuma, acho que uma análise desse tipo é desinteressante. Muito pelo contrário. Com tanto sensacionalismo, idealismo/moralismo hoem em dia, ver uma análise materialista sobre qualquer aspecto da sociedade é sempre muito foda.

Mas essa minha postura pelega em relação a arte, tem a ver com a própria idéia do que é arte. Eu sou marxista, então é claro que não dá pra negar, que a arte de um momento histórico vai ser limitada pelas condições materiais desse determinado momento.

Mas na arte é onde a gente expressa aquilo que não consegue expressar em condições normais do dia a dia. O nível de subjetivdade é muito grande. O artista trata se situações reais sim; mas de maneiras abstratas. E isso vai um pouco além da sua situação material.
A maneira que cada ser humano se desenvolveu, suas experiências, cada maneira diferente de se relacionar com os problemas econômicos é muito particular.
Por isso, acho que muitas vezes o artista consegue tratar de problemas numa determinada época, que décadas depois a gente vai se identificar com o problema, com a maneira que ele foi abordado, etc.
Tem a ver com a forma do poema, a melodia dos instrumentos. olhares e cores.
Como eu disse, é tudo muito subjetivo.

Mas enfim, gostei pra caralho do texto. Acho que o rock e o metal tem um papel muito importante na revolta contra os problemas sociais, principalmente no meio da juventude.
Achei foda o apanhado histórico, já que eu não conhecia muito bem esse aspecto da banda. E a alta qualidade do texto junto com linguagem largada só tu mesmo consegue fazer cara. Verdadeiro artista... = )

Forte abraço!
J.L.Tejo disse…
"O rock (como um pouco antes, o folk) era a voz da juventude de classe média ou trabalhadora em sua revolta contra o sistema (...)"

Reiteradamente a gente vê comentários contra "rebeldes sem causa". Daí eu retruco: é preferível o rebelde, ainda que sem causa, ao conservador.

Oxalá todos os músicos, do funk ao metal, fossem marxistas revolucionários. Mas essa situação não existe, e talvez nunca existirá (inclusive não sei se seria salutar, para o próprio marxismo, que todos os músicos fossem marxistas revolucionários; o marxismo convertido em "visão única" seria um marxismo defeituoso). Não sendo possível, que ao menos seja mantido aceso o espírito da contestação, da rebeldia. Do "chocar por chocar".

E nisso o rock é mestre, que dirá o heavy metal dos pentagramas na cara da sociedade cristã.

Gostei das referências literárias, como os "Versos Íntimos" de Augusto dos Anjos. Boa também a lembrança de Baudelaire- sua "Litanias de Satã" (a "Oração" inclusa) é excelente. O Capeta não deixa de ser um revolucionário.

Não sei dizer se Slayer é fascista. Fizeram questão de regravar "Guilty of being white", sobre preconceito contra os brancos (!), do Minor Threat (que não é fascista), o que pode servir de indício, em todo caso...

SOAD é metal (não pode ser encaixado no hardcore, por exemplo, seja na escola nova-iorquina seja a californiana), falta é encaixar em algum dos inúmeros ramos. O álbum "Toxicity" até world music tem, em certa medida.

Arte apolítica é arte a serviço dos grupos dominantes, como diz Brecht. Mas exigir engajamento, cobrar isso contraria o próprio espírito artístico. "Revoluções culturais" e dirigismo cultural é coisa de stalinista.

O que eu digo nesse comment vai de encontro a esta postagem, do meu antigo blog - http://www.elogiodadialetica.com/2010/09/musica-e-rebeldia.html

Hoje já não considero o funk de todo reacionário, por exemplo (mas o post já deixava isso em aberto), bem como tenho outra visão sobre o "rebelde sem causa", como digo acima.

De resto, "Dai-nos, camaradas, uma arte nova!", como diz Maiakovsky na "Ordem nº2 ao Exército das Artes". "Por uma arte revolucionária e independente!", e agora já são Trotsky e Breton.

Grande abraço,
tejo
Tejo ao citar que o funk não é de todo reacionário tem razão, pois temos um belo exemplo no Rio mesmo, o Mc Leonardo. Um grande amigo meu considera a Valesca Popozuda como uma feminista, mas eu não a conheço o suficiente pra avaliar.

...And Justice é o álbum mais politizado do Metallica. Profundamente influenciados pela perda do MITO Cliff Burton (um dos meus poucos heróis), fizeram um álbum contestando tudo e todos.

SOAD não sei definir musicalmente (novidade), mas ao meu ver faltam solos de guitarra para serem uma banda de Heavy Metal. Mas são o Rage Against the Machine de nossa geração, são brilhantes.

Abs.


Will A. Almeida
Ah, relendo este texto me lembrei de uma no Ozzy solo, que ele critica os fundamentalistas católicos yankees:

http://www.youtube.com/watch?v=j34juXrJWqw